“Este é um evento que, em menor ou maior grau e em momentos diferentes, todos os países são atingidos. Uma coisa é assistir à um evento internacional, outra coisa é ser participante dele, mesmo como possível vítima, e ver praticamente todos os lugares importantes e famosos do mundo preocupados com a mesma coisa”.
Bruno Leal entrevista João Felipe Ribeiro
Uma das principais diferenças entre a pandemia de Convid-19 e outras pandemias no passado é a velocidade com que se dá a propagação viral. Não, talvez, porque o SARS-CoV-2 (vírus que causa a doença Covid-19) seja mais propagável do que todos os seus antecessores (ainda faltam estudos conclusivos quanto a isso), mas porque o nosso mundo está cada vez mais conectado. Fluxos populacionais em permanente dinâmica, viagens de negócios interligando diversas megalópoles, transnacionais descentralizadas, espalhadas por diversos países, hábitos alimentares e costumes modulados.
Por outro lado, talvez seja essa mesma globalização a única força realmente capaz de conter a propagação deste vírus e de outras tantas doenças, através, por exemplo, do fortalecimento de redes informacionais, da cooperação internacional, de trocas de expertise, equipamentos e recursos humanos.
Esse é um debate, portanto, que interessa não só a infectologistas e microbiologistas, mas também a geógrafos. Por isso, conversamos com João Felipe Ribeiro. Ele é formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), leciona há 30 anos no Ensino Básico das redes pública e privada no RJ e há 16 anos em cursos preparatórios para o CACD – Concurso de admissão à carreira diplomática. Nos últimos anos, Ribeiro também mantém um canal no YouTube, no qual há ótimos vídeos sobre o novo Coronavírus.
Como você, um geógrafo, tem entendido a pandemia de Covid-19?
Os geógrafos têm obsessão locacional. O “onde” para a gente é importante demais. Essa pandemia escancara esse mundo multiescalar dos dias atuais com local e o global cada vez mais próximos.
Para além do medo e tristeza pela situação geral eu estou impressionado em testemunhar um evento realmente global, mais global do que assistir uma Olimpíada ou a decisão de uma copa do mundo, porque dessa vez nós não somos apenas espectadores.
Este é um evento que, em menor ou maior grau e em momentos diferentes, todos os países são atingidos. Uma coisa é assistir a um evento internacional, outra coisa é ser participante dele, mesmo como possível vítima, e ver praticamente todos os lugares importantes e famosos do mundo preocupados com a mesma coisa.
Nas redes sociais você pode ver celebridades do esporte, da música, do cinema, do mundo todo tratando do mesmo tema. Isso é realmente muito impressionante.
De que forma essa epidemia se diferencia de epidemias do passado, isto é, aquelas que ocorreram antes da nossa atual fase de globalização?
A diferença fundamental é a velocidade dos fluxos no mundo atual. Partindo da lógica que a globalização tem raízes mais antigas, com os diversos movimentos de integração entre lugares ao longo da história, é fundamental diferenciar a intensidade dessa globalização após a Segunda Guerra Mundial, notadamente após a década de 1970 com a revolução técnico científico informacional.
Há uma diferença entre a velocidade de deslocamento de barcos que levaram doenças de áreas da Ásia para portos como Gênova e Marselha, e daí para outras áreas da Europa, no século XIII ou XIV, para o que acontece agora.
A tecnologia atual é evoluída para encontrar a cura para as doenças de hoje, mas também para as pessoas em poucas horas circularem de um continente para outro; sendo assim a proliferação é muito mais rápida.
Em um mundo de fluxos cada vez mais transfronteiriços esse tipo de situação tende a ser cada vez mais comum.
Uma pesquisa recente do Data Folha revelou que o fechamento de fronteiras é apoiado por 92% dos brasileiros. Você acha que esta pandemia poderá fortalecer movimentos nacionalistas e xenófobos?
Esse será um grande debate do pós-Covid 19. Acho que as reações de “fechamento” à globalização, que já vinham ocorrendo nos últimos anos, vão se intensificar em um primeiro momento porque é uma solução “fácil” para indivíduos instabilizados. Espero que, como reação a isso, aumente a percepção de que as soluções para problemas globais e transfronteiriços serão mais fáceis com cooperação global e transfronteiriça.
Algumas instituições de cooperação internacional estão assumindo o protagonismo nesta crise, especialmente a Organização Mundial de Saúde (OMS). Você acha que essas instituições vão sair fortalecidas após esta crise global ou, na verdade, o que pode acontecer, no fim das contas, é o fortalecimento de movimentos que se intitulam “antiglobalistas”?
Difícil dizer, como eu disse antes, eu espero que a ideia de reação “antiglobalista” não seja vitoriosa. Sinceramente, acho difícil esse “fechamento” dos países nas condições tecnológicas atuais. Por outro lado, como nos ensinou o professor Milton Santos, temos de considerar que a organização do Espaço Geográfico é estruturado na técnica e na política. As técnicas, que são mediadoras da relação sociedade-natureza, apontam para um mundo cada vez mais globalizado, mas nada impede que movimentos políticos representam um freio a isso.
Outro ponto importante é discutir a globalização excludente que triunfou até os dias atuais e deixou milhões de indivíduos à mercê de discursos oportunistas, como o dos “antiglobalistas”. Essa pandemia é uma oportunidade para pensarmos não na morte da globalização, porque como disse, nas condições técnicas atuais me parece algo pouco crível, mas numa outra globalização. Milton Santos escreveu sobre isso no final do século XX e apontou como as condições técnicas atuais tem estado à serviço de poucos impedindo a existência de um mundo da dignidade humana, apesar de termos todas as condições materiais para isso.
Os especialistas são unânimes em apontar o risco do Covid-19 para milhões de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade nas periferias das grandes cidades brasileiras. Como, na sua opinião, pesquisas do IBGE, do PNADs e os censos, dentre outros documentos de referência para os geógrafos, podem ser utilizados para a elaboração de políticas públicas que tornem essas comunidades menos vulneráveis a epidemias?
A urbanização brasileira, assim como a do restante da América Latina, foi terciária e com claros problemas, como a exagerada concentração populacional em poucos aglomerados urbanos marcados pela favelização e pela enorme participação do mercado informal com grande número de subempregos.
Há diversos estudos sobre isso na área de urbanização, geografia econômica, demografia etc. O problema é ter um projeto de país que contemple esses milhões de brasileiros tratados como cidadãos de 2ª categoria.
Enquanto tivermos uma classe dirigente, política e econômica que acredita que um país pode se tornar desenvolvido apenas com uma pequena parcela dos seus indivíduos, será muito difícil termos mudanças que contemple esses cidadãos em condição de vulnerabilidade. Uma possibilidade é que essa mudança não venha dessa parcela privilegiada da sociedade, mas dos próprios cidadão marginalizados, talvez usando as condições técnicas que citamos em perguntas anteriores para aumentar a sua organização e força política.
João Felipe Ferreira Ribeiro é geógrafo formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); leciona há 30 anos no Ensino Básico das redes pública e privada no RJ e há 16 anos em cursos preparatórios para o CACD – Concurso de admissão à carreira diplomática.
Bruno Leal é fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social (UFRJ, 2015). Foi professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra, com especial ênfase no destino dos criminosos nazistas. Foi cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ, o NIEJ entre 2011 e 2018. É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais.
Como citar esta entrevista
RIBEIRO, João Felipe Ferreira. O que um geógrafo tem a dizer sobre a pandemia do novo coronavírus (Covid-19)? In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/um-geografo-fala-sobre-novo-coronavirus/. Publicado em: 6 abr. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [informar a data].