Ha cerca de quatro meses, pela primeira vez, uma pessoa na China contraiu a Covid-19, não se sabe ainda muito bem como ou em quais circunstâncias. Desde então, entretanto, o vírus, popularmente conhecido como “novo Coronavírus”, se espalhou pelo mundo, a ponto da Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar estado de pandemia.
No momento em que este texto é escrito são mais de 302 mil pessoas infectadas, distribuídas por mais de 150 países. No Brasil, o número de mortos já está na casa das dezenas. A Itália, epicentro agora do contágio, conta os seus mortos na casa dos milhares. Na Espanha, a pandemia também avança, assim como nos Estados Unidos. As autoridades públicas preveem uma catástrofe global que pode durar meses.
Embora pandemias sejam quase sempre discutidas e examinadas por sanitaristas, microbiologistas e infectologistas, entre outros profissionais da área médica, os historiadores da saúde e da ciência também têm o que dizer sobre esse tipo de fenômeno. Em entrevista exclusiva ao Café História, o historiador peruano Marcos Cueto, editor científico da Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professor desta mesma instituição, explica que as respostas insuficientes de diversos sistemas de saúde a atual pandemia se deve, entre outros motivos, a anos de desinvestimento neoliberal.
“As políticas neoliberais que se extenderam pelo mundo desde os anos 1980 enfatizaram a redução do Estado a uma estrutura mínima, promoveram a privatização de serviços e empresas públicas, exaltavam o lucro das empresas privadas no setor da saúde, criaram tarifas sobre os serviços sociais estatais; tudo com o falso pretexto de que assim criariam bem-estar para todos. Com as mudanças neoliberais, muitos sistemas de saúde adotaram um mal entendido “gerencialismo” e passaram a empregar termos que até então eram desconhecidos na área da saúde, por exemplo, referindo-se a pacientes como ‘clientes’ a quem tinham de satisfazer com ‘eficiência’, ‘qualidade’ e ‘produtividade’.”
Marcos Cueto é historiador, editor científico da Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, e professor da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, autor de trabalhos sobre epidemias no Perú e na América Latina e coautor, com Theodore M. Brown e Elizabeth Fee, de um livro sobre a história da Organização Mundial da Saúde intitulado The World Health Organization, a History (New York: Cambridge University Press, 2019).
Confira, na íntegra, como foi essa conversa com Marcos Cueto, realizada a distância.
Eu não quero reivindicar nenhum tipo de “história mestra da vida”, ou seja, nenhuma ideia de história que “explica” ou que “ilumina” os nossos passos no presente. Mas o que a história da ciência e da saúde, especialmente a história das grandes epidemias, pode nos ensinar a fim de enfrentar a crise que estamos vivendo hoje?
Esse episódio revela os grandes problemas da história e da sociedade contemporânea: saúde e enfermidade não são somente assunto de cientistas e sanitaristas e que há sempre uma dimensão política envolvida. Em termos históricos, esta pandemia revela como, nos últimos anos, governos autoritários populistas de direita atacaram com torpeza a ciência e a saúde pública, além de diminuírem os recursos da pesquisa cientifica e do sistema público de saúde. As repostas insuficientes a esta pandemia são o resultado de anos de respostas insuficientes aos problemas de saúde como um todo. Como no passado, hoje, a ausência de liderança de governantes, assim como a xenofobia, a desinformação, o pânico, a desordem e o caos também agravam a calamidade sanitária.
Parece-me que uma diferença importante entre esta pandemia e outras, no passado, é a enorme circulação social de dados e informações. Todos os dias aparecem em nossas telas de celular dados sobre a doença, possíveis tratamentos e remédios miraculosos, artigos científicos e especialistas de todo tipo falando o que fazer e o que não fazer. Você concorda? Se sim, em que medida esse novo cenário nos faz entender a ciência e a saúde de uma forma também diferente?
Sim, concordo. Nos últimos anos, epidemias como Aids, H1N1, Ebola e Zika foram também discutidas pela internet, mas, sem dúvida, com o Covid-19 a intensidade deste debate é muito maior. Alem disso, o conhecimento e o aprendizado do público leigo são maiores. Experiências similares têm colocado em discussão o conceito “Ciência cidadã”, definida como os esforços de cidadãos informados não adscritos em comunidades médicas profissionais por comprender e mudar as politicas sanitárias. Líderes comunitarios, agentes de saúde, ativistas, jornalistas e público leigo intervem e tem que intervir no conteúdo e no uso da ciência médica e da saúde. O ideal é criar mecanismos para melhorar não somente a governança ambiental e sanitária, mas também para assegurar a participação das comunidades na tomada de decisões e participação nos programas sociais.
