Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha jazia destruída, tanto do ponto de vista material quanto social. O nazismo havia sucumbido, os Aliados ocupavam o país e as maiores preocupações da população giravam em torno de questões básicas de sobrevivência, como água e comida. Os vencedores do conflito na Europa tomaram consciência real das atrocidades cometidas nos campos de concentração e, considerando essas e outras ações como crimes perpetrados pelas lideranças políticas, militares e econômicas da Alemanha, efetuaram os Julgamentos de Nuremberg, que entre 1945 e 1946 desvendaram muito do que foi feito pelos nazistas. Enquanto alguns dos julgados foram condenados à morte, outros foram absolvidos ou tiveram penas de prisão. Os julgamentos tiveram diversos objetivos, tanto jurídicos quanto sociais pois, além de punir aqueles que foram apontados como artífices da morte de milhões de pessoas, serviram também para mostrar à população o alcance dos crimes nazistas, que foram apoiados, direta ou indiretamente por parte expressiva dos segmentos sociais alemães. Segundo a lógica aliada, exibir as atrocidades levaria a uma conscientização do povo, à repulsa dos valores nazistas, e por fim, a não repetição do crime.
Para além daqueles que foram julgados em Nuremberg, havia um número significativo de alemães que tinham colaborado com os crimes nazistas – não só oficiais de alto e médio escalão do Terceiro Reich, mas também membros do NSDAP, empresários e pessoas comuns. O que se viu na Alemanha após a realização do Tribunal de Nuremberg, no entanto, foi um silenciamento cada vez maior quanto aos crimes nazistas. Ainda durante a ocupação, os próprios Aliados colaboraram para isso. Ao invés de focar no expurgo social do nazismo, americanos, ingleses, franceses e soviéticos concentraram todos os seus esforços na reconstrução da Alemanha. Mas o que contribuiu de maneira decisiva para esse silenciamento foi a intensificação dos conflitos políticos da Guerra Fria que, já no final da década de 1940, levaram à divisão da Alemanha em dois países distintos e rivais: a República Democrática Alemã (RDA), de orientação socialista, e a República Federal da Alemanha (RFA), ocidental e capitalista. Tal modificação da geopolítica alemã acabou por elevar os germânicos a um importante papel dentro do contexto europeu e global da Guerra Fria.
Uma das principais consequências dessa guinada em relação ao papel dos alemães no pós-guerra diz respeito ao papel de ex-nazistas na máquina governamental: muitos são os registros de membros do NSDAP que fizeram parte dos novos governos alemães, principalmente na RFA. As autoridades de ocupação e transição, em incontáveis ocasiões, ignoraram ou até mesmo “esqueceram”, segundo o autor Richard Bessel, o passado dos novos funcionários, para que o objetivo de organizar os novos países fosse alcançado. O processo de reconstrução das duas partes da Alemanha incluía a recuperação econômica, o reerguimento das instituições políticas e uma renovação nas relações sociais. Os alemães, tanto da RFA quanto da RDA, tiveram de se readaptar às novas condições de vida sem o nazismo; suas reflexões e memórias sobre a guerra foram, em diversas oportunidades, reprimidas mesmo que de maneira não intencional pelas iniciativas de reconstrução, resultando no silêncio sobre o passado para as gerações posteriores, como aponta o autor alemão Winfried Georg Sebald.
O esquecimento e o silêncio sobre o que ocorreu, todavia, não eram de todo desejáveis na formação intelectual e ideológica dos alemães após a Segunda Guerra Mundial: as autoridades das “duas Alemanhas” tinham objetivos específicos a atingir utilizando-se de representações próprias do conflito para o público. Nos lados ocidental e oriental, além da Guerra Fria, a maior preocupação era evitar ao máximo que o nazismo viesse a ressurgir futuramente: o “legado” que o Terceiro Reich poderia ter deveria ser diretamente ligado à destruição, guerra, intolerância e crimes. A rememoração e o esquecimento referentes aos crimes nazistas, na sociedade alemã, tem uma linha extremamente tênue e de difícil conceituação, e que atualmente vem sendo analisada cada vez mais nos debates acadêmicos, tanto no país recentemente reunificado, quanto em outros institutos privados e/ou públicos pelo mundo. O lado ocidental da Alemanha, auxiliado pelos maciços investimentos dos EUA, reergueu-se durante a década de 1950, tornando-se um importante baluarte capitalista na Europa nos anos seguintes; já a parte oriental do país, alinhada ao socialismo soviético, reavivou-se aos poucos, tornando-se um dos países satélites do bloco comunista.
