Uma união não tão perfeita: o nascimento da Constituição dos Estados Unidos

Diferente do que se pode pensar, a Constituição dos Estados Unidos da América não foi fruto de um consenso entre legisladores; ela nasceu de um tenso debate que mobilizou grupos políticos com diferentes visões sobre o futuro do país.
16 de dezembro de 2021
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O momento de assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América, por Howard Chandler Christy.

No dia 15 de novembro de 1787, os leitores do The New York Journal encontraram, misturado a um punhado de notícias sobre o estado de Nova York, o enérgico artigo de um autor chamado “Brutus” – que mais tarde saberiam ser o pseudônimo usado pelo juiz Robert Yates. O texto dizia: “em um exame cuidadoso, encontraremos que muitas de suas bases de menor importância estão bem desenhadas; nestas há uma especiosa semelhança com um governo livre, mas são insuficientes para justificar sua adoção. A pílula dourada é frequentemente a que carrega o veneno mais mortal”.

A desconfiança de Yates tinha como alvo a Constituição dos Estados Unidos da América, elaborada há apenas dois meses e que agora aguardava a ratificação. Como outros de seu tempo, Yates era contra a ratificação e vinha fazendo de tudo para que o povo e os delegados estaduais de Nova York a rejeitassem. Para ele, a nova Constituição, ao fortalecer o governo central, abriria as portas para um poder tirânico e decretaria o fim das liberdades individuais nos estados. Por isso, era preciso alertar as pessoas quanto ao perigo que aquela jovem Nação estava prestes a enfrentar.

Embora tenha se tornado um símbolo de sua história, a Constituição dos Estados Unidos não nasceu de um consenso entre políticos e pensadores em busca de “uma União mais perfeita”, mas de uma acirrada tensão que tomou conta da sociedade americana no final do século XVIII. Durante quase um ano, contrários e favoráveis à Constituição empregaram todos os meios ao seu alcance para fazer prevalecer a sua posição no debate. Este artigo busca contar essa história, apresentando os seus personagens e os argumentos que eles sustentaram em um momento decisivo para a formação dos EUA.  

Descentralização radical: estados fortes, governo central fraco

Depois de declararem independência, em 1776, as 13 colônias britânicas da América do Norte formaram uma confederação composta por 13 estados semi-independentes, a Confederação dos Estados Unidos. Esses estados viviam uma experiência política republicana singular: eram livres para criar tarifas e arrecadar impostos; todos tinham suas próprias constituições, e algumas foram bem progressistas, defendendo os “direitos de seus cidadãos”; esses estados podiam ainda imprimir o seu próprio dinheiro e formar a sua própria marinha. Não surpreende, assim, que os moradores de Nova York ou da Virgínia, por exemplo, habitando entidades políticas tão autônomas, se vissem primeiro como nova-iorquinos e virginenses e só depois como “americanos”.   

Como os antigos colonos tinham repulsa a governantes, a vida política nos estados foi marcada por uma forte participação popular. A maior prova disso é que todas as constituições estaduais davam amplos poderes ao legislativo.[1] Os deputados eram eleitos pelo “povo” e havia grande rotatividade entre eles. Projetos de leis só poderiam virar leis depois de conhecidos, discutidos e aprovados por convenções locais. Mesmo nos estados onde haviam senados, eles estavam abaixo das assembleias legislativas. Em alguns casos, a desconfiança contra os poderes centrais era tanta que sequer havia a figura do governador. Segundo explica o historiador Isaac Krammick, “o pressuposto dominante era que um governo livre é aquele em que o legislativo do povo governa”.

A Confederação tinha, contudo, um governo central, o Congresso da Confederação. Esse governo ainda não tinha um presidente da República, como hoje, sendo formado apenas por uma câmara unicameral e regido por uma carta constitucional chamada Artigos da Confederação, em vigor desde 1781. Os delegados que faziam parte do Congresso eram escolhidos pelas assembleias estaduais e se reuniam para deliberar questões de interesse comum. O Congresso da Federação assinava tratados internacionais, deveria melhorar infraestrutura interna e manter o elo entre os estados confederados.  