Fomos negativamente surpreendidos pela velocidade de propagação do Covid-19. Porém, estamos sendo surpreendidos também por algo positivo no meio disso tudo: uma enorme solidariedade entre cientistas e institutos de pesquisa. Há uma grande troca de informações sobre a doença, o que talvez nos ajude mais rapidamente a encontrar uma cura ou um tratamento. Será que o paradigma da “ciência aberta” sai fortalecido desta crise global?
Sem dúvida, a ciência aberta facilitará a rápida disseminação de resultados de novas pesquisas e experiências sanitárias. Mas os periódicos científicos no mundo que oferecem acesso aberto aos artigos são mais ou menos 30 % dos periódicos mundiais; uma quantidade insuficiente. Outro problema: infelizmente, acho que a colaboração entre cientistas e sanitaristas não está sendo totalmente valorizada e estão sendo criados novos obstáculos políticos para que isso ocorra. Por exemplo: a xenofobia contra a China – de um congressista brasileiro filho do Presidente da República e pelo Presidente dos EUA – pode impedir uma maior colaboração com um país que têm pesquisas fundamentais. Além disso, no caso Brasileiro não há um esforço a fim de formar uma coalisão nacional e nem de recrutar o apoio de sanitaristas que desempenharam um trabalho de destaque nos governos de Lula e de Dilma, bem como o de organizações de prestígio internacional, caso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), uma organização que vinha criticando os efeitos perversos do congelamento de recursos, os cortes de gastos e o desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Aqui é importante recordar ainda as palavras do editor da revista Science, o pesquisador H. Holden Thorp, que criticou recentemente Donald Trump depois que o presidente norte-americano pediu rapidez dos cientistas no desenvolvimento de uma vacina contra o Covid-19: “Você atacou a ciência nos últimos 4 anos, cortou verbas, chamou os cientistas de mentirosos e agora quer velocidade? Ciência não se faz da noite para o dia.”
Em artigo recente publicado em História, Ciências, Saúde – Manguinhos (HCSM), você sublinha que a pandemia de Convid-19 é produto, dentre outras coisas, de forças econômicas que desencadearam o neoliberalismo. Como o avanço do neoliberalismo pode nos ajudar a compreender o desencadeamento desta crise e suas consequências?
As políticas neoliberais que se extenderam pelo mundo desde os anos 1980 enfatizaram a redução do Estado a uma estrutura mínima, promoveram a privatização de serviços e empresas públicas, exaltavam o lucro das empresas privadas no setor da saúde, criaram tarifas sobre os serviços sociais estatais; tudo com o falso pretexto de que assim criariam bem-estar para todos. Com as mudanças neoliberais, muitos sistemas de saúde adotaram um mal entendido “gerencialismo” e passaram a empregar termos que até então eram desconhecidos na área da saúde, por exemplo, referindo-se a pacientes como “clientes” a quem tinham de satisfazer com “eficiência”, “qualidade” e “produtividade”.
Mais graves ainda foram as ideias de que as intervenções na área da saúde tinham que ser “custo-efetivos” e uma clara uma contribuição ao crescimento econômico o que questionava o conceito da saúde como um direito cidadão e uma obrigação do Estado. Isso induziu ao abandono de programas abrangentes nos sistemas de saúde. A prevenção, a equidade, a cobertura e a vigilância epidemiológica ja não foram prioridades nos sistemas de saúde.
Em que medida essa pandemia pode impactar a forma como historiadores da saúde fazem suas pesquisas? Como a história global pode contribuir para a análise do Covid-19?
A história global sem dúvida permite não somente comparações entre a evolução dos sistemas de saúde do Brasil e a Europa, como também a observação dos contrastes e das similitudes com os países vizinhos ao Brasil. Nas respostas ao Covid-19, o governo brasileiro esta muito mais atrás que lideranças na Argentina e no Peru, que têm uma postura muito mais responsável.
Na história da saúde das últimas décadas, enfatizou-se bastante a história cultural e procurou-se iluminar aspectos fundamentais do passado; mas depois de esta epidemia, poderíamos dar maior importância a história das politicas sanitárias, aos eventos sanitários que mobilizam a sociedade contemporânea ou abordagens na área da saúde que envolvam o meio ambiente, as mulheres e doenças negligenciadas. Além disso, os historiadores da saúde tem que entrar com maior empenho no debate da História Pública e da Divulgação Científica e interagir com públicos mais amplos que o da própria academia.
Como citar esta entrevista
CUETO, Marcos. O que um historiador da saúde tem a dizer sobre a pandemia do novo coronavírus (Covid-19)? Entrevista de Marcos Cueto a Bruno Leal. In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/um-historiador-da-saude-fala-sobre-novo-coronavirus/. Publicado em: 30 mar. 2020. Acesso: [informar data].