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Sandman: uma saga sobre a importância dos sonhos

Sandman: uma saga sobre a importância dos sonhos 3

Cena da série da Netflix. Foto: Reprodução Netflix.

A primeira temporada de Sandman (Netflix, 2022) conseguiu realizar a adaptação da história em quadrinhos e personagens criados em 1987-1988 (publicada entre 1989 e 1996) por Neil Gaiman. Transmitiu bem o “espírito” da coisa. O arco foi bem escolhido e a trama central na qual os 11 episódios (10 episódios mais um bônus lançado posteriormente e dividido em duas histórias) se desenvolveram muito bem. A tarefa hercúlea de transpor para o audiovisual um universo considerado por muitos, e com alguma razão, praticamente inadaptável, foi satisfatoriamente bem feita. Como qualquer adaptação, o objetivo não é ser idêntico às histórias em quadrinhos. Escolhas foram feitas, muitos recortes (subtramas, arcos e dezenas de personagens ficaram de fora), mudanças visuais, entre outras. Tudo acontece dentro dos limites que a nova mídia impõe, e com uma expectativa de público muito mais ampla (mesmo com uma orientação parental sugerida de 18 anos) que aquela dos “quadrinhos”. Na minha opinião, o resultado foi excelente.

O cuidado e o respeito com o texto original são destaques, mas não acho que sejam os principais elementos da adaptação. OK, trata-se de uma história com uma base de fãs absolutamente apaixonados(as), então há essa expectativa. A presença do criador de Sandman, Neil Gaiman, no longuíssimo desenvolvimento desta produção (originalmente pensada para as telonas) evidencia que esta adaptação deveria ser muito, mas muito mesmo, cuidadosa, tanto com o texto original quanto com os sentimentos dos fãs em relação aos arcos e o mythos de Morpheus, o senhor e príncipe dos sonhos e pesadelos. Mas esse respeito não é submisso. Gaiman parece obstinado em afirmar que Sandman não sucumbe à tirania do fanboy “nerdola” da nossa contemporaneidade. Que eles e elas não determinam tudo que há para ser dito sobre Sandman, nem sobre a adaptação da Netflix (ainda bem!). Por outro lado, acho problemático quando um autor se engaja de modo assim tão intenso na “defesa de sua obra”. Sinal dos tempos? Bom, talvez…

O que as histórias em quadrinhos nos oferecem é uma saga sobre a importância dos sonhos, e o faz em torno da personagem Sonho. Acho relevante dizer que uma série como Sandman atualiza o tema dos mitos numa chave positiva, criativa e artística, sobre o que há de transcendente e perene na ideia dos mitos. Calma! Não como pretexto para fundar ideologias e discursos de ódio sobre quem é mais isso ou aquilo, menos ainda fundamentar delírios sobre identidades perdidas a serem resgatadas com base em ignorância e preconceito. Sandman trata de mitos não para dizer que estes são a verdade escondida, ou “a verdade que não querem que você descubra” (teoria da conspiração), mas como elementos que se tornaram exóticos no mundo moderno do sentido, da história, do real e da verdade empírica. Uma perspectiva que não possui, nem por um segundo, essa pretensão de ser uma verdade “revelada”, nem tampouco antagonizar com a história ou a ciência, mas que versa sobre a importância dos sonhos (e pesadelos), por exemplo, na sua relação com o real (dialeticamente), algo que remete ao trabalho psicanalítico de Sigmund Freud, sem, é claro, parar por aí.

Um elemento fundamental da saga é o mote que a humanidade precisa do sonho tanto quanto o sonho precisa da humanidade. Gaiman explora muito mais o lado poético, e até quase filosófico, em seu ângulo sobre aquilo que faz de nós humanos pela chave do mito, sem amarrar suas personagens a uma história da civilização, ou de progresso, uma vez que sua história é contada a partir de uma personagem quase desprovida de senso de tempo cronológico, pois “João Pestana” é eterno.

