“Terra de Deus”: a jornada inóspita de um pastor pelas paisagens da Islândia

Lucas, um pastor dinamarquês, é enviado em uma expedição para a Islândia no final do séc.19 com a tarefa de construir uma igreja e aproveita para fazer os primeiros registros fotográficos do local.
11 de janeiro de 2024
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"Terra de Deus": a jornada inóspita de um pastor pelas paisagens da Islândia 1
Imagem: Snowglobe Films.

Lucas, um pastor dinamarquês, é enviado em uma expedição para a Islândia no final do século XIX com a tarefa de construir uma igreja e aproveita para fazer os primeiros registros fotográficos do local.

Elliott Crosset Hove (Wildland / 2020) interpreta Lucas, um pastor que recebe de seu bispo a difícil tarefa de construir a primeira igreja evangélica em uma pequena comunidade de pioneiros dinamarqueses na época em que o território islandês ainda era parte dos domínios da Dinamarca. Lucas é apaixonado por fotografia e aproveita a viagem para conhecer as quase intocadas paisagens da Islândia e fazer as primeiras fotos com chapas de vidro sensibilizadas por nitrato de prata (processo de colódio úmido). Para tanto, Lucas opta por navegar a um ponto mais distante de seu destino e dali seguir com uma expedição até o povoado, ao invés de atracar direto nas proximidades.

A ficção do diretor e roteirista Hlynur Pálmason (White, White Day / 2019) é baseada em uma série de fotografias reais, feitas por um pastor, que constam como as primeiras imagens registradas em placas de vidro da Islândia. A partir dessas imagens, Pálmason desenvolveu o roteiro da trajetória de Lucas.

A viagem exploratória inicia em uma embarcação com uma pequena equipe que inclui o intérprete, incorporado pelo ator Hilmar Gudjónsson, que tem a função de ensinar um pouco a língua local dos nativos para Lucas. Os integrantes do navio também posam, imóveis e com o rosto coberto por um pó branco, para a primeira fotografia da jornada feita por Lucas. Ao atracarem no litoral frio e chuvoso, são recebidos pelo guia local Ragnar, maravilhosamente interpretado por Ingvar Sigurdsson (The Northman/ 2022), que acompanha Lucas em sua exploração da natureza islandesa comandando uma caravana de cavalos carregados com uma gigante cruz para adornar o topo da igreja e toda a parafernália fotográfica do pastor.

Vemos fauna e a flora locais serem mostradas com detalhes espetaculares e em alto contraste, apesar do uso frequente do chiaroscuro que acentua a dramatização de cenas mais intimistas. A viagem do padre até seu destino, mostra o começo da jornada do herói em um terreno aparentemente inexplorado. Os personagens pitorescos locais também recebem espaço na trama, em especial o guia e contador de histórias local Ragnar, que parece maravilhar e intrigar o padre com sua árdua rotina de sobrevivência e as tarefas que esse realiza com extrema calma e naturalidade em meio a todos os desafios da passagem.

Godland é um filme que tem um desenvolvimento lento e contemplativo. Em sua primeira parte, ele nos mostra ostensivamente a natureza selvagem e, às vezes, hostil da Islândia, a qual se torna a verdadeira personagem principal. Vemos claramente, portanto, a importância que assume o primoroso trabalho de cinematografia feita por

Maria von Hausswolff. Maria e Pálmason são antigos parceiros dos tempos de faculdade, e cultivaram ao longo dos anos uma frutífera parceria. Godland é um extraordinário trabalho de fotografia, um filme, que em boa parte, funciona como se estivéssemos caminhando por uma galeria de arte em seus frames, os quais são sublinhados, em parte, com as histórias em off de Ragnar. E isso acaba por atribuir ao trabalho uma atmosfera envolvente, lírica e onírica até a chegada dos viajantes ao pequeno povoado dinamarquês. Sons e imagens da natureza são centrais, a música é incorporada em alguns momentos com parcimônia.

De uma forma geral, o filme é mais rico quando focado no caminho e não no destino da viagem. Vemos uma espécie de roadtrip exploratória das diferentes paisagens islandesas pelos olhos de um fotógrafo que se estende entre planícies, montanhas nevadas, rios, cascatas e vulcões, em um lugar onde praticamente não há noite no verão, onde os visitantes precisam ser “lembrados” de dormir para não enlouquecerem.

Em sua segunda parte, Godland coloca a paisagem em segundo plano e as pessoas locais recapturam o protagonismo. Elas são agora os objetos das fotografias de Lucas, como Anna (Vic Carmen Sonne) e Ida (Ída Mekkín Hlynsdóttir) as jovens filhas do chefe da comunidade Carl (Jacob Luhmann). Lucas, nessa fase final da história, acaba se envolvendo romanticamente com Anna, o que acaba trazendo trágicas consequências. Godland também é uma contemplação da morte e da banalidade da vida diante de forças maiores, como a natureza, mas também a mão do homem.

O filme foi selecionado para a mostra un certain regard no festival de Cannes. Nada mais justo do que incluir no programa uma obra que, em boa parte, se mostra puramente visual e contemplativa. O preciosismo estético desejado foi atingido quando von Hausswolff e Pálmason optaram pelo uso de filme Kodak 35mm ao invés de habituais (e bem menos trabalhosas) câmeras digitais. A qualidade e a profundidade dos planos ganharam muito com essa decisão da equipe. A dupla desfruta do perfeito entrosamento que marca companheiros de longa caminhada, apesar de ainda estarem no auge de suas carreiras.

Godland não é um mero filme ilustrativo, não são apenas imagens maravilhosas que seriam perfeitos screensavers em telas digitais. A natureza aqui tem dentes, e morde de volta ao se sentir invadida pelo homem, assim como a dureza e a arrogância de colonizadores que desmerecem a validade dos nativos é mostrada de forma crua. Não existem vencedores no final, e a redenção do herói- pastor-desbravador, não preenche os clichês costumeiros do mainstream. E, exatamente por isso, Godland é uma pequena obra sensacional.

O filme estreou timidamente no Brasil no final de setembro de 2023 com o título Terra De Deus e, infelizmente, passou praticamente despercebido pelo grande público. No momento a obra se encontra disponível no serviço de FILMICCA.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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