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Historiadora questiona memória da trégua natalina de 1914, durante Primeira Guerra Mundial

Cena do filme "Feliz Natal".

Cena do filme "Feliz Natal"(Joyeux Noel), de 2005. Foto: reprodução.

Não é incomum que, nesta época de final de ano, a imprensa reproduza a conhecida história da “Trégua de Natal” de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial. Na Frente Ocidental, soldados franceses, escoceses e alemães deixaram as armas de lado, saíram das trincheiras e confraternizaram na noite de Natal, com bebidas, comida, cigarros e até partidas de futebol. O evento virou filme, “Feliz Natal” (Joyeux Noël), lançado em 2005, com direção de Christian Carion e com Daniel Brühl (de “Adeus Lenin” e “Rush”). Mas essa história aconteceu mesmo?

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Sim. A “Trégua de Natal” aconteceu, e nos mostra como a humanidade resistiu mesmo nas piores circunstâncias. A história é confirmada por cartas, diários, matérias de jornal e memórias de ex-combatentes. Esses documentos mostram que tudo teria começado quando soldados alemães ergueram, na noite do dia 24 de dezembro, árvores de Natal improvisadas com galhos. Os britânicos viram a cena e se dividiram: alguns aplaudiram e outros suspeitaram se tratar de uma armadilha do inimigo.

Logo depois, os alemães começaram a cantar músicas natalinas, acompanhados em seguida pelos britânicos. Quando amanheceu, soldados franceses, escoceses e alemães estavam na Terra de Ninguém, apertando as mãos, contando histórias e jogando bola. Foi uma trégua espontânea, partindo principalmente de soldados jovens, ainda adolescentes, mas que permitiu que homens de ambos os lados pudessem sair das trincheiras, descansar e até mesmo enterrar seus mortos.

Problematizando a memória

Porém, segundo a historiadora Kathryn N. McDaniel, a reprodução dessa memória da guerra, sem a devida problematização, pode levar a algumas distorções na interpretação geral daquele evento.

Em artigo publicado em 2015 na revista The History Teacher, McDaniel diz que a história costuma ser romantizada, com foco na humanidade dos combatentes, mas sem abordar as atrocidades do conflito ou o fracasso em produzir mudanças relevantes e duradouras na guerra. Para ela, os professores devem estimular a consciência crítica dos alunos para interpretarem narrativas de memória para além do escrito. Isso serviria não só para o caso da história da Primeira Guerra Mundial, mas para qualquer outra história.

“Esse evento é mesmo extraordinário, especialmente porque contradiz a imagem agora comum da Grande Guerra como uma luta massivamente desumana e sem sentido através da lama, vísceras e sangue. Mas é importante notar que partes da linha de trincheiras continuaram a bombardear-se mutuamente no Natal, e soldados morreram naquele dia. Alguns se gabaram de ter adquirido novos conhecimentos sobre as estratégias ou paradeiros dos inimigos, o que os tornaria mais fáceis de matar nos dias seguintes. (…) Embora alguns oficiais considerassem a trégua ‘esportiva’, no espírito de uma guerra civilizada, os superiores ficaram furiosos com as ações dos soldados e tomaram medidas para garantir que tal evento não acontecesse novamente. (…) A propaganda que exaltava a barbárie do inimigo aumentou em quantidade e ferocidade. E a guerra continuou por quase mais quatro anos, resultando em 16 milhões de mortos e 20 milhões de feridos. (…) Assim, a Trégua de Natal como evento não possui uma mensagem clara e pronta para a memorialização.”

A trégua num comercial de supermercado

McDaniel trabalhou o caso com uma turma e, para isso, exibiu para os alunos um comercial de 2014 da Sainsbury’s, a terceira maior cadeia de supermercados do Reino Unido. Naquele ano, ano do centenário da Primeira Guerra Mundial, a empresa fez uma megaprodução de cerca de 3 minutos reproduzindo a “Trégua de Natal” de 1914.