O poder desse governo central era intencionalmente fraco: ele não podia cobrar dívidas, não podia criar impostos (logo, não tinha arrecadação), não podia, sozinho, declarar guerra, e não tinha exército profissional. Não haviam tribunais nacionais e o Congresso precisava de 2/3 dos votos dos delegados se quisesse aprovar qualquer decisão. Nesses Estados Unidos da América, conforme explica Krammick, o poder estava concentrado nas periferias, nas mãos dos estados, e não no centro, isto é, no governo nacional.

Os problemas da descentralização radical

Acontece que esse governo central fraco começou a enfrentar problemas: como não havia exército, ele não conseguia combater corsários que vinham atuando em diversos pontos de sua costa; uma vez que não tinha arrecadação própria, faltavam recursos para pagar dívidas obtidas durante a Guerra de Independência (1776-1783); sua autoridade era insuficiente para mediar os conflitos entre os estados e até mesmo para determinar os mais básicos (e necessários) limites geográficos.

Em 1786, um evento no estado do Massachusetts fez muita gente pensar na necessidade de um exército nacional. Um grupo de agricultores endividados e sem condições de pagar impostos ao governo tentou tomar um arsenal confederado e só foi parado por força de milícias locais. O episódio ficou conhecido como a Rebelião de Shays, batizado em referência à liderança do movimento rebelde, Daniel Shay, um veterano da Guerra da Independência Americana. Horrorizado com o episódio, o veterano general George Washington atribuiu o clima de “insegurança” e “anarquia” nos estados aos Artigos da Confederação, que, em suas palavras, haviam produzido “um governo semifaminto, coxo, que parece estar sempre andando de muletas e claudicando a cada passo.”

A Convenção da Filadélfia

Em maio de 1787, o Congresso da Confederação convocou uma assembleia a fim de repensar, revisar e reelaborar os Artigos da Confederação. Essa assembleia ficou conhecida como Convenção da Filadélfia, ou ainda, Convenção Constituinte. O encontro começou no dia 25 de maio de 1787 e participaram dele 55 delegados, oriundos de 12 estados – Rhode Island foi o único estado da Confederação que não enviou representantes.

Os delegados, todos homens, haviam sido escolhidos por suas assembleias estaduais. A maioria já possuía experiência em negócios públicos e participara dos Congressos Continentais (nome anterior do governo central dos Estados Unidos, surgido em 1774 e existente até a ratificação dos Artigos da Confederação, em 1781, quando se torna Congresso Confederado). Havia entre eles plantadores e comerciantes, mas mais da metade, 31, eram juristas, e 22 tinham ensino superior. A média de idade mal passava dos 40 anos. Para sua presidência, escolheu-se George Washington.

Os debates na Filadélfia duraram quatro meses, estendendo-se até em meados de setembro, e o resultado foi bem diferente do que se previra no momento da convocação da assembleia. A invés de revisar os Artigos da Confederação, os delegados elaboraram um novo documento, partindo do zero, e esse novo documento foi a Constituição dos Estados Unidos da América, a mesma Constituição que rege o país ainda hoje, salvo pontuais alterações que foram sendo feitas ao longo do tempo, por meio de emendas.

A Constituição de 1787 é considerada um dos mais importantes documentos da história dos Estados Unidos. Ela mudou completamente o desenho do governo americano ao propor três poderes separados, um congresso bicameral, a democracia representativa dos Colégios Eleitorais, ao invés de democracia direta, e um presidente como chefe do executivo. Esse novo governo, portanto, seria muito mais poderoso que o anterior, diminuindo, fatalmente, o poder dos estados. Segundo o historiador Vitor Izecksohn, “o impulso centralizador numa República criada sob o pressuposto da luta contra a tirania monárquica era mais forte do que a maioria dos habitantes imaginava”.

