Vampiros: um mito em constante reinvenção

Historiadora examina as representações históricas de um dos mitos mais presentes na cultura popular ocidental: os vampiros
4 de fevereiro de 2014
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Vampiros: um mito em constante reinvenção 1
O personagem Drácula representado em um dos muitos filmes sobre o vampiro feitos no século XX. Foto: Universal.

Personagem frequente da literatura, do cinema e também da televisão, o vampiro tem se mostrado em inúmeras formas e com diversas faces, demonstrando sua capacidade de adaptação e reinvenção através dos anos. Porém, o mito das criaturas sugadoras de sangue se perde na aurora dos tempos. Desde sempre, os mais diversos países e culturas contam com a presença destes seres. Da antiga Babilônia às lendas judaicas, da Roma à Grécia antigas, do Egito à China existem histórias sobre vampiros que aterrorizam e espalham a morte por onde passam.

Porém, o vampiro contemporâneo, aquele que mais conhecemos, é bem diferente daqueles propagados pelas lendas. Ele surgiu através da literatura baseado nos relatos do padre beneditino francês Augustin Calmet, enviado no século XVIII, em plena era das Luzes para investigar, a mando da Igreja, um surto de vampirismo no leste europeu. A intenção de Calmet era desmistificar o suposto surto e demonstrar que tudo não passava de histeria coletiva. O que aconteceu foi que, ao final de sua investigação, ele não chegou a uma conclusão precisa. Calmet fez uma compilação de casos e descreveu em detalhes o que testemunhou no Traité sur les apparitions des esprits, et sur les vampires, ou les revenans de Hongrie, de Moravie1, publicado em 1746, tendo uma nova edição revista e ampliada em 1751 que foi traduzida para o inglês, mostrando o alcance de seu tratado. Seu interesse foi desperto em 1732 quando a revista Le Glaneur Hollandais2 publicou em detalhes um caso que deu início à discussão sobre a existência ou não dos vampiros. A história do suposto vampiro Arnold Paul teve repercussão imediata em toda a Europa. A investigação do caso, autorizada pela monarquia austríaca, resultou no relatório Visum e repertum3, que informava sobre a abertura dos túmulos, exumação dos corpos e condições em que foram encontrados. O caso, discutido entre os eruditos e filósofos iluministas, ganhou visibilidade. Obviamente que suas discussões tinham a intenção tanto de desacreditar os casos quanto Calmet. Com o tempo, o assunto foi esquecido e o tratado se tornou relíquia intelectual. Porém, a enorme compilação de casos acabou por promover a crença e colocar de vez o vampiro no mundo moderno.

A redescoberta desta compilação foi feita pela literatura do século XVIII, que se apropriou dos casos e transformou o vampiro. Os vampiros originários dos relatos recolhidos por Calmet não seriam convidados por ninguém para o convívio em sociedade. Eram seres repugnantes, cadáveres reanimados, inchados, vermelhos, com unhas sujas e compridas, cheirando mal e, em alguns casos, com o corpo em princípios de decomposição. Eram mortos vivos e não tinham nada de atraente ou sedutor. Coube à literatura, com maior influência no século XIX, modificar isto.4

Somente em fins do século XVIII e início do XIX é que no encontro do modelo milenar com a estética da época – a dos contos de terror, da gothic novel que nos deu os grandes clássicos como Drácula, O médico e o monstro e Frankenstein, além das telas de Goya e os contos e poemas de Goethe – o vampiro ganhou o status literário.5

