O britânico Jonathan Glazer (“Sob a Pele” e “Reencarnação”, dentre outros) mostra que o cinema ainda tem o que dizer sobre o Holocausto. Glazer assina a direção de “Zona de interesse” (The Zone of Interest, EUA, Polônia, Reino Unido, 2023), uma potente (e muito livre) adaptação do celebrado livro “A zona de interesse”, do recém-falecido Martin Amis, publicado no Brasil em 2015 pela Companhia das Letras. O filme foi premiado no Festival de Cannes e concorre em 5 categorias no Oscar de 2024, incluindo melhor direção e melhor filme.
“Zona de Interesse” entrou em cartaz nos cinemas brasileiros na última quinta-feira, 15 de fevereiro, e explora a vida de Rudolf Höss (Christian Friedel), comandante por dois anos do campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia, e de sua esposa Hedwig Höss (Sandra Hüller). No filme, vemos a boa vida que ambos levavam na belíssima casa de campo anexa ao complexo nazista que matou cerca de um milhão de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial. Os dois viviam ali com os filhos, a mãe de Hedwig, vários serviçais e um simpático cachorro, desfrutando de uma vida bucólica, repleta de fartura e segurança.
Hedwig orgulha-se de ter planejado tudo: a casa, o jardim e o entorno. Ela dedica-se com esmero à criação dos filhos e ao jardim da família. Nos dias quentes de verão, sobram dias de churrasco com a criançada, passeios no rio e banhos de piscina no verão. “Só saio daqui arrastada”, diz ela em certo momento à mãe.
A indiferença
Quem conhece a obra da filósofa e cientista política Hannah Arendt, que cobriu o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, no início dos anos 1960, vai sentir algo de familiar na figura de Rudolf. Assim como Eichmann, ele é mais um exemplo da banalidade do mal – é workaholic, calculista e determinado a ascender na estrutura do Terceiro Reich. Tem importantes contatos na burocracia e os explora se os seus desejos o levarem a isso. Rudolf trata dos judeus que fluem pelas linhas férreas do Reich como outros recursos do Estado Nazista. Nesse aspecto, portanto, o filme de Glazer não traz nada de tão novo. Na verdade, em alguns momentos ele até exagera nos contornos de Rudolf, de forma que quase esvazia sua personalidade.
O livro do historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília, é destaque na categoria “historiografia” e “ensino e estudo”da Amazon Brasil. Livro disponível para leitura no computador, no celular, no tablet ou Kindle. Mais de 60 avaliações positivas de leitores.
A grande sacada do filme de Glazer reside em outro aspecto: a indiferença que o comandante do campo de extermínio e sua esposa sustentam. Eles não são alheios ao que acontece bem debaixo de seu nariz. Eles são simplesmente indiferentes. Quando se é alheio, o mundo ao redor parece invisível, interessando apenas o próprio umbigo. Mas quando se é indiferente, tem-se plena consciência de tudo ao redor, e o juízo de valor é o que rege as ações. Esse traço é certamente parte da banalidade do mal, mas uma parte que não foi tão explorada por Arendt em seu “Eichmann em Jerusalém”.
Rudolf e Hedwig estão convictos de que estão do lado certo, agem com naturalidade, incorporam o Holocausto ao seu cotidiano mundano de uma forma assustadora. Em uma das cenas, Hedwig e algumas colegas conversam dentro de casa sobre casaco de peles que vieram do “Canadá”, não do país, mas de galpões em Auschwitz apelidados dessa forma porque eram neles onde os judeus recém-chegados ao campo deixavam os seus pertencem – o local era chamado assim porque o Canadá era considerado o país mais próspero do mundo na época.
