O que uma psicanalista tem a dizer sobre a pandemia do novo coronavírus?

Eliane Schermann explica: “cada subjetividade recorre à sua fantasia particular para responder ao trauma. Nesta perspectiva, a resposta ao trauma é algo muito singular”.
30 de abril de 2020
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Psicanalista Eliane Schermann fala sobre a pandemia do novo coronavírus
Eliane Schermann explica: “cada subjetividade recorre à sua fantasia particular para responder ao trauma. Nesta perspectiva, a resposta ao trauma é algo muito singular”. Foto: Eliane Schermann

A pandemia do novo coronavírus, causador da doença COVID-19, é um evento que “nos desorganiza e nos deixa sem chão. Mas alguma resposta haveremos de dar a esse triste evento”. Quem afirma é a psicanalista Eliane Schermann, doutora em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da UFRJ e membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

Em entrevista ao Café História, a especialista analisa os efeitos sociais e individuais causados pela doença que já infectou mais de 3 milhões de pessoas no mundo e vitimou mais de 200 mil. À luz dos escritos de Freud e Lacan, a Schermann discute o comportamento do capitalismo na crise, a postura do presidente Jair Bolsonaro diante da doença, nossas defesas e fantasias em meio a “pulsão de morte” provocada pelo vírus. E apesar de acreditar em nossa capacidade de reposta à crise, ela faz um alerta: embora os pós-guerras tenham registrado mobilizações solidárias, o homem nunca deixou de lado o “narcisismo das pequenas diferenças”.

Eliane Zimelson Schermann é psicanalista, Doutora em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da UFRJ. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

Confira como foi a conversa com a psicanalista, que já colaborou com o Café História, no artigo “A tragédia de Édipo e a invenção da psicanálise”.

Para ler outros entrevistas e conteúdos sobre a pandemia, clique aqui.

Os historiadores falam bastante em “trauma” (um conceito da medicina e da psicanálise) para se referir a momentos sociais marcados por grandes rupturas e violências. Será que a pandemia deste coronavírus será um “trauma social”? Como você vê o uso deste conceito para se referir a fenômenos sociais?

Partirei da diferença entre o que é, na psicanálise, próprio ao conceito de inconsciente, ou seja, o que é, por exemplo, um capítulo esquecido ou censurado de uma história de desejo, e o que poderia ser referido à noção de trauma social.

Podemos recorrer ao ensino de Lacan para abordar diversas definições para o inconsciente: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, com seus deslocamentos e condensações de fala, interrupções, equívocos linguísticos, enfim, “o inconsciente é o discurso do Outro”; é alteridade. Assim, a essência da teoria psicanalítica se apoia no conceito de que “o inconsciente é um discurso sem fala”.

Trauma é uma palavra que vem do grego e, como você bem disse, refere-se a uma lacuna, a um hiato, a uma ruptura em um discurso, seja particular ou social.  No trauma inconsciente há algo que é peculiar e singular a cada subjetividade. Cada sujeito vai lidar com e responder àquilo que o surpreende, como essa pandemia, a partir dos recursos fantasmáticos dos quais ele dispõe inconscientemente, ou seja, os recursos que estão balizados por sua fantasia. Cada subjetividade recorre à sua fantasia particular para responder ao trauma. Nesta perspectiva, a resposta ao trauma é algo muito singular. E pode ser aproximado à violência, pois o psiquismo é tomado pela surpresa, não encontra recursos previamente simbolizados.

Contudo, essa noção de trauma poderia ser estendida ao social, já que essa pandemia nos surpreendeu a todos. Quando evocamos o social estamos nos reportando a um conjunto de subjetividades. Um simples conjunto de pessoas não constitui um grupo. Freud mostra que para isso é preciso o fator de uma identificação, quer seja a um líder, quer seja um acontecimento ocorrido entre os membros de um grupo, para que haja laço social. Por exemplo, além de uma identificação com um líder que expressa um pensamento comum, um grupo pode se manter coeso por atravessar uma situação de pânico que assola o conjunto, como uma pandemia. Neste sentido, podemos sim considerar que estamos atravessando um trauma social, pois depois dele dificilmente alguém será igual ao que era antes.

Essa pandemia desorganiza nossas certezas e desestrutura nossos comportamentos. Você pode falar um pouco mais sobre isso, do ponto de vista da psicanálise?