No ano de 1819 foi publicado The Vampyre, um conto escrito por John Polidori. O conto deu origem a Lord Ruthven, um aristocrata viajante “de olhos cinzentos e frios e tez lívida, que parece querer provocar angústia nas criaturas mais frívolas”. Atraia mulheres inocentes para se alimentar de seu sangue, tem força sobre-humana e à luz da lua pode curar-se. Este é considerado por muitos como a base da ficção moderna sobre os vampiros. Polidori reuniu alguns elementos que seriam utilizados mais tarde, num texto literário coeso, transformando o monstro dos relatos folclóricos num aristocrata sedutor e perverso, um ser que podia conviver em sociedade e escolher suas vítimas nos mais diversos países por onde viajava. “[…] estabeleceu de uma vez por todas o protótipo para o vampiro da literatura, do teatro e posteriormente do cinema.” Alguns anos depois, de 1845 a 1847, Varney, the Vampire, do inglês James Malcolm Rymer, publicado em folhetins na Inglaterra, contribuiu “com a característica mais contundente ao vampiro: seus longos e afiados caninos que perfuravam o pescoço das vítimas para obtenção do sangue.”6 Outro enriquecimento essencial foi dado por um autor anônimo que escreveu o conto O estranho misterioso, em 1860. Nele, o vampiro dormia durante o dia em um caixão numa cripta da capela de seu velho castelo em ruínas, não comia e não bebia com os humanos, havia sido uma pessoa má e cruel em vida e dominava os lobos ferozes.

Mesmo tendo sido produzidos uma série de histórias e contos de horror no século XVIII, poucos foram sobre vampiros, numa comparação com as outras temáticas sobrenaturais e, menos ainda, em comparação com a produção literária atual. A mudança viria em 1897, quando o vampiro finalmente se tornaria imortal pela pena do escritor Bram Stoker. Conhecendo as características dos vampiros anteriores, ele juntou todos os ingredientes em seu vampiro, que ser tornou o padrão para todos os posteriores.

Para completar, Stoker acrescentou algumas numa mistura de conhecimento das lendas antigas e invenção. Ele criou um ser diabólico, podendo assim ser derrotado pelos símbolos católicos; é a partir dele que o vampiro passa a temer o crucifixo. Também são criações de Stoker: a sensualidade no relacionamento entre o vampiro e sua vítima, o elo profundo que se forma com a vítima que bebe o sangue do vampiro; a necessidade descansar num caixão com sua terra nativa; de convite para entrar nos locais privados (residências); a habilidade da transformação em morcego e pequenos animais, em névoa, o controle das tempestades e não ser refletido em espelhos.7

Entretanto, a mais marcante inclusão de Stoker foi ligar o personagem mítico a um personagem histórico real que ele descobriu em suas pesquisas sobre o folclore e a história, mais especificamente da Transilvânia, o príncipe Drácula. Conhecido por Vlad Berasab, Vlad Draculea ou Vlad Tepes, ele governou a Valáquia, distrito da Romênia, durante o século XV. Bram Stoker usou sua história pra inspirar seu personagem. Seu pai, também Vlad, foi nomeado cavaleiro da Ordem do Dragão, pelo imperador Sigismundo, daí vem o nome Dracul (dragão em romeno).8 Seu filho, Vlad Tepes, ficou conhecido por Draculea (filho do dragão). O apelido Tepes, veio mais tarde, fruto de sua forma preferida de tortura: a empalação, que mantinha suas vítimas em uma lenta agonia por horas até a morte. Ficando assim conhecido como Vlad Tepes ou Vlad, o Empalador. Era sanguinário, mas obviamente, não era um vampiro. (Acima, imagem do manuscrito de Vlad Tepes)

A fama de Drácula atravessou a Europa 400 anos antes do livro de Stoker, através dos manuscritos alemães, eslavos e turcos, e sua imagem de sanguinário e cruel foi difundida por toda a Europa pelos alemães, principalmente os ressentidos pela política nacionalista de Vlad, que os reprimia e matava por serem comerciantes estrangeiros, enquanto ele buscava fortalecer a economia regional dos próprios romenos. Como vingança pintaram-no como o próprio demônio por toda a Europa. Estes manuscritos disseminaram sua fama de governante cruel e diziam que Drácula, para comer o pão, molhava-o no sangue de suas vítimas. Tendo conhecimento destes documentos, Stoker criou o estereótipo do vampiro: o conde Drácula. A partir dele centenas de romances, contos e histórias em quadrinhos foram criados.