Podemos explicar esse fenômeno com uma expressão que o autor alemão Hermann Lübbe cunhou em 1983 para definir o que houve na Alemanha do pós-guerra: “pacto de silêncio”. Através dessa estratégia tácita e pragmática, a RDA e a RFA puderam se erguer, mas tiveram como efeito colateral a reintegração de antigos nazistas à sociedade. Essa necessidade de esquecimento perdurou praticamente como uma “instituição” sem controvérsias até meados da década de 1960, quando começaram a ser realizados estudos mais profundos sobre o Holocausto e quando ocorreram alguns julgamentos de nazistas por tribunais pelo mundo. As novas gerações de alemães ocidentais e orientais queriam mais detalhes sobre o que ocorreu durante o nazismo e até então somente tinham acesso a parcas documentações e relatos truncados de suas próprias famílias sobre o período. Daí em diante, o silêncio que guardava o passado traumático passou a ser alvo de contestações, surgindo lacunas que, ao serem investigadas, possibilitaram um conhecimento maior sobre o que se passou, ainda que o “pacto de silêncio” tivesse criado raízes.
Seguindo, Karl Jaspers, a Alemanha somente poderia se reerguer mediante uma “expiação da culpa”: mesmo que a maioria dos alemães não tivesse participado diretamente das atrocidades cometidas durante a guerra, a culpa não estaria somente na esfera criminal. Segundo Jaspers, em relação à ocorrência “dos crimes que foram cometidos em nome do Reich, cada alemão se torna corresponsável. Somos coletivamente ‘responsáveis’. A questão é, entretanto, em que sentido cada um de nós tem de sentir-se corresponsável. Sem dúvida, no sentido político da corresponsabilidade de cada cidadão pelos atos que comete o Estado ao qual pertence”.
Com a reunificação da Alemanha, no início da década de 1990, a sociedade alemã e o próprio governo alemão se viram novamente confrontados com o passado. Os crimes nazistas passaram a estar cada vez mais presentes em memoriais, museus, discursos públicos, na literatura, nas cátedras universitárias, no cinema e até nas artes plásticas. Mas a “expiação da culpa” não era mais o único sentido em disputa. Essas memórias passavam por questões diversas, indo desde a consolidação da União Europeia e sua necessidade moral de reconhecer seu papel no Holocausto até o próprio silenciamento alemão e seus significados. De toda forma, a memória dos crimes nazistas está longe de ser uma questão resolvida. A rememoração coletiva e individual ainda terá um longo caminho a percorrer
Referências Bibliográficas:
BESSEL, Richard. Alemanha 1945: Da guerra a paz. Tradução de Berilo Vargas. 1ª Edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2010.
JASPERS, Karl. El problema de la culpa: sobre la responsabilidad política de Alemania. 1ª Edição. Barcelona, Espanha: Ediciones Paidós, 1998.
LÜBBE, Hermann. Der Nationalsozialismus im politischen Bewusstsein der Gegenwart, in BROSZAT, Martin (org.). Deutschlands Weg in die Diktatur: Internationale Konferenz zur nationalsozialistischen Machtübernahme im Reichstagsgebäude zu Berlin. 1ª Edição. Berlim, Alemanha Ocidental 1983, pp. 329–49.
SEBALD, Winfried Georg. Guerra Aérea e Literatura. Tradução de Carlos Abbenseth e Frederico Figueiredo. 1ª Edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2011.
Como citar esse artigo
HADDAD, Rafael. Silêncio e esquecimento na Alemanha do Pós-Guerra (Artigo). In: Café História. Disponível em: em: https://www.cafehistoria.com.br/silencio-alemanha-pos-guerra/. Publicado em: 05 fev 2018. Acesso: [informar data].