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Salão da Assembleia da Pensilvâniaserviu para acolher os delegados durante a Convenção Constitucional de 1787. Em 1776, o Congresso Continental declarou Independência nesta sala e em 1787 a Constituição dos EUA foi também aí debatida e assinada. A maioria dos historiadores considera esta sala uma das salas mais históricas dos Estados Unidos. Fonte: National Park Service.

Mas como foi possível que esse impulso centralizador vencesse o modelo de soberania dos estados? A resposta para essa pergunta pode ser encontrada na maneira como se comportou um determinado grupo de delegados na Convenção da Filadélfia. Os debates da Convenção foram conduzidos e controlados por figuras políticas favoráveis ao fortalecimento do governo central. Alguns deles chegaram com antecedência à Filadélfia, caso de James Madison, George Washington e Edmundo Rudolph, todos os três da Virgínia. Ali, eles se reuniram com três delegados da própria Pensilvânia, Gouverneur Moris, James Wilson e Benjamin Franklin. Todos os seis estavam convencidos, de antemão, de que não havia mais esperança para os Artigos da Confederação.

Madison vinha se dedicando há algum tempo no desenho de um novo governo. Na sua perspectiva, a única forma de impedir que a “anarquia” reinante nos estados levasse a Confederação à bancarrota seria a construção de um governo forte e estruturado. Por isso, nos últimos dois anos, Madison estudara a história e a natureza de diferentes sistemas políticos republicanos. Com os livros de teoria política e história que Thomas Jefferson, embaixador na França, lhe enviava regularmente, ele escreveu manifestos, artigos e ensaios que serviram de antessala para o encontro de 1787.  

Havia entre os políticos pró-governo central, ora chamados de centralistas, ora de nacionalistas, um consenso quanto ao fato de que a Revolução Americana provocara um desequilíbrio de poder em favor do povo, e isso, agora, precisava ser corrigido, pois ameaçava a ordem, o cumprimento das leis e o direito à propriedade. O Penssylvania Packet, um jornal pró-Constituição, escreveria: “o ano de 1776 é celebrado por causa de uma revolução da liberdade. Esperamos que o ano de 1787 venha a ser celebrado, com igual regozijo, por causa de uma revolução em favor do governo”.

Segundo o historiador Alfred Hinsey Kelly, os nacionalistas conseguiram influenciar delegados moderados e melindraram, com sua influência política, delegados que eram contra a diminuição da autonomia dos estados. Uma estratégia que ajudou o grupo a obter êxito foi manter os debates às portas fechadas, sem a participação do povo e da imprensa. A esse debate restrito contribuiu sobremaneira um sigilo de meio século imposto às discussões ali realizadas, de modo que os nacionalistas puderam atuar sem se preocupar em medir as suas palavras ou com os movimentos da opinião pública.[2]

Isso não quer dizer que os trabalhos da constituinte não tenham se dado sem as devidas controvérsias. Elas existiram e foram muitas. Uma das mais árduas teve a ver com a representação que os estados teriam no novo congresso bicameral. Os estados mais populosos queriam que os representantes na câmara fossem em número proporcional à sua população, o que preocupou os estados menos populosos. Os estados do Sul, largamente escravocratas e visando aumentar seu coeficiente eleitoral, proporiam, então, que os escravizados fossem levados em consideração no cálculo, mas os estados do Norte, onde prevalecia o trabalho livre, discordavam, alegando que escravos não eram cidadãos.

A solução para o impasse foi bizarra, conforme explica Izecksohn: “como um compromisso entre a total representação ou nenhuma, decidiu-se que os escravos deveriam contar como três quintos de uma pessoa livre”.[3] Este acordo entre os estados ficou conhecido como “Compromisso dos Três quintos” e foi válido para a Câmara dos Deputados, ao passo que para o Senado, os delegados da Convenção acordaram que cada estado teria direito a dois senadores, independente do número de habitantes.