A família Höss está ao lado do inferno, mas isso não provoca problemas de ordem moral no casal. Isso não quer dizer que Auschwitz fique da porta para fora. Nada disso. Embora a casa seja ampla, ventilada, arborizada e até ensolarada, ela está longe de ser impenetrável. Os horrores que ocorrem a poucos metros dela estão sempre presentes na sua atmosfera. Durante todo o filme escutamos latidos de cachorros, gritos de guardas e disparos. Há poloneses escravizados dentro da casa; um jardineiro judeu se esgueira pela casa da família, em segundo plano. Em várias cenas vemos, de diferentes ângulos, as chaminés do campo e as torres de vigilância. O espaço jamais é totalmente o da vida privada. Há uma confusão entre o público e o privado, entre o que é do Reich e o que é dos Höss. Essa simbiose é bem expressa em um diálogo entre Rudolf e Hedwig após ele receber uma ordem de transferência para a Alemanha. Hedwig recusa-se a deixar o lugar, mesmo que isso signifique Rudolf vivendo em outro lugar. Em defesa de sua proposta, Hedwig fala que aquela casa não era apenas o sonho da vida deles, desde a adolescência, mas o seu “espaço vital” (termo usado pelos nazistas para justificar a expansão e ocupação do leste europeu).
Em outros momentos do filme, os acontecimentos do campo agem no subconsciente da família, caso de uma filha do casal, que vive perambulando, sonâmbula, pela casa, à noite, situação reforçada pelas histórias que o pai lhe conta antes de dormir, como a de “João e Maria”, dos Irmãos Grimm, que desde o início do século XIX eram contadas às crianças alemãs a fim de produzir efeitos moralistas e disciplinadores.
O que não sabemos
Em 2015, o filme húngaro “O Filho de Saul”, do diretor László Nemes, fez um retrato incrível de um campo que, embora não diga, sabemos ser Auschwitz. O filme é de provocar ansiedade. Somos forçados o tempo todo a percorrer câmaras de gás, crematórios, barracões e leitos hospitalares, sempre guiados por uma câmera suja e tremida. Essa câmera persegue homens atormentados, em meio a corpos, caldeiras, massas de novos deportados, latidos de cachorros, gritos guturais de repreensão que deixavam (e deixam) a quem assiste aturdido. Glazer sabe muito bem que estamos acostumados com essa estética do Holocausto. E por isso, nada disso está no primeiro plano em seu “Zona de Interesse”. Tudo está no fundo, desfocado, nas beiradas, entrando pelas frestas, sem filtros. Glazer joga, deste modo, com o que já sabemos, com o que já aprendemos sobre o Holocausto, e isso é fundamental para que ele nos apresente o que não sabemos.
Vale a pena destacar o trabalho da atriz Sandra Hüller, que concorre ao Oscar de melhor atriz, mas por outro filme em cartaz, o excelente “Anatomia de uma queda”. Hüller é precisa na construção de uma Hedwig orgulhosa, manipuladora e vaidosa. Ela gosta de ser chamada de “Rainha de Auschwitz” e se satisfaz com a chegada da mãe, que vê nos olhos da filha a sua realização. “Você se deu muito bem, minha filha”. A cena em que as duas passeiam pelo belo jardim da casa é uma das melhores do filme. Mãe e filha tem um diálogo absolutamente repulsivo sobre os judeus, mas entrecortada com comentários amenos sobre azaleias e outras iguarias plantadas nos fundos da casa principal. Essa dinâmica entre o belho e o grotesco, a morte a vida, o sujo e o limpo, marcam o filme inteiro.
Esteticamente, o filme mistura diversas linguagens para produzir a noção de indiferença e tormento. Telas pretas ou vermelhas aparecem aqui e ali. Sons abafados e constantes carregam a narrativa, não nos deixando esquecer do que se trata tudo aquilo. Há também cortes abruptos e cenas de baixa iluminação que lembram muito certas instalações exibições de arte contemporânea. Talvez isso tenha a ver com a tradição teatral de Glazer – antes de ir para o cinema, Glazer trabalhou por vários anos com teatro.
Não importa o quanto você já tenha visto no cinema sobre o Holocausto. “Zona de interesse” vai te mostrar pontos de vista que são inéditos ou pouco usuais. Uma obra que nos leva ao âmago da indiferença que pauta a banalidade do mal, e que pode nos causar tanta perturbação quanto filmes como “O Filho de Saul”.