Impressos e manuscritos estão na base do trabalho de todo historiador. Com eles o historiador tem documentos, e com documentos é possível fazer perguntas sobre o passado, arriscar algumas interpretações e, ao fim, entender um pouco melhor sobre um evento, personagem, ideia ou conceito. Por isso, quando os diferentes métodos de digitalização do digital começaram a pipocar aqui e ali, a partir do final do século passado, os historiadores comemoraram e muito, afinal de contas, no digital, o documento poderia ser “manuseado” por vários pesquisadores ao mesmo tempo, sem sair de casa, por um custo aparentemente mais baixo e sem qualquer dano ao original.
As vantagens do digital são enormes, nós sabemos disso. Mas o debate sobre o digital não pode ignorar os riscos da digitalização e nem deixar de lado, em segundo plano, a rica história dos impressos e dos manuscritos, que ao longo de uma longa vida de circulação social produziram sentido sobre o mundo e sobre si mesmos. A fim de iluminar esta história e o lugar do historiador nela, o historiador Rodrigo Bentes Monteiro organizou “Modernos em curso”, que acaba de ser publicado pela Editora da Universidade Federal Fluminense, a EdUFF. Nós conversamos com ele sobre o tema, que é tão complexo quanto fascinante.
Rodrigo Bentes Monteiro é Professor titular de História Moderna na Universidade Federal Fluminense. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (1999), mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (1993), licenciado e bacharel em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1988). Suas áreas de atuação são: História Moderna, com ênfase em história intelectual, história política, história do livro, interpretação e materialidade de manuscritos e impressos da Época Moderna.
Nós, historiadores, sabemos o que são “fontes históricas”. Mas os nossos leitores, que não são historiadores, talvez não tenham essa clareza. Como você definiria “fontes históricas”? Para que elas servem?
As fontes históricas são os registros de escritos e imagens, na maioria das vezes feitos em papel, que foram produzidos em outro tempo e que chegam até nós, no presente, mais ou menos conservados. Esses registros podem ser manuscritos, impressos, desenhos, gravuras, mapas etc. Por isso é importante compreendê-las bem, pois elas contêm muitas informações.
Isso tem muito a ver com o seu novo livro, não? Como você definiria a proposta dele?
A proposta deste livro é entender não somente o que os escritos e imagens “dizem”, ou seja, os seus conteúdos, mas também como esses escritos e imagens foram produzidos e como eles se transformaram através do tempo. Acredito que isso melhora a qualidade da pesquisa dos historiadores sobre qualquer assunto, porque o nosso contato com as sociedades lá de trás é feito necessariamente através desses documentos. Assim, se não os compreendemos bem, corremos o risco de distorcer o que aconteceu nos séculos anteriores.
A digitalização de documentos históricos é uma grande preocupação de museus, arquivos, bibliotecas e até empresas. Essa preocupação com a preservação é algo contemporâneo ou os modernos também a tinham?
De fato, a digitalização de documentos vindos de outros tempos ajuda a preservar os originais e facilita o acesso à informação. Na Época Moderna começaram a surgir os colecionadores e patronos de documentos escritos, obras de arte e gravuras. O clima mais seco da Europa facilitou a preservação dos papéis, diferente de algumas cidades do Brasil, que são mais úmidas. Por outro lado, no passado, as catástrofes naturais tinham mais impacto, como aconteceu com o terremoto de Lisboa em 1755, que acabou destruindo a biblioteca dos reis de Portugal e grande parte dos acervos.
No século XIX surgiram técnicas de restauração e conservação dos documentos, mas elas estão sempre mudando. O que era certo fazer no passado já não é o mais adequado hoje, o que faz pensar sempre no nosso “lugar” ao olhar para o tempo lá de trás.
Qual a diferença, para um historiador, entre um documento histórico em sua versão original, isso é, manuscrita ou impressa, e uma cópia digital desse documento?
Essa é uma questão importante e atual. Não há dúvida de que as cópias digitais de documentos que nasceram em papel facilitam hoje a consulta e a pesquisa dos curiosos e pesquisadores de história. Mas é preciso lembrar que um documento que foi produzido em papel não é a mesma coisa que a sua “imagem”. Muitas vezes não conseguimos saber as dimensões de um livro pela tela da internet, e ignoramos se ele é portátil ou foi impresso em grandes folhas inteiras, que chamamos in-fólio. Também os detalhes da capa e da encadernação não são percebidos nas digitalizações. Isso é importante para os séculos XVI, XVII e XVIII, quando a produção de livros impressos ou manuscritos era bastante artesanal. Era um tempo antes da Revolução Industrial e da produção em massa e mais padronizada, e havia muitas diferenças entre os exemplares.
Por outro lado, o fato de nos acostumarmos a fazer pesquisa em casa somente com documentos digitalizados nos distancia dos arquivos e das bibliotecas, e do contato com os arquivistas, bibliotecários e restauradores. Esses profissionais são mais acostumados a lidar com os livros como objetos, e isso faz falta aos estudos de história no presente. Em outras palavras, estamos sem uma cultura “de arquivo”, sem saber direito como os documentos foram feitos e chegaram até os acervos. Pode não parecer, mas estamos perdendo um monte de informação assim.
Um dos eixos do seu novo livro está assentado em uma premissa: o debate sobre cultura escrita e visual no mundo contemporâneo ilumina a produção na Época Moderna. Você pode explicar como?
É importante discutir essas questões, pois no Brasil há projetos de lei e até uma lei vigente que facilitam o descarte dos documentos originais, para ficar somente com as cópias digitais. Embora os textos falem que essa queima de papéis não deve acontecer com os documentos “históricos”, nós podemos perguntar: mas o que não é histórico? Um papel, um bilhete, pode ser considerando irrelevante hoje, mas pode não ser daqui a 50 anos. Enfim, muitos discutem o tema sem conhecer direito as coisas. Como historiadores, eu e vários colegas estamos tentando mostrar que é importante valorizar a pesquisa com os originais e contribuir para a conservação dos documentos em papel. Temos até um grupo de pesquisa sediado na UnB sobre o assunto, o Metamorphose.
Você comentou comigo que está preparando uma continuação de “Modernos em curso”. Pode falar um pouquinho sobre o que está por vir?
O livro Modernos em curso reúne os resultados das experiências que tivemos com colegas e alunos em algumas disciplinas de História na UFF, ao longo de alguns anos. Essas atividades continuam, por isso eu organizo no momento um segundo volume, com o tema mais focado nos objetos e coleções, sempre recebendo convidados. Já tivemos duas entrevistas na disciplina História e patrimônio, na graduação, e uma visita ao Museu de Astronomia, no Rio de Janeiro, que vai resultar num capítulo sobre esse acervo. Falta ainda realizar uma oficina na seção de cartografia da Biblioteca Nacional, na próxima disciplina de pós-graduação que vou ministrar. E assim vamos nos animando, criando novas atividades e trabalhando em grupo. Fico contente de organizar esses pequenos livros que visam relacionar o ensino e a pesquisa histórica, penso que o projeto é mesmo para os alunos e para todos os interessados em História Moderna.
Como citar esta entrevista
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. ““Um documento que foi produzido em papel não é a mesma coisa que a sua imagem” (Entrevista, por Bruno Leal). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/um-documento-que-foi produzido-em-papel-nao-e-a-mesma-coisa-que-sua-imagem/. Publicado em: 5 dez. 2022. ISSN: 2674-5917.