Em 2022, o bicentenário da Independência foi marcado por vários festejos, mas muita gente se frustrou: havia a expectativa de que houvesse mais celebrações, como a dos 500 anos do Brasil, com várias exposições, parcerias internacionais, festivais e shows. Especialistas também apontaram outros problemas: o governo Bolsonaro transformou a data em um grande palanque eleitoreiro, o que esvaziou o sentido do evento.
Acontece que esta não foi a primeira vez que uma celebração do 7 de setembro acabou em frustração. Em 1922, data do primeiro centenário da Independência, o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, foi inaugurado com grandes planos para celebrar a efeméride. Mas o elitismo da época, o preço do ingresso e a localização da instituição afastou do museu e da exposição que o acompanhava quem mais se esperava: o povo.
O Museu Histórico Nacional
O Museu Histórico Nacional foi fundado por meio do Decreto 15.596, de 2 de agosto de 1922, assinado pelo presidente Epitácio Pessoa. Esse decreto deu luz verde à proposta do museu de ser um instrumento de educação patriótica, respondendo a um movimento ufanista liderado por Gustavo Barroso, conhecido acadêmico pela formação de técnicos em museus na década seguinte, e por ser parte do movimento integralista.
Inicialmente, a missão original do museu era reunir uma coleção de objetos que contassem a história militarista do país – um “culto da saudade”. Em vez de se concentrar em referências históricas, o MHN idealizado por Gustavo Barroso focava na nostalgia do Império e em uma memória militar idealizada, enraizada na noção de uma nação relevante e com pouca ênfase em análises críticas, segundo explica Myrian Sepulveda Santos.
A inauguração do museu ocorreu em 11 de outubro de 1922, como parte da Exposição Internacional do Centenário da Independência, realizada no Rio de Janeiro entre 7 de setembro daquele ano e 2 de julho de 1923 (data da independência do Brasil na Bahia). A exposição tinha como objetivo principal promover o sentimento de patriotismo entre a população. Ela ocupou diversos edifícios e pavilhões construídos ao longo do porto e da Avenida das Nações, onde hoje estão localizados o Aeroporto Santos Dumont e a Praça XV. Antecedeu um amplo processo de reformas na cidade do Rio de Janeiro, incluindo a criação da Avenida Central (atualmente conhecida como Avenida Rio Branco) em 1905 e a polêmica remoção do Morro do Castelo, em 1921, que envolveu a desocupação de moradores e a destruição de casas, marcando um momento significativo na história das remoções populacionais na cidade. O MHN estava localizado no canto da Exposição, e fez parte de um movimento emancipatório e modernista que buscava superar a sensação de inferioridade em relação à civilização europeia.
Os eventos da Exposição começavam diariamente às 16 horas e tinham um custo de entrada de 1$000 réis (mil réis), encerrando-se todas as noites às 23 horas. Para ter acesso ao pavilhão de festas, onde ocorriam eventos quase todas as noites, era necessário desembolsar 5$000 réis (cinco mil réis). Alguns pavilhões de países estrangeiros ofereciam entrada gratuita, mas somente até às 16 horas, horário de abertura oficial da Exposição.
Vale destacar que esses preços evidenciam que a exposição foi direcionada principalmente para uma classe econômica mais privilegiada. Uma análise à luz da pesquisa de Boris Fausto sobre a vida econômica e social da classe trabalhadora na cidade do Rio de Janeiro em 1919, revela que o salário diário médio dos homens adultos na indústria têxtil era de 6$720 réis, enquanto o das mulheres era de 5$165 réis. Os trabalhadores com menor idade receberam ganhos de 2$479 e 2$825 réis, homens e mulheres, respectivamente. Esses valores não ultrapassavam 8$000 réis por dia, enquanto certos alimentos custaram entre 1/6 a 1/4 do salário diário. Por exemplo, segundo Leo Affonseca, o quilo de arroz custava 960 réis em 1919, o quilo de café em pó custava 2$000 réis, o quilo de pão custava 990 réis e a carne fresca era vendida por 1$200.
Considerando esses números, fica claro que, para a classe trabalhadora, comparecer à Exposição significaria gastar uma parte significativa de seu salário diário, equivalente ao valor de um alimento básico, e até mesmo comprometer um dia de trabalho para poder desfrutar de uma noite no pavilhão de festas. Enquanto isso, a elite carioca tinha acesso a bens de consumo mais caros, como sapatos da moda que custavam entre 21$000 e 32$000 réis, conforme anunciado pela Sapataria Popular no jornal Correio da Manhã. Assim, embora os organizadores da Exposição oferecerem preços, à primeira vista, acessíveis, incluindo a gratuidade, o evento não estava ao alcance de toda a população carioca.
Desapontamento com baixo número de visitantes
Durante a Exposição do Centenário, o Museu Histórico Nacional abriu suas portas gratuitamente, mas apenas das 12 às 16 horas. Gustavo Barroso, em seu relatório sobre os primeiros meses de operação do museu, expressou desapontamento com o baixo número de visitantes entre outubro e dezembro de 1922, totalizando apenas 6.422 visitantes, enquanto no primeiro semestre de 1923, o MHN registrou 16.763 visitantes.
Barroso culpou a baixa visitação à má publicidade feita pelos jornais Correio da Manhã e Correio da Noite, que acusaram o museu de ser um “pretexto para empregos”. Entretanto, a Exposição do Centenário foi claramente direcionada principalmente a um público internacional e uma elite específica, atraindo 3 milhões de visitantes nacionais e internacionais que elogiaram o Rio de Janeiro como uma “cidade maravilhosa”. Enquanto isso, Barroso lamentava a falta de participação do “povo” que frequentou a Exposição.
