“Cabaret”: o filme que tirou a República de Weimar do armário

Produção de 1972 trouxe à tona as ricas expressões sexuais e de gênero da República de Weimar e escancarou a perseguição nazista aos homossexuais e outros personagens queer no período que antecedeu a chegada dos nazistas ao poder.
21 de maio de 2024
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Filme de 1972 foi dirigido por Bob Fosse. Foto: Letterboxd.

Alemanha, Berlim, início da década de 1930. Na então estremecida República de Weimar, um cabaré procura resistir à aproximação da ascensão nazista. Dentro desse universo boêmio, três figuras se destacam. A primeira é Sally Bowles (interpretada por Liza Minnelli), uma moça estadunidense que canta e dança maravilhosamente bem, cultivando o sonho de ser uma estrela de cinema, ao mesmo tempo, em que vive relações sexuais desenfreadas para sobreviver àquela época de privações econômicas. A segunda é Brian Roberts (Michael York), um jovem escritor inglês recém-chegado à cidade, ávido por terminar seu projeto literário e experimentar a liberdade sexual que lhe prometeram. A terceira figura é Maximilian von Heune (Helmut Griem), um rico aristocrata alemão que enxerga nos nazistas uma esperança para barrar os avanços dos comunistas. Juntos, esses três personagens encenam um triângulo amoroso em meio à turbulência política, social, cultural e econômica que precedeu a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933.

Essa é a ambientação da adaptação musical hollywoodiana Cabaret, de 1972, dirigida e coreografada por Bob Fosse. O filme é uma reinterpretação do musical da Broadway de 1966, Cabaret, concebida pelo dramaturgo Joe Masteroff, e esta, por sua vez, se baseou em duas obras: o livro semi autobiográfico do escritor homossexual inglês Christopher Isherwood, Goodbye to Berlin (1939), e a peça de John Van Druten de 1951, I Am a Camera, que foi ela mesma adaptada do livro de Isherwood.

Cabaret foi sucesso de crítica e bilheteria, tornou-se um clássico do seu gênero. No Oscar do ano seguinte, ganhou mais prêmios que O Poderoso Chefão, do diretor Francis Ford Coppola, projetou a atriz Liza Minnelli para o exterior e reviveu a carreira de Isherwood, testemunha dos arbítrios da República de Weimar, e que, na casa dos 70 anos, passou a ser referência para homossexuais de todo o mundo que descobriam suas sexualidades. A obra já não era mais estritamente de Isherwood; ela passou a fazer parte do cinema britânico, da Broadway, de Hollywood e do ativismo homossexual da segunda metade do século XX.

A adaptação

O cabaré do filme de 1972 é substancialmente diferente daquele apresentado originalmente por Isherwood no monumental livro de ficção semi autobiográfica Goodbye to Berlin, publicado em 1939. Enquanto o escritor preocupava-se mais com a política e as consequências sociais do desastre pós-Primeira Guerra Mundial, a contar os embates violentos de comunistas e nazistas nas ruas, a deterioração da realidade em que vivia a classe trabalhadora e o recrudescimento do antissemitismo, Fosse concentra seus esforços em interpretar esse passado pela ótica da dissidência e pluralidade sexual, assim como da não conformidade das identidades de gênero. Em outras palavras, é uma adaptação explicitamente queer, conectando sujeitos de diferentes lugares e gerações em torno das pautas LGBTI+.

No filme, o Kit Kat Klub (representação de um desses inúmeros cabarés do período) é um espaço físico de encorajamento de pessoas com as mais diferentes identidades. Seu palco e sua audiência revelam ambiguidades sexuais e diversificadas identidades de gênero. Desta forma, o diretor quer mostrar como, naquele tempo, havia uma fluidez sexual em um momento histórico cujo debate sobre a sexualidade estava se tornando cada vez mais público e politizado. A bissexualidade dos três protagonistas, a experimentação do amor livre e a não conformidade das expressões de gênero e de seus respectivos papéis sociais são as marcas principais desse Cabaret, que oferecia uma formulação de autoestima e subsídios retóricos para a comunidade LGBTI+ da segunda metade do século XX que reivindicava publicamente visibilidade e direitos.

