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Trilha sonora para um golpe de Estado: o Jazz como a trilha da independência

Cena de "Trilha sonora para um golpe de Estado".

Cena de "Trilha sonora para um golpe de Estado". Documentário tem várias imagens de arquivo. Foto: divulgação.

O entendimento pleno desse documentário requer que conheçamos, pelo menos em parte, os processos de independência da República do Congo nos anos 60. Algo que me dei conta somente enquanto tentava acompanhar a rapidez das imagens e o montante de informações a serem digeridas e que me eram despejadas a cada cena. Partimos juntos, então, para um pouquinho de história.

Em 1960, o Congo, considerado uma colônia belga na África central, vivia um momento de grande turbulência política e social. Esse foi o ano em que o país, supostamente, conquistou sua independência da Bélgica, encerrando décadas de colonização marcada pela exploração econômica, repressão política e abusos contra a população local. No entanto, a independência trouxe uma série de desafios que rapidamente mergulharam o Congo em uma grave crise.

Independência

Em 30 de junho de 1960, o Congo, supostamente, se tornou independente de seus senhores colonialistas. Patrice Lumumba, o grande nome da resistência congolesa contra o imperialismo, se tornou seu primeiro-ministro e Joseph Kasavubu, um aliado dos belgas, se tornou presidente. A independência foi recebida com celebrações e esperanças de um futuro melhor, mas as estruturas políticas e econômicas do país eram frágeis. A Bélgica havia feito pouca preparação para a transição.

Na verdade, os belgas não fizeram nada para facilitar o processo e ainda promoveram pouco antes da aceitação da independência a privatização (em realidade o fechamento) da estatal Gécamines, mineradora e maior fonte de renda do Congo, deixando também a população majoritariamente excluída da administração pública e das forças armadas.

Crise Pós-Independência

Poucos dias após a independência, o Exército Nacional Congolês (Force Publique), anteriormente controlado por oficiais belgas, se amotinou, exigindo melhores condições e a substituição de oficiais europeus. O motim levou a uma intervenção militar belga para “proteger cidadãos europeus”, o que foi visto, obviamente, como uma violação da soberania do novo estado pelos apoiadores de Lumumba. Além disso, províncias ricas como Katanga (sob o controle de Moïse Tshombe) declararam sua secessão, buscando independência do governo central. Katanga era um ponto estratégico devido à sua riqueza mineral, especialmente cobre e urânio, o que atraiu o apoio de interesses belgas e ocidentais, em especial dos Estados Unidos.

Patrice Lumumba

Patrice Lumumba emergiu como uma figura central do processo de independência. Ele defendia a unidade e soberania nacional e para isso foi atrás de apoio internacional para enfrentar as crises. Pediu ajuda à ONU, mas quando esta se mostrou lenta e hesitante, recorreu à União Soviética. Esse movimento alarmou os Estados Unidos, e outras potências ocidentais, que temiam uma expansão da influência soviética na África nas décadas da guerra fria.

Em setembro de 1960, o presidente, apoiador dos imperialistas, Kasavubu demitiu Lumumba, intensificando a crise política. Pouco depois, o coronel Joseph Mobutu liderou um golpe militar apoiado por potências ocidentais. Lumumba foi preso, transferido para Katanga e brutalmente assassinado em janeiro de 1961, com o envolvimento de forças belgas e apoio de agentes da CIA.

Impactos da Crise

A situação do Congo em 1960 e nos anos seguintes foi marcada por conflitos armados, ingerência estrangeira e instabilidade política. A ONU enviou tropas para tentar estabilizar o país, mas as intervenções nem sempre conseguiram prevenir violações da soberania do Congo ou a violência interna.

Essa instabilidade inicial moldou o destino do Congo, deixando cicatrizes políticas e sociais que são visíveis até hoje. O assassinato de Lumumba transformou-o em um símbolo de resistência contra o imperialismo e pela luta dos países africanos por autonomia de imperialistas.

Trilha sonora para um golpe de Estado

“Trilha sonora para um golpe de Estado”, dirigido e escrito pelo diretor belga Johan Grimonprez, destaca o assassinato, em 1961, de Patrice Lumumba, primeiro-ministro democraticamente eleito do Congo em seu primeiro grito de liberdade pós-independêcia, e mostra os protestos subsequentes dos músicos de jazz americanos Abbey Lincoln e Max Roach no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O documentário explora o jazz como um softpower que se entrelaçou com movimentos políticos, especialmente no contexto da descolonização e da luta pelos direitos civis. Ele apresenta imagens de arquivo de apresentações de lendas do jazz como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Nina Simone, Miles Davis, John Coltrane, Duke Ellington e outros, que serviram como embaixadores culturais para a África durante os anos 1960.

O filme também inclui trechos de obras como “My Country, Africa” de Andrée Blouin – ativista ícone da independência congolesa – além de vastas memórias em áudio do primeiro secretário da URSS, Nikita Khrushchev.

O estilo documental adotado por Grimonprez é dinâmico, rápido e urgente, temos, por vezes, a sensação de assistir algo no formato de vídeo clip. Grimonprez nos entrega uma narrativa dos fatos da política da descolonização em forma de jazz, entremeando a música (sempre presente) com montagens de arquivos históricos e textos apresentados com o layout de capas de álbuns da famosa gravadora norte-americana de Jazz, Blue Note.

O filme foi inteiramente produzido a partir de imagens de arquivo e editado digitalmente. Todas as falas são de arquivos históricos e recortadas para gerar uma sensação de continuidade. Como já foi afirmado por críticos, o filme nos lembra uma mixtape, para os mais antigos, como eu, ou uma playlist bem trabalhada para a geração do streaming.

O diretor optou por não realizar entrevistas ou visitar locações. A narração é vívida, nos mantém colados na tela e nos arrasta para um pedaço da história da África que, infelizmente, até hoje, não é pautada de forma abrangente nos currículos escolares. E essa colagem é feita de uma forma tão envolvente e dinâmica que nos prende a cada segundo.

É uma obra-prima de edição que acabou, merecidamente, levando o Prêmio Especial do Júri por Inovação Cinematográfica no Festival de Cinema de Sundance de 2024, onde teve sua estreia. A pesquisa feita por Grimonprez é tão extensa, profunda, minuciosa e detalhista que acaba nos encantando como se fosse um thriller bem-feito de espionagem nos tempos da guerra fria ou uma longa marcha de ativismo contra o imperialismo ocidental.  

Glauber, um professor de história de 39 anos, entra em um túnel de sua cidade e nunca mais consegue sair de dentro dele. Ele não foi assassinado e nem sequestrado. É que o túnel simplesmente não tinha fim. Neste conto de terror psicológico, o historiador Bruno Leal explora medos e ansiedades modernas. Você nunca entrará num túnel da mesma forma. Clique aqui para conferir.

A montagem foi muito bem-sucedida ao nos mostrar também a exploração dos complexos vínculos entre o movimento pelos direitos civis nos EUA e a luta pós-colonial do Congo, o grande Malcolm X faz essa ponte de uma forma precisa em seus discursos históricos assim como os jazzistas norte-americanos fizeram reatando suas conexões ancestrais com a África e nos mostrando como o jazz foi utilizado como poder cultural durante a guerra fria, inclusive na forma de cortina de fumaça para intervenções do governo norte-americano.

“Trilha sonora para um golpe de Estado acaba de ser indicado ao prêmio de Melhor Documentário no 97º Oscar e acredito ser um dos favoritos à premiação. O documentário estreou nos cinemas brasileiros no dia 30 de janeiro.

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