A literatura moldou e transformou o monstro até o século XIX. A partir do século XX o cinema assumiu o processo de criação do vampiro e a consolidação de sua imagem, transformando-o sempre e cada vez mais. Entre muitos, um exemplo é a mudança na imagem do vampiro em Nosferatu (1922) e Drácula de Bram Stoker (1992), respectivamente as visões dos diretores Murnau e Coppola. Os filmes, feitos com 80 anos de diferença, trazem as marcas de seus períodos e a possibilidade da análise como representação dos medos ou anseios de suas sociedades. Atualmente, na literatura, no cinema e, principalmente, na televisão, o vampiro é representado cada vez mais jovem, sedutor e humanizado. Consequência do sucesso de Anne Rice e suas Crônicas Vampirescas que, com Entrevista com o vampiro, publicado em 1976, trouxe a narrativa com o vampiro como protagonista buscando a razão para sua existência e compreensão de sua natureza. Para ele, Louis, ser vampiro é um fardo.

A definição do vampiro em Bram Stoker e a mudança de sua imagem e personalidade feita por Anne Rice nos trouxeram aos vampiros atuais de J. L. Smith (Diários do vampiro),9 Charlaine Harris (Southern Vampire Mysteries)10 e, finalmente, a saga Crepúsculo escrita por Stephanie Meyer e adaptada para o cinema causando controvérsias e atingindo grandes vendas e bilheteria. Isto para comentar apenas os mais conhecidos e famosos.

O tema em si é inesgotável, poderíamos escrever centenas de páginas para esclarecer cada ponto, mas devido ao espaço resumimos a discussão. A grande questão é a permanência destes seres em nosso imaginário e sua capacidade de se moldar a cada período, encaixando-se dentro de cada época. O vampiro é imortal por sua persistência em sobreviver em nossos sonhos e medos.

Notas

(1) Tratado sobre a aparição de espíritos e sobre os vampiros ou os revividos da Hungria, da Morávia, etc.

(2) Le Glaneur Hollandais – Revista franco holandesa que circulava na corte de Versalhes (França). O caso Arnold Paul foi publicado na edição número 3 de março de 1732.

(3) Uma cópia do relatório pode ser encontrada no livro de História dos vampiros: autópsia do mito de Jean-Claude Lecouteax.

(4) ARGEL, M. e MOURA NETO, H. (org.). O vampiro antes de Drácula. São Paulo: Aleph, 2008.

(5) COSTA, Flávio Moreira da. (Org.) 13 melhores contos de vampiros. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

(6) BRITES, Claudio. (Org.) O livro negro dos vampiros. São Paulo: Andross, 2007.

(7) MELTON, G. J. O livro dos vampiros. São Paulo: M. Books do Brasil, 2003.

(8) Dracul também pode ser traduzido como demônio, o que aumentou o interesse de Stoker.

(9) Adaptado para televisão como série pela CW (EUA)

(10) Conhecido também como a série Sookie Stackhouse, adaptado para televisão como True Blood pela HBO (EUA)

Como citar este artigo

VIEIRA, Maytê Regina. Vampiros: um mito em constante reinvenção (artigo). In: Café História. Publicado em 4 fev. de 2014. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/vampiros-um-mito-em-constante-reinvencao/ ISSN: 2674-5917.

Maytê Regina Vieira

Licenciada em História pela FAFIUV (UNESPAR) e Mestre em História pela UDESC. Minhas áreas de interesse vão do imaginário ao cinema com ênfase no vampiro. Tento ler e assistir tudo que é produzido sobre vampiros para entender a permanência destes seres míticos e sua evolução. Para conhecer mais sobre minhas pesquisas, acesse meu blog www.mitoseimaginario.com.br

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