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Clássico musical estrelado por Liza Minnelli completou 52 anos em 2024. Foto: Cine Pop.

A Sally Bowles de Minnelli é emblemática, talentosa, carismática e transgressora. Pela sua bem-sucedida performance, a atriz conquistou lugar de musa dos homossexuais. Mas é verdade que a sua defesa e o seu apoio à causa homossexual ao longo da carreira também contribuíram para consolidar a sua imagem como ícone para uma parcela significativa da comunidade gay. Sua caracterização com cabelo negro, bastante curto e sua maquiagem pesada nos olhos, assim como o esmalte verde metálico nas unhas das mãos, tornaram-se marca visual registrada da personagem. Ela é afetada, expansiva, promíscua, fala de sexo sem pudor e carrega uma obsessão por tirar vantagem dos homens mais ricos, seduzindo-os como pode para alcançar seus objetivos profissionais e proteger seus interesses pessoais. Suas roupas são extravagantes, coloridas e indecorosas, assim como a maior parte do figurino daqueles que se apresentam no palco do cabaré. Enquanto esse grupo de deslocados e párias sociais entretém os espectadores, podemos compreender melhor a narrativa, pois os números musicais meticulosamente executados intercalados com diálogos e situações cotidianas exteriores ao Kit Kat Klub expressam sentimentos, incômodos, assuntos de interesses urgentes e críticas ácidas à sociedade progressivamente corroída pelo ressentimento e radicalismo políticos.

A complexa e contraditória sociedade alemã da República de Weimar pode ser vista de forma sutil em momentos particulares, por exemplo, quando um camisa-parda da SA é expulso do cabaré e depois volta ao lugar com seus comparsas para se vingar por um espancamento, ou, em outra cena, quando vemos os personagens conversando na rua e nas paredes há cartazes políticos em alusão ao chanceler do Reich, Otto von Bismarck, danificados por pichações em vermelho com símbolos da foice e do martelo e as siglas do KPD (Partido Comunista da Alemanha). Talvez, a cena mais perturbadora dessa representação das disputas políticas vigentes, seja aquela em que um angelical rapaz branco, loiro, dos olhos azuis, entoa sozinho uma canção em público, Tomorrow Belongs to Me (“O amanhã me pertence”). Com o movimento da câmera, aos poucos, podemos entender o que está acontecendo. Enquanto o jovem é lentamente enquadrado na fotografia, vemos que ele faz parte do movimento nazista por conta da sua braçadeira vermelha com a suástica no centro. A câmera passa a acompanhar as outras pessoas que, progressivamente, encantadas e hipnotizadas por aquela apresentação, se juntam a ele. A população termina em coro cantando a plenos pulmões, enquanto somente poucos personagens não se levantam e permanecem em silêncio, visivelmente incomodados ou alheios à situação.

Assim como A Zona de Interesse (2023) de Jonathan Glazer, Cabaret também trabalha com o conhecimento prévio da audiência. Nós sabemos o que aquele movimento fascista foi capaz de fazer até ser definitivamente interrompido em 1945, mas, a sociedade alemã, naquele presente, na primeira metade dos anos 1930, não podia prever o que estava para acontecer em breve. Nesse sentido, o filme nos mostra como a vida social continua com tons de normalidade em meio ao declínio civilizacional. Exemplo disso, é a cena em que Bowles, Roberts e von Heune estão em um carro de luxo partindo para a mansão da família do aristocrata e, no meio da rua, há um corpo de um homem assassinado por razões políticas. Aparentemente, é um comunista morto por um nazista. Eles passam por ali como se aquilo fosse mais uma imagem do cotidiano, de maneira banal, corriqueira, comentam rapidamente sobre o assunto sem esboçarem afetações maiores. Max von Heune diz: “os nazistas são só um bando de arruaceiros, mas servem a um propósito. Deixe que cuidem dos comunistas que logo nós os controlaremos”. Roberts questiona: “mas quem são os “nós”?”. A resposta: “A Alemanha, claro”. O diálogo é interrompido bruscamente por Bowles que pede para que von Heune os leve até um bar, ela quer exibir seu casaco novo. Enquanto eles terminam de falar futilidades no auge de suas compromissadas alienações, a câmera mostra o corpo no asfalto coberto por um pano, o sangue na rua, os populares e a polícia em volta, todos paralisados e em silêncio. É como se o mundo lá fora tivesse parado e somente dentro do carro daqueles afortunados houvesse motivos para vivenciar fantasias, luxúrias e excessos, evidente, enquanto ainda podem ignorar a realidade gradativamente mais densa e perigosa.

