Podemos aprender muito sobre a cultura de um país através de suas comidas típicas. Esse movimento vai além de se alimentar nas ruas e restaurantes de um local que visitamos pela primeira vez. Outro modo válido, mas menos saboroso, de se fazer uma viagem gastronômica é através do cinema. Pense nos sabores que você experimentou em pensamento se assistiu ao banquete cinematográfico que é “A Festa de Babette” (1987) ou o deleite que foi conhecer o preparo artesanal das sobremesas no francês “Chocolate” (2000). Hoje nossa viagem pela sétima arte nos leva ao Japão, país de cultura e culinária ricas, que vão encher os olhos e botar para funcionar a mente.
A casa ascética do escritor Tsutomu (Kenji Sawada) contrasta com o jazz alto ouvido por quem dirige um carro que atravessa as ruas cobertas de neve. É uma casa ascética, e assim deveria ser, pois seu ocupante quase foi monge. Ênfase no quase: ele saiu do mosteiro quando tinha treze anos, mas ficou lá tempo suficiente para aprender a comer e a cozinhar como um monge.
Treze anos antes da história que acompanhamos, Tsutomu perdeu prematuramente a esposa, Yaeko. Restou-lhe a sogra, que vive isolada em meio a uma plantação e a quem ele visita periodicamente. Ela dá bronca nele porque ele ainda não definiu um local para servir de descanso para as cinzas de Yaeko. A relação com a esposa também mostrava uma forte ligação com a comida, uma vez que Yaeko batizou o cachorro deles de “Sanshô”, mesmo nome de um tipo de pimenta.
Em algumas ocasiões Tsutomu cozinha para Machiko (Takaku Matsu), a editora que o contratou para escrever para uma revista sobre sua vida no campo. Machiko foi pupila de Yaeko, pois diz que aprendeu com a esposa de Tsutomu tudo o que sabe sobre publicação de livros. Assim, Machiko se torna uma espécie de filha para o escritor-cozinheiro – com direito a uma situação que pode magoá-la.
Ao longo do filme somos apresentados a iguarias tiradas da terra, como a raiz udo e o espinafre japonês. Aprendemos que dá azar deixar passar a época de fazer conserva de ameixa-japonesa e que os banquetes funerários devem ser suntuosos. E ainda sobra tempo para reflexões sobre vida e morte.
Acompanhamos Tsumotu por um período de onze meses, do pós Ano Novo Lunar em fevereiro até as novas neves no solstício de inverno em dezembro – tanto é que o título original em japonês pode ser traduzido como “Doze Meses Comendo da Terra”. Obviamente, nos são apresentados por este recorte temporal muitos ingredientes sazonais, bem como as dificuldades impostas pelas mudanças climáticas, como a necessidade de desenterrar uma raiz presa numa grossa camada de neve, o que nosso protagonista faz com a ajuda de seu fiel companheiro canino.
Em determinado momento, Tsutomu fala, em sua narração em off, que sabores e aromas podem despertar memórias nas pessoas. Essa memória despertada pelo uso dos sentidos é a mesma que faz com que nos lembremos de nossa infância com um cheiro, nos conectemos com o passado com uma refeição e, talvez como afirma Tsutomu, nos diferencie dos demais animais. Não somos então apenas animais pensantes: somos animais com memória afetiva.
“The Zen Diary” é baseado em um livro de não-ficção publicado em 1978 pelo autor Tsutomu Minakami – sim, o cozinheiro-escritor realmente existiu! Em 85 anos de vida, ele escreveu 43 livros, alguns deles adaptados anteriormente para o cinema, e ganhou diversos prêmios.
Um país com metrópoles frenéticas como Tóquio também tem áreas rurais, e para combinar com estas há um cinema japonês contemplativo. “The Zen Diary” se aproxima do cinema do mestre Yasujiro Ozu, que filmava a vida doméstica e versava sobre temas universais focando no povo japonês. Além da óbvia escolha estética de ter a câmera mais próxima do chão, é a temática que conecta nosso filme de hoje com os de Ozu.
Na maioria das produções audiovisuais existe o que chamamos de “fake eating”: os atores fingem comer mas apenas mexem a boca, para que o som da mastigação não seja captado pelos microfones. O oposto acontece em “The Zen Diary”, os atores comem em frente às câmeras, pois podemos ouvir a mastigação. Assim, ficamos também com fome.
O que vemos Tsutomu praticar é a chamada culinária shojin ryori – “shojin” significa foco no caminho que leva à iluminação e “ryori”, cozinha. Desde suas origens vegana, esta culinária é meticulosa para evitar o desperdício e equilibra os ingredientes de acordo com a estação do ano para dar ao corpo o que ele necessita conforme a época. A dedicação é impressa no preparo e a gratidão no consumo.
A primeira coisa que vemos na tela quando começa a projeção é o logo da Nikkatsu, estúdio de cinema estabelecido em 1912. Com sua rica história, a companhia passou para o ramo de distribuição durante a Segunda Guerra Mundial, parando de fazer filmes, mas voltou à ativa como estúdio em 1954, dando início a uma Era de Ouro que durou até o final dos anos 60.
“The Zen Diary” foi exibido no Festival de Cinema Japonês online, que teve 25 filmes disponíveis com legendas em português. A partir de 19 de junho, o site exibirá dois doramas. Este filme nos traz reflexões e nos deixa famintos por mais cinema japonês, esta arte que nos presenteia com pérolas como a citação: “Viver é usar o corpo, e usar o corpo dá fome. A fome torna a comida gostosa.”