Freud discorre sobre o termo trauma incluindo-o no vocabulário psíquico ao nomear uma situação com a qual ainda não estamos preparados para lidar. Um evento traumático é um momento inaugural: “eu nunca tinha vivido nada assim antes, nada em minha história biológica ou ainda, nada em minha vivência educacional me havia preparado para essa experiência”.

Lacan nos ensina sobre um registro psíquico que é da ordem de uma impossibilidade de dizer tal o impacto que é feito ao ser. Esse “ser” que buscamos para nos dar uma identidade está alhures, está “por vir”. Ele nomeia esse registro psíquico de real. Trata-se de algo que nos pega de surpresa e que deixará, certamente, suas marcas. Porque até aquele momento não tínhamos encontrado nada em nosso registro imaginário ou simbólico que pudesse responder àquele algo novo que nos surpreendeu. Por isso, temos a sensação de desamparo, de exílio de si mesmo. Por isso essa pandemia nos desorganiza e nos deixa “sem chão”. Mas alguma resposta haveremos de dar a esse triste evento.

Tenho visto muitos intelectuais e acadêmicos, principalmente na minha área, história, especulando sobre cenários pós-pandemia. Quase todos são unânimes em dizer que o mundo “não será como antes” e que teremos um “novo normal”, variando entre otimismo e o pessimismo. Por que será estamos tão preocupados, já agora, com esse futuro pós-pandemia? Acho que isso tem acontecido também na psicanálise, não?

Como eu estava comentando, ao atravessarmos uma experiência de desamparo, a tendência do ser humano é buscar referências simbólicas para não se decair no extravio. Sabemos que, apesar de termos um relógio biológico que nos indica o passar do tempo (o passado, presente e futuro), o tempo é um registro psíquico, que os psicanalistas, chamam de tempo lógico. O passado pode estar “aqui e agora” influenciando o modo de pensar as experiências de vida. A psicanálise não pode antecipar nem prever, a psicanálise nos ensina a buscar as causas de um modo de viver e encontrar um modo de manejá-lo no pensar atual. Uma formação do inconsciente: um sonho, um sintoma, um ato falho, equívocos da linguagem são manifestações de desejos inconscientes. Eles dizem mais das causas do que das previsões. Será que o mundo “não será como antes”? Teremos “um novo normal”? Embora acredite que o mundo não será como antes, o medo e a angustia, este período que estamos atravessando trará novas respostas. O Homem é um ser muito adaptativo.

Uma psicanalista fala sobre o coronavírus

Jean Paul Sartre já dizia que “o inferno são os outros”! Slavoj Zizek fala da “insustentabilidade do atual modelo econômico, exigindo um pensamento além do financeiro e do lucro”. É reflexão quase unânime hoje sobre a necessidade da expansão da solidariedade no âmago da humanidade, sem que isso implique na perda da iniciativa na medida em que o homem precisa colocar algo de si no seu percurso de vida. No entanto, sabemos que houve uma expansão dessas mobilizações solidárias nos pós-guerras embora o homem nunca tenha deixado de lado o “narcisismo das pequenas diferenças”, nem a segregação que exila o “diferente”.

Há alguns dias, um perfil no Instagram me provocou com a pergunta: por que em situação de crises , a humanidade, apesar das adversidades, desenvolve ciência, tecnologia e cultura de forma ainda mais admirável, superando-se em um momento extremamente duro? Eu ainda não consegui produzir uma resposta, mas refleti a respeito. Eu acho que a minha interlocutora está certa em um ponto: as pessoas realmente são solidárias e podem brilhar mesmo na crise mais profunda. Por outro lado, penso eu, é também na adversidade que revelamos o nosso pior lado, vide as imagens de pessoas brigando por papel higiênico em supermercados. Parece que a crise revela o que há de pior e de melhor em nós. Você concorda com essa ambiguidade?