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O fato é que após chegarem ao poder pelas vias democráticas, os nazistas liderados por Hitler instalaram uma ditadura no país, invadiram e anexaram nações vizinhas, perseguiram e deportaram centenas de milhares de sujeitos por motivos diversos para inúmeros campos de concentração e extermínio, levando o mundo a uma nova guerra mundial. Ao todo, estima-se que entre 50 e 55 milhões de pessoas morreram no final do conflito. Em relação ao plano antissemita de exterminar 8 milhões de judeus da Europa sitiada, efetivaram o assassinato de 6 milhões, sendo 1.5 milhões de crianças.

Passado mais de meio século de seu lançamento, Cabaret continua exercendo influência sobre o gênero musical no audiovisual e sobre as representações LGBTI+ no cinema. Em 5 de maio de 2022, Peter Bradshaw escreveu no The Guardian que “Cabaret ainda é uma experiência incrível, um mundo em movimento enquanto Roma se prepara para queimar: sombriamente sexy, elegante, com uma sensação avassaladora de maldade”.

No geral, Cabaret conseguiu romper uma barreira, ainda que trate sobre dissidência sexual e identidades de gênero não conformistas, deixou de ser unicamente um filme de nicho para se encaixar no panteão de excelência das produções audiovisuais universais.

Fosse retratou a Berlim dos anos 1930 por outra perspectiva, pela visão dos marginalizados sexuais, gerando uma relevância até os dias atuais. É inquestionável o seu brilhantismo, pioneirismo, impacto e legado culturais duradouros. Por conta de sua inovação narrativa e visual, Fosse forneceu uma linguagem e uma estética artística próprias para o cinema musical, abordando com competente seriedade temas sociais de minorias políticas (sem recorrer às cenas apelativas ou pornográficas) e rompendo com as expectativas e convenções de narrativas cinematográficas tradicionais ao conceber um filme autêntico sem previsibilidade e final feliz. Roma se incendeia, e é inevitável não testemunhar.

Referências

BRADSHAW, Peter. Cabaret Review – Liza Minnelli Musical Still Divinely Decadent and Chillingly Relevant. The Guardian. 5 de maio de 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2022/may/05/cabaret-review-decadent-chillingly-relevant-liza-minelli. Acesso em: 15 maio. 2024.

CABARET. Direção de Bob Fosse. Estados Unidos: Cy Feuer, 1972. DVD (124 min.).

ISHERWOOD, Christopher. Goodbye to Berlin. London: Vintage Classics, 1989.

NETO, José Maria; SCHURSTER, Karl. Cabaret (1972) e o som das botas nazistas. Boletim do Tempo Presente [S. l.], n. 5, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/tempopresente/article/view/4216. Acesso em: 15 maio. 2024.

PARKER, Peter. Isherwood: A Life. London: Picador, 2004.

THE ZONE OF INTEREST. Direção de Jonathan Glazer. Estados Unidos; Reino Unido; Polônia: Film4; Access; Polish Film Institute; JW Films; Extreme Emotions, 2023. Streaming online (105 min.).

Como citar este artigo

SIQUEIRA, Mateus. “Cabaret”: o filme que tirou a República de Weimar do armário. In: Café História. Publicado em 21 mai de 2024. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/weimar/. ISSN: 2674-5917.

Mateus Henrique Siqueira Gonçalves

Bacharel e licenciado em História pela Universidade de Brasília, mestre em História Social pela mesma instituição e pesquisador de temas relacionados à comunidade LGBTI+, com ênfase em homossexualidade masculina na Europa Contemporânea. Membro do Haia - Grupo de Estudos do Pós-Guerras (UnB) e do Pensar os extremos (NEPAT-UFMG) - Rede Internacional de Estudos sobre Nazismo, Memória e Guerra.

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