Aclamado pela crítica, laureado em Cannes com o Grand Prize do Festival e vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, “Zona de Interesse”, do diretor britânico Jonathan Glazer, encontra na invisibilidade dos horrores do Holocausto – em contraponto ao cotidiano da família nazista que vive numa casa separada de Auschwitz apenas por um muro – a maneira mais eficaz de impactar o público, proporcionando uma experiência sensorial do que foi o sofrimento daqueles que não estão visíveis.
A estratégia de Glazer funciona. O filme é, de fato, impactante, tanto quanto outros filmes sobre o mesmo tema, onde somos expostos ao terror através da violência e imagens dos invisíveis sendo mortos, torturados, cambaleando, esquálidos pelos campos de concentração. No entanto, em “Zona de Interesse”, o diretor obriga-nos a enxergar aquilo que não vemos em cena. As imagens ocultas no filme são preenchidas pelo imaginário do público que recebe, do início ao fim, sugestões do que ocorre do outro lado do muro.
Estas sugestões, a princípio, sutis, tornam-se cada vez mais óbvias: uma chaminé ao fundo, a fumaça denunciando um trem se aproximando, gritos de dor, tiros, morte e as cinzas que invadem o terreno e adentram a casa, alertando que para viver no “paraíso” de Hedwig – esposa de Rudolf Höss, interpretada, magistralmente, por Sandra Hüller – é preciso ignorar o Estige ao lado. Aliadas à sonoridade aplicada ao filme, o Holocausto invisível, aos poucos, ganha forma.
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Por outro lado, é a vida da família do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, (Christian Friedel, em atuação memorável) que nos convida a grandes reflexões. Diferente, por exemplo, do filme “O Filho de Saul”, de László Nemes (onde o público é imerso numa experiência sensorial dentro do campo de concentração), “Zona de Interesse” nos oferece esta mesma experiência sem adentrar Auschwitz, mas sim ao perceber o absurdo da normalidade ao redor do horror. Colocar o público dentro da casa de Höss é um dos trunfos do filme, pois força o espectador a confrontar-se diante de tragédias atuais e a questões fundamentais: como o ser humano é capaz de cometer as maiores atrocidades possíveis a outro ser humano, ou como diante das maiores tragédias humanas, somos capazes de não enxergar e agir para impedi-las ou revertê-las? Somos capazes de virar o rosto e fingir que nada está acontecendo e continuar com nossas vidas confortáveis.
Christian Friedel e Sandra Hüller lideram o excelente elenco numa rara tentativa de humanizar a família nazista. Mas, em realidade, seria possível não classificar como monstros aqueles que levaram a cabo a Solução Final? Rudolf Höss implementou as câmaras de gás com ácido sulfúrico e ácido prússico e transformou a indústria da morte numa prática eficiente, assim como foi responsável também pela operação que transportou, aproximadamente, 450 mil invisíveis húngaros em trens para Auschwitz, denominada Operação Höss. Nem mesmo uma atuação repleta de nuances, sugerindo questionamento interno do personagem, o libertam de sua monstruosidade, ainda que por fragmentos de segundos. Como descendente direto de vítimas do Holocausto oriundas da região da Transilvânia, é difícil não imaginar que meus antepassados estavam neste trem…
Numa das cenas mais marcantes do filme, um dos filhos mais novos de Höss, uma criança de, aproximadamente, 4 ou 5 anos brinca tranquilo no seu quarto até que ouve do lado de fora, gritos e súplicas. Ele vai até a janela investigar, pois não se contém de curiosidade ou porque aqueles gritos atrapalham sua brincadeira. Ao chegar na janela, ele desiste de abrir a cortina e olhar o que se passa do lado de fora e, em seguida, retorna aos seus brinquedos, evitando encarar aquela realidade. Talvez seja uma indicação proposta pelo diretor, sobre o que as gerações futuras, principalmente, os descendentes dos nazistas, teriam que lidar na Alemanha nos anos pós-guerra. No entanto, é possível enxergar naquela criança o próprio diretor do filme que prefere não olhar, optando somente por escutar os ecos do Holocausto, aumentando o seu distanciamento.
Outros simbolismos surgem, aos montes, durante a projeção do filme: a escuridão de quase 3 minutos (no início do filme) que nos coloca em estado sensorial; as cinzas dos mortos – já mencionada – que invadem a residência e os arredores como a morte se fazendo presente; o jardim e as flores de um lado do muro, em contraposição à lama e ao caos do outro; a piscina, a criança presa na estufa de plantas, entre outras.
No final do filme, Rudolf Höss desce, lentamente, uma longa escadaria em espiral, como quem se aprofunda em sua consciência em busca de um resquício de humanidade, até que chega a uma porta e, ao abri-la, Glazer nos leva, finalmente, para dentro de Auschwitz: o que restou e é, hoje, um museu ao ar livre, onde qualquer um pode visitar. Uma funcionária do museu varre o chão do que era, durante a guerra, uma câmara de gás e, em seguida, vemos expostos os milhares de sapatos, malas e as famosas roupas listradas. Vemos o resultado esperado por Rudolf Höss. O que não vemos são os judeus que ali foram mortos. Esses permanecem invisíveis.