Ao fim, os delegados nacionalistas souberam se impor, aproveitaram-se de sua influência política e das disputas entre os estados. Nem todos assinaram o documento, é verdade, mas os 39 que o fizeram foi numero mais do que o suficiente para se chegar a alguma legitimidade na Filadélfia. A nova Constituição dos Estados Unidos era enxuta: seus sete artigos tinham apenas 4.400 palavras, mas eram palavras fortes, inovadoras, algumas propositalmente ambíguas, palavras que, conforme vimos, muito em breve mudariam completamente o sistema político dos Estados Unidos e a sua balança de poder.

Para que entrasse em vigor, a Constituição precisava agora ser ratificada por pelo menos 9 estados da Confederação. Isso deveria ser feito em cada estado, nas chamadas “Convenções de Ratificação”. Foi neste contexto que a Nação foi tomada por um fervilhante debate público entre dois grupos antagônicos: federalistas versus antifederalistas.

“Federalistas” e “Antifederalistas”

Os antifederalistas eram contrários à ratificação da nova Constituição. Segundo Izecksohn, eles compunham um grupo heterogêneo, “reunindo defensores dos direitos dos estados, devedores, moradores do interior com poucas posses e defensores radicais da confederação. Muitos deles achavam que um governo central fortalecido os obrigaria a pagar suas dívidas no valor total”. Entre os antifederalistas estavam ainda pensadores, membros das assembleias estaduais e delegados que haviam se posicionado contra a Constituição na Convenção da Filadélfia. Esse grupo reconhecia os problemas enfrentados pela Confederação, mas não estava disposto a enfraquecer os governos estaduais em detrimento do empoderamento do governo central. Entre eles havia um sentimento de traição – muitos entendiam que os delegados na Filadélfia deveriam ter apenas revisado os Artigos da Confederação, e não produzido uma nova Constituição.

Os federalistas, por seu turno, eram favoráveis à Constituição. Eles acreditavam que ela era a solução para os impasses entre os estados e os demais problemas enfrentados pela Confederação. Muitos eram nacionalistas no sentido que o século XIX em breve iria consagrar: tinham em mente o espírito de uma única Nação, ou ainda, uma comunidade nacional que uniria homens e mulheres, de ponta a ponta. Formavam um grupo também heterogêneo, mas sobressaiam nele comerciantes urbanos e grandes proprietários. Eram, em geral, de acordo com Izecksohn, mais ricos e influentes que a sua contraparte. Também tinham mais escolaridade, controlavam a imprensa e eram mais organizados.

Federalistas e antifederalistas duelaram por meio de discursos em cafés, jornais, tabernas, panfletos, livros, artigos, cartazes e manifestos – era assim que apresentavam ao público seus argumentos contra ou a favor à Constituição. Do lado federalista, a publicação mais importante foram os Federalist Papers, de 1788. Escrito por Alexander Hamilton, John Jay e James Madison sob o pseudônimo Publius, os Artigos Federalistas eram uma série de 85 ensaios que apontavam a importância da Constituição e de um governo central forte. Nesta brochura, diz o historiadora Susan-Mary Grant, “a posição federalista foi não somente definida, mas refinada”.

Já os antifederalistas publicaram de forma mais dispersa, sem que houvesse uma brochura como o mesmo peso dos Federalist Papers. O que mais se assemelha a esse material foi uma série de 16 artigos antifederalsitas publicada entre outubro de 1787 e 1788, sob uma variedade de pseudônimos, no The New York Journal – alguns deles de autoria de “Brutus”, pseudônimo de Robert Yates, o juiz citado no início deste artigo.

Os federalistas defendiam que o governo central deveria ser capaz de recolher impostos, unificar as forças militares e controlar a emissão de uma só moeda nacional. Para eles, o governo central regularia o “excessivo impulso de liberdade dos estados”, sendo capaz ainda de garantir a segurança e aplicar os recursos da União em áreas consideradas estratégicas. Apoiavam, por isso, um sistema bancário forte e centralizado, podendo determinar políticas fiscais e realizar financiamentos de fôlego.

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Alexander Hamilton, por John Trumbull.
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Capa de uma versão de “Os Artigos Federalistas”.