Eu também me indago se a humanidade consegue estruturar-se de uma nova forma. Freud escreve uma bela carta em resposta a Einstein ao ser por ele indagado “Por que a guerra?”. Nesta carta de 1932, ele se pergunta sobre os problemas da civilização e se existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra. Freud fala então sobre os progressos da ciência que vinham adquirindo suma importância e discussão sobre os assuntos relativos à vida e à morte, ao além do principio do prazer. Discorre sobre diversas questões como a busca do homem por segurança e por coletividade, muito embora fosse subjugado por preceitos e preconceitos até chegar a questionar se seria possível controlar a evolução da mente humana de modo a torná-la à prova do ódio e da destrutividade. Então ele afirma que há no psiquismo o predomínio da pulsão de morte sobre a qual já vinha discutindo em suas obras desde os anos 20. Lá se vão 100 anos! Para então Freud concluir que a civilização se desenvolve através do fortalecimento da reflexão sobre a ambiguidade entre pulsões de vida e de morte e, predominantemente, ao refletir sobre o domínio da pulsão de morte que luta contra Eros.

No entanto, resta-nos a esperança ao nos basearmos nos ditos dos psicanalistas e pensadores da atualidade. Há um discurso que questiona constantemente os saberes estabelecidos. Lacan o chama de discurso da histérica. A impotência de saber que seu discurso provoca, animando-se do desejo de criar novos saberes, revela que há uma impossibilidade de governar assim como é impossível educar. Freud já o dizia: existem três saberes que são da ordem do impossível – educar, governar e psicanalisar. Isto porque são da ordem do registro real que sempre surpreende. E que provocam a criação de algo novo!

Acho que todos estamos (ou deveríamos estar) chocados e indignados com a posição do presidente Jair Bolsonaro diante da pandemia. Em declarações recentes, ele minimizou a doença e o sofrimento causado por ela. Em entrevista recente à Folha de S.Paulo, a psicanalista Miriam Chnaiderman, explicou a postura do presidente da seguinte maneira: “É uma coisa absolutamente autorreferente, que quer o poder a todo custo, que pensa só na reeleição. É o neoliberalismo e o egoísmo que ficam em questão com o que está acontecendo. (…) Se você não tem o que a gente chama de empatia, se não é tocado por um mundo que não é o seu, é terrível. É a não compaixão. Quem elogia a tortura, quem admira torturador, não se coloca no lugar do outro. As pessoas morrem de medo de se colocar no lugar do outro porque se sentem frágeis, se sentem podendo elas degringolarem, de ficarem sem nada.” Você concorda?

Concordo literalmente com a abordagem de Miriam Chnaiderman a respeito do presidente e de sua postura indigna em relação à população que deveria, como dever ético e social, proteger. Os efeitos subjetivos do capitalismo atual sobre os sujeitos que são apalavrados pelo discurso do poder, do egoísmo e do valor individualista tratam o outro, não como seu semelhante, mas como pura mercadoria que serve para a sua própria rentabilidade. Neste discurso em que predomina a competição imaginária, a vida do outro pouco valor tem.

“Os efeitos subjetivos do capitalismo atual sobre os sujeitos que são apalavrados pelo discurso do poder, do egoísmo e do valor individualista tratam o outro, não como seu semelhante, mas como pura mercadoria que serve para a sua própria rentabilidade.

Aliás, o outro passa a adquirir um cunho persecutório para aquele sujeito e consequentemente deve ser eliminado. O real, que surpreende, real impossível de ser dito pode estar relacionado a um gozo da exceção em que prevalece a pulsão de morte e que pode fazer com que o sujeito se considere a lei e o único (“o rei sou eu!”, contudo, sabemos que “o rei está nu”). Assim, ligar o real ao simbólico pode permitir ao sujeito, em sua “inefável e estúpida existência” (expressão de Lacan), perceber-se como assujeitado à falta, à castração, à destituição subjetiva do narcisismo, o que lhe traria a possibilidade de empatia ao outro também faltante por estar atravessando os mesmos dissabores contingentes, como essa pandemia.

Como citar esta entrevista

SCHERMANN, Eliane Zimelson. O que uma psicanalista tem a dizer sobre a pandemia do novo coronavírus? In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/uma-psicanalista-fala-sobre-novo-coronavirus/. Publicado em: 30 abr. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [informar a data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

3 Comments Deixe um comentário

  1. Há muitas contradições nesse discurso, mas isso é compreensível, até mesmo porque a autora diz que cada sujeito age e reage de sua forma peculiar, assim é o Presidente, tenta agir de forma a expulsar o medo e o pânico dos cidadãos, enquanto outros com tamanho medo tocam o terror nos demais, mas são formas de interagir diante do suposto novo, tão velho que chega a se dizer novo, ou sej a morte é natural no seu devido tempo…

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