A vinda da elite ao MHN e da baixa frequência da população trabalhadora do Rio de Janeiro pode ser atribuída à localização quase inacessível do museu para muitos cariocas. Além disso, o museu legitimava valores higienistas e moralistas da época, como a obrigatoriedade do uso de paletó e sapatos e a prisão de homens negros por não usarem colarinho em 1910, aponta o historiador Nikolau Sevcenko. Este apoio do museu é evidenciado no decreto de fundação do MHN de agosto de 1922, que definiu requisitos de vestimenta e proibiu a entrada de crianças menores de dez anos desacompanhadas.
Outro aspecto importante é a comparação das estatísticas de visitação do MHN com as do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (MN), que atraiu públicos muito maiores que o MHN ao longo dos anos. Por exemplo, quando o MN teve 1.776 visitantes em apenas seis dias em maio de 1922. Isso sugere que o projeto de Barroso alcançou apenas um público limitado, não representando toda a população carioca e nem todo o Brasil.
101 anos depois, uma nova visão do público
Após 101 anos, o MHN passou por transformações institucionais internas e externas. O atual Museu Histórico Nacional não se limita mais a simplesmente contar a história do Brasil, mas se esforça em se integrar de maneira social e política com os públicos que o frequenta. Nos últimos vinte anos, o museu implementou diversas iniciativas que estão em andamento, como cursos, seminários e programas sociais em parceria com escolas, instituições de apoio e movimentos sociais. Isso reflete uma mudança significativa na forma como o museu se relaciona com os seus atuais públicos. A transformação do MHN não se deve apenas às tendências da museologia social e da nova museologia que afetaram os museus brasileiros, mas também pelo interesse e engajamento da própria instituição composta por uma equipe de funcionários, terceirizados, temporários e estagiários, e pelos públicos que rodeiam o museu.
A exposição de longa duração do museu “Cidadania em Construção”, por exemplo, passou por um processo de alteração em sua narrativa desde 2017, incluindo a incorporação de novos objetos e coleções adquiridas de forma participativa por grupos sociais a partir de 2016, como objetos do Museu das Remoções (movimento de famílias removidas da Vila Autódromo), e coleção de objetos sagrados do Candomblé doados pela Ialorixá Zaira Trindade, o que desempenhou um papel significativo de novas visibilidades da história nas exposições do museu.
No entanto, nem todos os problemas foram solucionados. Segundo explica a pesquisadora Aline Magalhães, apesar da inclusão de elementos relacionados à história afro-brasileira na exposição, isso não se traduziu necessariamente em uma maior visibilidade da história negra do Brasil. Ela aponta que as exposições do MHN continuam a refletir silenciamentos, hierarquizações, domesticações e invisibilizações da história africana. Há ainda bases antigas e coloniais da escola patriótica de Gustavo Barroso nas exposições e coleções originais que permanecem no museu, e para trazer o museu democrático que o MHN preza, é preciso transformações mais profundas, alinhadas com o novo século.
Como exemplo da existência das bases colonialistas do museu de 1922, existe a demora para tratar de novas histórias para nosso presente, como da memória LGBTQIAPN+, o que ocorreu apenas este ano, quando o MHN coletou objetos de Rogéria, figura importante dos shows de travestis do Rio de Janeiro em 1970. Jean Baptista e Tony Boita questionam as omissões dos museus brasileiros em trazerem visibilidade das “memórias desobedientes”, como define Boita. Devido a esta omissão, os autores desenvolveram o conceito de Museologia LGBT+ em 2013, que se caracteriza por ser educativo e inclusivo, envolve questionar as omissões dos museus brasileiros, destacar a história LGBTQIA+ de diversos protagonistas históricos, valorizar a diversidade e apoiar a autodeterminação das várias identidades sexuais e de gênero, envolvendo um conjunto de esforços colaborativos que se estendem por toda a América Latina.
Uma coisa ficou clara desde 2022: para “comemorar” a independência do Brasil, o MHN não precisa ser parte de uma coletânea de eventos grandes de um centenário. Como instituição que se propõe pela integração social e democrática, o objetivo central deve ser a participação e visibilidade das diversas histórias de nossa população para substituir as bases de escola patriótica em que o museu se fundamentou no último século.
Referências
AFFONSECA JR, Leo. O custo de vida na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1919.
BAPTISTA, J.; BOITA, T.; WICHERS, C. O que é Museologia LGBT. Revista Memórias LGBT, v. 12, p. 10-16, 2020.
CARDOSO, R. A reinvenção da Semana e o mito da descoberta do Brasil. Estudos Avançados, vol. 36. n. 104, pp. 17–34. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2022.36104.002. Aceso em 05. set. 2023.
FAUSTO, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social: 1890 – 1920. Cia das Letras: São Paulo: 2ª ed. 2016 .
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Da diáspora africana no Museu Histórico Nacional: um estudo sobre as exposições entre 1980 e 2020. ANAIS DO MUSEU PAULISTA, v. 30, p. 1-29, 2022.
SANTOS, M. S. A Escrita do Passado nos Museus Históricos. 1. ed. Rio de Janeiro: Garamond/Minc, Iphan, Demu, 2006.
SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 3a. ed., S.P., Ed. Brasiliense, 1989.
Fontes
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. MHN Recebe doação de itens pessoais que pertenceram à atriz Rogéria. Portal MHN. Disponível em: https://mhn.museus.gov.br/index.php/mhn-recebe-doacao-de-itens-pessoais-que-pertenceram-a-atriz-rogeria/. Acesso em 05. Jul. 2023.
Como citar este artigo
NIZIO, Thomas. Sem paletó e sapato, não entra no museu (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/sem-paleto-e-sapato-nao-entra-no-mueseu-historico-nacional. Publicado em 18 set. de 2023. ISSN: 2674-5917.