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“Spencer”: uma beleza insólita

“Spencer”: uma beleza insólita 2

Kristen Stewart em cena de "Spencer", onde representa a Princesa Diana. Foto: Diamond Films | Divulgação

Os filmes biográficos do diretor chileno Pablo Larraín (muito conhecido por “No”, com Gael Garcia Bernal) parecem menos interessados em uma exploração da verdade íntima de figuras históricas do que em uma investigação da construção da imagem pública de certas celebridades. Seus filmes consideram a profundidade psicológica sempre a partir das relações na superfície. Desde 2016, Larraín indaga como seus objetos de estudo — Pablo Neruda, Jackie Onassis, Diana Spencer — teceram suas subjetividades nas tramas históricas de sua época e como nossa visão sobre eles hoje atravessa as múltiplas camadas do tempo que nos separa deles: Jackie reencena a imagem mítica da primeira-dama Kennedy no momento em que o artifício da estabilidade pública se encontrava em tensão com o caos de uma tragédia pessoal; Neruda não é protagonizado pelo poeta homônimo, mas pelo investigador que tenta a todo custo compreender e encontrar o artista sem nunca poder alcançá-lo.

Spencer, seu filme mais recente, acompanha a princesa de Gales (vivida por Kristen Stewart) nos três dias de comemorações natalinas da família real – o último Natal em que Diana passaria casada com o príncipe Charles, sucessor do trono. Consciente da infidelidade de seu marido e sofrendo a pressão da mídia e da realeza, Diana passa por um intenso conflito subjetivo entre as normas da tradição e seu desajuste em relação a elas.

O primeiro acerto de Larraín neste filme consiste em entender que este conflito não é simplesmente interno: a tirania da intimidade de Diana se constrói na internalização de sua imagem pública. A princesa se constitui diante de um olhar incessante da mídia para cada detalhe de sua vida e de seu corpo, ela tece sua subjetividade em meio a um repertório de rituais externos que performam no presente as inflexíveis tradições aristocráticas seculares. Cada ínfimo desvio – a menor mudança na ordem dos vestidos a serem usados nas comemorações, por exemplo – é tomado como uma afronta a ser punida.

A encenação rigorosa de Larraín torna palpável a angústia de se sentir simultaneamente isolada e incessantemente observada, de ter cada passo determinado pelas regras externas de um tempo profundo. A obra mobiliza constantemente uma construção atmosférica similar a dos filmes de terror sobrenatural, como se os fantasmas das tradições habitassem o interior de todos os que passam pelo palácio, alertando no presente para os perigos de se romper com o legado histórico – o espectro de Ana Bolena é um constante alerta para o perigo de se perder a cabeça.

 A cinematografia de Claire Mathon demarca a angústia da personagem ao oscilar entre uma proximidade angustiante, encarcerando Diana em enquadramentos fechados que refletem a prisão de sua identidade, e um distanciamento solitário, em enquadramentos abertos que mostram a frieza das relações no palácio e o isolamento da protagonista. A trilha sonora composta por Jonny Greenwood expressa o conflito central em composições com estruturas clássicas rígidas, aparentemente serenas, que imprevisivelmente irrompem em movimentos dramáticos e sinuosos.

Outra cena de “Spencer”, que capricha na reconstituição de época. Photo: Neon

É na medida em que imagem cuidadosamente lapidada de Diana começa a romper, mostrando as fissuras nas convenções naturalizadas pela realeza, que se constrói no palácio um discurso sobre sua pretensa loucura: “Ela está prestes a rachar, enlouquecer”, dizem os murmúrios do castelo. Longe de reafirmar esse discurso sobre a insanidade de Diana, o filme parece investigar a construção deste discurso: como seria possível não enlouquecer, não rachar, diante de uma articulação que não permite nenhuma brecha? Em uma trágica coincidência, Diana morreria em 1997 no Hospital da Salpêtrière, localidade historicamente marcada pelo encarceramento e pela violência contra mulheres consideradas loucas, lugar onde o médico Jean-Martin Charcot inventou a noção de histeria, munindo-se justamente da fotografia e da teatralização de sintomas, em uma encenação da loucura alheia não muito distante daquela montada pela mídia e pela realeza para questionar as ações de Diana.

Mesmo após sua morte, seguimos obcecados pela imagem de “Lady Di”, consumimos sua intimidade nas mais diferentes mídias – a já extensa produção midiática em seu entorno ganhou nova força com o lançamento da 3ª temporada de The Crown. Lançado no aniversário de 25 anos da morte da princesa, Spencer compreende bem como nosso olhar para a figura da protagonista é densamente sobredeterminado por essa cultura que transforma sua imagem pública em “moeda corrente”, como afirma a Rainha Elizabeth em certo ponto da obra. O delicado trabalho da atriz principal é particularmente importante para a construção desta crítica: a atuação de Kristen Stewart recria trejeitos reconhecíveis de Diana Spencer de forma simultaneamente sensível e altamente estilizada, produzindo para o público o efeito ambivalente de presenciar afetos reais expressos naquele corpo e de estar diante de uma imagem consagrada, repetida à exaustão.

O filme de Larraín reconhece como a representação da história de Diana é inevitavelmente marcada pela melancolia, pela paixão por um objeto irrecuperável cuja distância mesma o torna intrigante: sua beleza só pode ser percebida a partir do insólito. Se não podemos alcançar Diana, objeto de nosso afeto, somos capazes de reencenar na imagem seu sofrimento só para acessar mais uma vez sua trágica beleza, também podemos fabular no cinema momentos imaginários de revolta e felicidade para suportar a dor real de sua tragédia. É por este motivo que Spencer, para além de toda angústia com a qual castiga o espectador ávido pela intriga, também nos permite sonhar com uma corrida livre pelo campo, uma escapada num conversível ao som de pop rock, um retorno solitário à infância e o conforto de uma confidente fiel, que confessa a “princesa do povo” o amor que o público gostaria de lhe professar mais uma vez.

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