Os antifederalistas desconfiavam de todas essas prerrogativas reservadas ao novo governo central. Ao invés do judiciário nacional, desejavam continuar com as cortes estaduais de justiça; eram contra a ideia de Colégio Eleitoral porque este arranjo favoreceria as elites políticas e econômicas em detrimento do povo. A ideia de criar um único Estado americano e regido por leis nacionais era, na perspectiva dos antifederalistas, um assalto às particularidades de cada um dos estados que compunham a Confederação.

Os federalistas tinham pressa na ratificação. Diziam que se a Constituição não fosse aprovada logo, o país poderia cair numa luta seccional e ser dominado por movimentos populares incontroláveis. Alexander Hamilton, sob a alcunha de Publius, escreveu que “uma firme União será a oportunidade máxima para a paz”, além de funcionar como “barreira contra o facciosismo e a insurreição domésticas”. Todo atraso, neste sentido, era um risco ao futuro dos Estados Unidos. Mas para os antiferalistas, tudo isso não passava de um grande embuste. A posição antideralista neste ponto é muito bem resumida pelos cientistas políticos Gabriel E. Vitullo e Clayton M. Cunha Filho:

“(…) houve um deliberado esforço de parte dos federalistas destinado a inibir o debate e calar toda a oposição, fazendo um uso sistemático de burlas, agressões, censura, calúnias, ameaças e manipulação. Houve, também, uma clara decisão de insuflar o medo da população, exagerando a descrição das calamidades presentes e dos riscos futuros como única forma de atingir seus interesses, pois os federalistas sabiam que vários dos elementos centrais do plano de governo proposto jamais seriam tolerados pelas classes majoritárias”.

Outro elemento que incomodava muito os antiferalistas na Constituição de 1787 era a falta de garantias paras as liberdades individuais. No The Independent Gazetteer, da Filadélfia, um autor antifederalista sob o pseudônimo de “um velho liberal” era taxativo sobre isso: “sem uma Declaração de Direitos que firmemente assegure os privilégios da população, o governo estará em permanente risco de degenerar em uma tirania”.

Os vencedores

Os resultados das convenções estaduais de ratificação mostram que o debate entre federalistas e antiferalistas foi árduo. Em Nova York, houve a votação mais apertada: no estado, os federalistas obtiveram 30 votos, contra 27 dos antifederalistas. Em New Hampshire a margem dos federalistas também foi apertada: 187 votos favoráveis e 168 contrários. Ao fim, prevaleceu a força política dos federalistas e o seu poder de mobilização. Os cálculos de Isaac Krammick dão conta deste esforço hercúleo: Publius, pseudônimo usado pelos federalistas Alexander Hamilton, James Madison e John Jay produziria nada mais, nada menos, do que 175 mil palavras em defesa da nova Constituição.

Em 1788, a Constituição Federal dos Estados Unidos foi ratificada, e em 1789 o documento entrou em vigor, sendo George Washington eleito, em seguida, o primeiro presidente. O modelo federativo que organizaria os Estados Unidos dali em diante criou um país completamente diferente. Para voltar à metáfora de Krammick, a balança de poder fora revertida: o poder estava agora no centro [no governo central, agora chamado de federal], e não mais nas periferias [nos estados]. Com isso, explica o autor, as antigas elites coloniais retomavam o seu velho protagonismo, enquanto que o homem comum perdia parte da liberdade advinda da Revolução. Nas palavras da historiadora Jill Lepore, “a Constituição redigida na Filadélfia funcionou como um freio para a Revolução, como uma interrupção de seu radicalismo; se a Revolução havia feito a balança pender para o lado da liberdade, a Constituição a fazia pender para o lado do governo”.  

