Em 2011, o cineasta francês Claude Lanzmann visitou o Irã para apresentar o seu filme “Shoah” (veja aqui na íntegra), indiscutivelmente, o mais importante documentário sobre a temática do Holocausto até então realizado. É notório que o regime iraniano, na época comandado pelo então presidente Mahmoud Ahmadinejad (2005-2013), não apenas dissemina o negacionismo histórico como estimula a sua população a desacreditar no que aconteceu aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, “Shoah” era apresentado em Teerã como uma tentativa de elucidação e aproximação dos povos, numa iniciativa da UNESCO.
Os iranianos logo intimaram Lanzmann a apresentar provas e questionar a veracidade do que assistiam no filme. “Onde estão os corpos?”, indagavam. Afinal, se não há corpos, não há provas de crime algum. A resposta de Lanzamnn é a síntese do seu filme: “A prova é ausência de corpos”.
Não sobrou nada daqueles que entraram nas câmaras de gás em Treblinka, Birkneau ou Sobibor, entre outros campos de extermínio – nem mesmo as cinzas. Estas eram despejadas em rios, lagos ou florestas. Sabemos, hoje, que existe vasto material (arquivos, fotos, filmagens, anotações), com o qual é possível entender o que acontecia nos campos, exceto, o que ocorria nas câmaras de gás. Não há nada, além de testemunhos, que demonstre o que ocorria ali, naquele momento derradeiro da implementação da Solução Final. Claude Lanzmann se apegou a isto e fez uma escolha – não só estética, como ética, para a construção de seu filme. A ausência de quaisquer imagens de arquivo é o pilar fundamental da obra “Shoah”.
Foram 10 anos de filmagens, 230 horas de material filmado, e 5 anos de edição, o que resultou num documentário de 9 horas, que, quase, inviabiliza seu lançamento em 1985. Porém, aqueles que esperavam uma obra maçante sobre um tema pesado como o Holocausto, logo se surpreendem com o que Lanzmann e sua equipe propõem na tela grande. O público é, imediatamente, absorvido pelas imagens e sugado para as cenas relatadas por depoimentos vívidos e detalhados. É impossível escapar, e as 9 horas passam sem que se sinta a longa duração.
São quadros simples: a câmera, geralmente, estática e em close nos entrevistados. Os testemunhos são de sobreviventes do holocausto, nazistas perpetradores e outras testemunhas. Os entrecortes são planos dos locais citados nos depoimentos (nos dias em que foram filmados); os campos, não em funcionamento, mas destruídos após a guerra; cidades vizinhas que, mesmo após anos, continuam paradas no tempo ou imagens prosaicas e corriqueiras do cotidiano em determinadas localidades. São planos poéticos que contrastam com o que é dito, e, muitas vezes, estimulam algum tipo de reflexão em quem assiste. Um belo exemplo disso é quando Simon Srebnik aparece num pequeno barco, sobre o Rio polonês Narew, cantando uma música. A cena é poética e transmite uma certa paz.
No entanto, sabemos depois que aquela é uma canção nazista que Simon, quando criança, foi obrigado a aprender e forçado a cantar para a alegria de seus algozes, e aquele rio era onde ele jogava os ossos e as cinzas dos mortos durante a guerra. Esse entendimento ressignifica a cena, gerando impacto. Há o reforço de certas imagens como trens, vagões, trilhos, fumaças, chaminés e máquinas que, invariavelmente, nos remete a um cenário industrial – talvez numa tentativa de nos incutir a ideia da “Indústria da Morte”. Das câmaras de gás e dos crematórios vemos, apenas, os escombros do que sobrou. O mais próximo que chegamos está justamente nas palavras de Filip Muller, sobrevivente, membro do Sonderkommando em Auschwitz, cuja tarefa era levar os prisioneiros para dentro das câmaras de gás e, depois, levar os corpos para os crematórios. O testemunho de Muller é tão rico em detalhes, que, imediatamente, somos transportados para aquelas cenas de horror. Não há necessidade alguma de sublinhar seu depoimento com imagens de arquivo.
