“A verdadeira dor”: pedras sobre túmulos

Jesse Eisenberg, o ator conhecido por suas atuações em filmes como “A Rede Social”, de David Fincher, debuta como diretor em “A Verdadeira Dor”, filme aclamado pela crítica após sua estreia no Festival de Sundance.
23 de abril de 2025
Cena de "A verdadeira dor".
"A verdadeira dor" marca a estreia na direção de Jesse Eisenberg. Foto: reprodução.

Jesse Eisenberg, o ator conhecido por suas atuações cativantes em filmes como “A Lula e a Baleia”, de Noah Baumbach, e “A Rede Social”, de David Fincher, debuta como diretor em “A Verdadeira Dor”, filme aclamado pela crítica após sua estreia no Festival de Sundance, culminando com as indicações ao Oscar – Melhor Roteiro (Jesse Eisenberg), e Melhor Ator Coadjuvante (Kieran Culkin).

A estreia por trás das câmeras apenas reafirma aquilo que já era percebido na figura de Eisenberg, um ator introspectivo com um tempo cômico afiado e repleto de sutilezas. Assim é também o seu roteiro: uma busca profunda pela compreensão do que seria a dor real; no entanto, realizado com uma certa dose de leveza que encontramos em filmes do gênero Road Movie

Além de diretor e roteirista, Jesse Eisenberg também protagoniza o filme ao lado de Kieran Culkin, o ator que tem a reputação de ser criterioso na escolha dos projetos para os quais decide trabalhar – diferente de seu irmão, Macaulay, o eterno astro mirim de “Esqueceram de Mim”. Kieran Culkin avançou como um azarão nas casas de apostas para o posto de favorito na temporada de premiações, confirmado com o Globo de Ouro e o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por “A Verdadeira Dor”.

Eisenberg e Culkin vivem os primos David e Benji que, apesar da proximidade durante a infância e juventude, tornaram-se distantes, tanto geograficamente quanto na maneira como conduzem suas vidas. Após o falecimento da avó, de origem polonesa e sobrevivente do Holocausto, ensaiam um reencontro em meio a uma viagem à Polônia, que receberam como herança. A preocupação (comum entre sobreviventes do Holocausto) é de que seus descendentes não abandonem o seu legado.

Com o intuito de entender suas origens e fortalecer suas identidades, os primos embarcam no que atualmente é conhecido como Turismo do Holocausto. Familiares daqueles que pereceram nos campos de concentração e guetos ou que sobreviveram aos horrores da Segunda Guerra, historiadores e estudiosos sobre os temas visitam os locais, hoje, turísticos – cada qual com seus motivos particulares -, mas, fundamentalmente, em busca de algo intrínseco à natureza humana.

Na Polônia, os locais mais visitados são o Complexo de Auschwitz e Birkenau, o Gueto de Varsóvia e o antigo bairro judaico. Outros filmes abordaram anteriormente o tema, como “Uma Vida Iluminada” (2005), mas é “A Verdadeira Dor”, que, mesmo não sendo tão original quanto se imaginou, joga luz sobre questões não aprofundadas noutros títulos similares. Jesse Eisenberg o faz com extrema habilidade, o que lhe rendeu comparações ao genial Woody Allen.

São nessas questões – temas pouco percebidos, encontrados abaixo da superfície – onde reside a riqueza deste filme. 

Numa das cenas do filme, o grupo de visitantes (incluindo David e Benji) é encorajado a colocar uma pedra sobre o túmulo de Jacob Kopelman Ha-Levi, datado de 1541, a mais antiga lápide da Polônia, localizada em Lublin. Na tradição judaica, é comum colocar pedras sobre os túmulos – ao invés de flores – e uma das explicações para isso é que as pedras representam uma memória duradoura. Partindo deste princípio, ao encontrarem a casa onde viveu sua avó, os primos decidem por homenageá-la, colocando uma pedra justamente na porta de entrada.

Porém, neste momento, surge um vizinho na varanda da casa ao lado, um senhor já de certa idade avançada, indagando sobre aquilo: aquela pedra ali que poderia atrapalhar a entrada de quem mora na casa, afinal, alguém poderia tropeçar e cair, e isso seria um grande problema. Os rapazes tentam explicar, mas o vizinho não compreende o inglês. Então entra em cena o filho deste senhor para ajudar com a barreira linguística. Para o jovem polonês, não há problema algum, mas para o pai, não. Em suas palavras: “Pode ser perigoso. A mulher que mora aí nesta casa pode se machucar. Melhor não. A sua avó não está enterrada aí”.

A dor de “A Verdadeira dor”

O que está implícito nesta cena é o conflito entre aqueles que precisam lembrar e aqueles que preferem esquecer. O pós-guerra na Polônia foi devastador. Com a descoberta dos campos de concentração e extermínio em território polonês, o sentimento de culpa recaiu sobre a população como granizos pontiagudos. Ao contrário dos alemães, que, para lidar com a culpa, optaram pela preservação, educação e manutenção da memória, os poloneses passaram a buscar subterfúgios que os possibilitassem se eximir de qualquer responsabilidade pelas atrocidades cometidas no país durante a guerra. O esquecimento é uma delas.

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Se liga nessa história: logo depois da Segunda Guerra Mundial, Herberts Cukurs imigrou para o Brasil vindo da Letônia. Ele criou os pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas e refez a vida. Mas, em 1950, ele foi denunciado como criminoso de guerra nazista. Essa incrível história real é examinada pelo historiador Bruno Leal no livro “O homem dos Pedalinhos” (FGV Editora), que em breve vai virar filme. Confira aqui o livro, em formato físico e digital.

Em 2018, o governo polonês alterou a Lei do Instituto da Memória Nacional (Polônia), que trata da preservação da memória da história da Polônia (incluindo o período da Segunda Guerra Mundial), para acrescentar uma emenda que, se por um lado, criminaliza o negacionismo do Holocausto, por outro, pune a quem atribua ao povo polonês qualquer participação em crimes de guerra nazistas. O resultado é uma grande controvérsia que inibe estudos acadêmicos ou pesquisas históricas que possam sugerir que poloneses não foram apenas mais uma vítima do regime nazista. Não é difícil imaginar que, futuramente, a Polônia transforme o complexo de Auschwitz-Birkenau num grande estacionamento asfaltado e finja que nada ali aconteceu.

Talvez a verdadeira dor, evidenciada por Jesse Eisenberg, esteja no processo de preservação da memória, da conscientização das tragédias humanas, na colocação de pedras sobre túmulos.

Alex Levy-Heller

Alex Levy-Heller é cineasta, sócio-diretor da Pipa Pictures, BFA em Artes Dramáticas pela University of Nebraska, USA, membro da Academia Brasileira de Cinema, DBCA (Diretores Brasileiros de Cinema e do Audiovisual) e da Associação Brasileira de Cineastas. Dirigiu os filmes: "O Relógio do Meu Avô", "Macaco Tião - O Candidato do Povo", "Christabel" e "Jovens Polacas".

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