Memória

Com a passagem do tempo, a vitória dos federalistas se consolidou também no campo da memória política. Na década de 1960, o historiador Forrest McDonald já havia notado como isso estava presente desde a semântica: com a criação do governo federal, os federalistas inverteram os termos que nós usamos hoje para designar aquele debate político. Os antifederalistas não chamavam a si mesmos assim. O termo “antifederalistas” designava aqueles que se opunham ao estabelecimento de um governo nacional sob a uma constituição. Mas os antifederalistas eram contra um governo central e nem contra constituições nacionais, mas apenas contra aquela Constituição de 1787 e aquele modelo de governo nacional. Os antifederalistas, na verdade, talvez sido os mais empenhados federalistas, pois acreditavam fielmente na Confederação, e ao protestaram contra o documento redigido na Convenção da Filadélfia, acreditavam estar protegendo a Confederação dos verdadeiros antifederalistas, isto é, aqueles que desejavam tirar o poder dos estados confederados e concentrá-lo no governo central.

Segundo ainda McDonald, esse processo de enquadramento do passado nacional nos Estados Unidos também envolveu a desqualificação dos antifederalistas, taxados pelos federalistas de ignorantes, uniformes, desinformados e sem princípios. Mas os antifederalistas, sublinha McDonald, tinham argumentos tão inteligentes e sedutores quanto os dos federalistas, e seus argumentos, mesmo passados mais de 200 anos desde a redação da Constituição, ainda são atuais, apontando os limites da democracia estadunidense. 

Mas nem tudo foi derrota para os antifederalistas. Em 1791, o movimento conseguiu uma vitória importante ao aprovar 10 emendas constitucionais que salvaguardavam os direitos dos cidadãos frente a este novo e forte governo central. Essas emendas ficaram conhecidas como Bill of Rights (Carta de Direitos). Segundo Izecksohn, “elas afiançavam, entre outras garantias: as liberdades de manifestação, de imprensa, de religião, o direito de ser julgado por um júri popular, o direito a portar armas, o direito a processo legal”. Para o historiador, trata-se do maior legado político dos antifederalistas.

Referências

BARBASH, Fred. How James Madison doctored the story of the Constitutional Convention of 1787. In: The Washington Post, 18.nov.2015. Disponível aqui. Acesso: 6.dez.2021.

BEEMAN, Richard. Plain, honest men: the making of the American Constitution. Nova York: Random House Incorporated, 2010.

BILDER, Mary Sarah. Madison’s Hand: Revising the Constitutional Convention. Cmabridge: Harvard University Press, 2015.

BURGESS, John William. Recent changes in American constitutional theory. Noa York: Columbia University Press, 1923.

FILHO, Clayton M. Cunha; VITULLO, Gabriel E (Org.). Os antifederalistas – o outro lado do debate constitucional estadunidense. Brasília: Editora UnB, 2020.

IZECKSOHN, Vitor. Estados Unidos: uma História. São Paulo: Editora Contexto, 2021.

KLARMAN, Michael J. The Framers’ Coup: The Making of the United States Constitution. Nova York: Oxford University Press, 2016.

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Como citar este artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Uma união não tão perfeita: o nascimento da Constituição dos Estados Unidos (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/uma-uniao-nao-tao-perfeita-a-constituicao-dos-eua/ ISSN: 2674-5917. Publicado em 16 de dez. 2021.


[1] É verdade que boa parte dos escravizados, que representavam um quinto da população do país, não gozou da liberdade apregoada pela Declaração de Independência, mas a escravidão declinou em várias regiões, especialmente nos estados do Norte.

[2] Alguns historiadores, por isso, chegam a dizer que o que aconteceu na Filadélfia pode ser caracterizado como um golpe de estado, e que a declaração de 1787 pode ser vista como um documento ilegal.

[3] A questão da escravidão foi abordada em outras duas cláusulas da Constituição. Uma delas versava sobre o tráfico negreiro (ficou decidido que seria abolido até 1807) e a outra legislava sobre a questão dos escravos fugidos (ficou definido que o escravo que fugisse para um estado onde a escravidão não fosse legalizada poderia ser reconduzido ao estado de origem). Izecksohn nos chama a atenção para algo curioso: os termos “escravos” e “escravidão” não aparecem na Constituição.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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