A cena começa com neve caindo e soldados nas trincheiras, até que um grupo de alemães começa a cantar e um soldado britânico decide sair da sua trincheira com as mãos para os altos. Depois de um momento de tensão, todos confraternizam. O comercial – muito bem produzido, com ares cinematográficos – termina com um soldado alemão e outro britânico, emocionados pela troca de produtos. “Natal é para compartilhar”, surge então na tela, seguido da logo da Sainsbury’s. Confira, abaixo:

“Quando meus alunos viram o anúncio pela primeira vez, ficaram impressionados com sua emoção e sua tentativa de capturar com precisão os detalhes das trincheiras, dos uniformes e das armas. No entanto, à medida que discutíamos, não os detalhes, mas a interpretação geral da Trégua de Natal apresentada pelo anúncio, eles começaram a achar a mensagem mais problemática. Uma série de perguntas ajudou a superar a atração emocional inicial, bem como a fascinação por acertar os detalhes.”

Os alunos queriam saber se o anúncio era mesmo preciso na representação da Primeira Guerra Mundial. Teria aquela narrativa romantizado o episódio? Por que é o soldado britânico quem toma a iniciativa de sair das trincheiras, se os documentos mostram que esta foi dos soldados alemães? Que efeitos isso teria na memorialização da guerra? Por que o supermercado fez aquele anúncio?

“A experiência de guerra não está no seu estômago, a menos que você tenha sido ferido lá; para todos os outros, está na sua mente e nas suas memórias, e elas nunca permanecem fixas. Elas são colagens de traços recuperados e recombinados do passado, que juntamos para dar sentido às nossas vidas. À medida que nossas vidas mudam, também mudam as histórias que contamos sobre quem somos e como chegamos aqui.”

Jay Winter, historiador.

Segundo McDaniel, precisamos questionar as representações artísticas do da Primeira Guerra Mundial, pois, sem isso, pode haver a sua mitologização. Ao levar o anúncio para a sala de aula, a professora quis justamente exercitar esse espírito crítico, fazendo com que os alunos fossem além do que era exibido na tela. Ela explica que, por mais que essa geração tenha muita exposição às telas e o hábito de consir muita informação do que as anteriores, isso não necessariamente envolve espírito crítico ou consciência histórica mais sofisticada.

“No final de nossa discussão, alguns alunos ainda gostaram bastante do anúncio e acharam que sua interpretação era, no mínimo, razoável. O que aprecio ao usar o anúncio da Sainsbury’s para este exercício é que ele é um memorial sofisticado. Existem aspectos de sua interpretação que fazem sentido e correspondem a interpretações acadêmicas. Certamente, críticos da história popular podem encontrar exemplos muito mais problemáticos. (…) Mas este anúncio, devido à sua sutileza e cuidado com a história, permite que os alunos cheguem a uma variedade de conclusões aceitáveis sobre a qualidade dessa interpretação histórica popular. O anúncio da Sainsbury’s abre uma conversa sobre a questão mais ampla da memória histórica e dos atos de “lembrança”, escreve McDaniel.

Primeira Guerra Mundial

A Primeira Guerra Mundial, que ocorreu entre 1914 e 1918, foi um conflito global envolvendo as principais potências da época. Seu estopim foi o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria, o que desencadeou uma série de alianças militares. De um lado, estava a Tríplice Aliança, formada por Alemanha, Áustria-Hungria e Itália (que posteriormente mudaria de lado), e, do outro, a Tríplice Entente, composta por França, Reino Unido e Rússia. O conflito resultou na morte de cerca de 10 milhões de soldados e em aproximadamente 21 milhões de feridos. Além disso, causou imensas perdas civis, com mais de 6 milhões de mortes. A guerra chegou ao fim com a assinatura do Tratado de Versalhes em 1919, que impôs duras sanções à Alemanha e provocou uma reconfiguração política da Europa e do Oriente Médio.

Para ler o artigo completo de McDaniel, em inglês, clique aqui.

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