Em entrevista à prestigiada Criterion Collection, Claude Lanzamnn atribui a ausência de footage em “Shoah” à inexistência de imagens das câmaras de gás. Seu filme é focado na Solução Final – não porque aconteceu, mas como aconteceu. Mas há também outro motivo: a lealdade e confiança em seus entrevistados. É preciso compreender a psicologia daqueles que sobreviveram aos horrores dos campos de concentração. Muitos deles carregavam um sentimento de culpa: “Por que eu sobrevivi? Por que minha família inteira morreu, e eu sobrevivi? O que fiz para sobreviver? O que precisei fazer para sobreviver?” Junto à pouca bagagem, os próprios sobreviventes traziam esses questionamentos. Porém, quando vinham de terceiros, causavam o efeito silenciador em quem conta a própria história. Muitas vezes, o ponto de interrogação termina por interromper e calar um testemunho. Certa vez entrevistei uma sobrevivente do Holocausto para o meu filme, “O Relógio do Meu Avô”. Ela sobreviveu a Auschwitz e chegara ao Brasil com, aproximadamente, 13 anos. Era uma menina. Quando relatava sobre o que ocorria na Polônia, as pessoas não acreditavam. Era realmente inimaginável que um ser humano pudesse cometer tantas atrocidades a outro ser humano, que uma menina de 13 anos sobreviveu com uma dieta diária de apenas cascas de batata e água! Isso só poderia se algo da cabeça de uma criança, fantasia, invenção. Não era. Era tudo verdade, mas, como não acreditavam nela, logo se calou. Apenas anos depois voltou a falar do passado e lançou um livro a respeito. Outro sobrevivente que entrevistei tinha lá seus 75 anos e jamais havia dito o que se passou durante a guerra. Nem mesmo a seus familiares. Voltar ao passado era, deveras, dolorido e, por muitas vezes, para não ter que dar explicações, escondia a tatuagem numérica que tinha no braço – prova cabal de que esteve em Auschwitz.
Shoah: approach extremamente respeitoso
O approach de Claude Lanzmann é extremamente respeitoso. A estratégia para colher os depoimentos funciona. O aparato simples, evitando uma montagem e uma postura de “entrevistador profissional”, faz com que os entrevistados se sintam à vontade e, aos poucos, liberem seus testemunhos sem os freios psicológicos e emocionais. Abraham Bomba, o barbeiro de Treblinka, dá seu depoimento em seu ambiente de trabalho, uma barbearia, enquanto corta, corriqueiramente, o cabelo de um cliente. Bomba foi designado por nazistas a cortar os cabelos das mulheres antes de adentrarem as câmaras de gás. Os nazistas diziam a elas que cortariam seus cabelos, tomariam um banho e sairiam dali.
Após dias de viagem em vagões lotados, sem água, sem comida, sem o mínimo de condições, as mulheres não tinham forças para desconfiar, mas os barbeiros, incluindo Bomba, sabiam que aquele era o último corte de cabelo de suas vidas. Em determinado momento, carregado de uma emoção que, até então, conseguira esconder, Abraham Bomba desmorona. Ele não consegue mais falar. Pede que parem a filmagem, é impossível continuar. É aí que Claude Lanzmann intervém: “Abraham, você precisa continuar, eu te suplico. Você sabe que é importante, que é necessário”. Somente então, o barbeiro volta a falar, num dos momentos mais marcantes do filme. Lanzmann estava certo: era extremamente necessário que os sobreviventes falassem e que suas falas fossem registradas. Neste sentido, o filme de Lanzmann antevê, já nos anos 80, os movimentos negacionistas que surgiriam posteriormente. Enquanto o mundo ainda cicatrizava, algumas décadas após o fim da guerra, falar sobre o tema se tornou imprescindível, o que motivou uma variedade de produções relacionadas ao Holocausto, incluindo na literatura, no cinema e nas artes plásticas.
Mesmo que houvesse imagens de arquivo dos momentos narrados por Bomba, nada poderia substituir a imagem de seus olhos aos revisitar Treblinka. Ao se colocar em posição de escuta, ao invés de interrogador, Claude Lanzmann imprime confiança a seus entrevistados. Não utilizar imagens de arquivos para contar a história é assegurar aos sobreviventes que seus testemunhos serão ouvidos, sem questionamentos e sem necessidade de provas.