Assim, temos mais um autor britânico (antes dele, Alan Moore já havia feito seu nome e reputação) que viu Thatcher fazer o que fez no Reino Unido, escrevendo contos de horror sobre mitos e sobre sonhos nos Estados Unidos de Reagan. A terra da liberdade e do “sonho americano”, no final da década de 1980, era um cenário de terra arrasada. Os rescaldos da Guerra do Vietnã, cujo custo humano foi devastador; o escândalo de Watergate e a ascensão da nova direita ao poder político com base em slogans vazios e nostálgicos como “Make America Great Again” (não foi invenção do Trump!); conservadores perseguiam a cultura dos jovens como degeneração e perversão; uma “guerra às drogas” (verdadeiro embuste para criminalizar áreas tradicionalmente pobres e guetos étnicos) reforçava todo tipo de estereótipo racista e supremacista branco nos EUA; a paranoia da Guerra Fria; emergência da epidemia de AIDS; desemprego (o desmonte do parque industrial estadunidense); consumismo; competição selvagem; fome, miséria, propaganda, novos yuppies e a ascensão de Wall Street, etc… Em uma palavra: sob o neoliberalismo de Reagan os únicos sonhos americanos aceitáveis seriam os sonhos de consumo, de viver uma vidinha suburbana medíocre numa família tradicional, ou então o sonho de “ganhar o seu primeiro milhão de dólares antes dos 25 anos de idade”. Não surpreende que Morpheus seja uma figura jovem representada sempre de modo tão sorumbático. Ele representa o sonho em um mundo em que sonhos se tornaram bobagem ou metáfora para consumo, ganância e ambição.

Como começa

A história de Sandman se inicia com sua prisão por um “mago”, líder de uma seita ocultista que desejava capturar a Morte e obrigá-la a conceder-lhe a vida eterna. Na série isso foi alterado, o mago deseja trazer de volta à vida o seu filho, morto em batalha na Primeira Guerra Mundial. Conseguiu capturar o Sonho, contudo. Que ao longo de mais de setenta anos (na série são cerca de cem anos) ficou preso num porão. Um Morpheus amargurado e silente, que não percebeu o quanto esse mundo mudou devido à sua ausência, e que detestou conhecer o lado bizarro desta humanidade que o capturou e tomou as suas “ferramentas” (sua areia, seu rubi e seu elmo).

Na “natureza” do Moldador de Sonhos temos elementos dos Perpétuos, entidades mais antigas e mais poderosas que deuses, conhecidos também por vários nomes e em diferentes formas por línguas e culturas distintas. Há um certo ar aristocrático em Morpheus, certa indiferença, um ethos de “whatever” permanente, digno, talvez, de um “príncipe” afetado pelo desgosto (e pela raiva) de ter se deixado capturar e perder seus objetos preciosos. Em geral, quem “manda a real” sobre esses traços de personalidade que Sonho insiste em manter inalterados é sua irmã, e igualmente Perpétua, Morte.

Exuberância de cores em cena. Foto: Netflix.

Os Perpétuos são como conceitos abstratos (ou ideias), não possuem uma forma física definida, pois são antropomórficos. A entidade que os observa define sua forma sensível. Quando Morpheus dialoga com Nada, seu antigo amor, por exemplo, ele aparece como Kai’ckul, um homem negro, pois é como Nada assim o percebe. Quem pensa que a forma de um jovem homem, de pele pálida, olhar melancólico e visual meio gótico meio “pós-punk” da década de 1980 (na série, seu corte de cabelo foi mais pro lado “emo”) seria a forma verdadeira de Sonho, se engana. Mesmo sendo a Netflix a casa da “retromania” e da nostalgia dos “anos 80”, a produção conteve o ímpeto de emular o visual de mais de 30 anos atrás. Assim, a “forma” das personagens, não apenas dos Perpétuos, muitas vezes é diferente daquela apresentada originalmente nas histórias em quadrinhos. Isso é tudo parte do jogo.

Penso que Gaiman e a produção brincam com a “forma sensível” da série e suas personagens como Gaiman fazia nos quadrinhos. Eles perseguem a forma que seria projetada pela época aos olhos da “cultura” que recebe suas histórias, um pouco como a saga faz com as personagens antropomórficas. Parece um detalhe menor, mas os quadrinhos miravam uma juventude educada para serem empreendedores, yuppies, e “herdar o mundo” (caótico) que tinham diante de si e, de alguma forma, concretizar os “sonhos” que seus pais elaboraram para eles(as) – hoje sabemos como a ansiedade e depressão tornaram sonhos como estes em pesadelos das novas gerações. A série parece fazer o mesmo diante dos filhos daquela geração que sepultou os hippies, a paz e o amor. E é exatamente nesse ponto que a história de Sandman ganha atualidade, inclusive no visual do show como um todo. Na verdade, esse ponto se desdobra em dois.

Abordagem “anti-J.K. Rowling”

Primeiramente, além dos fãs de quadrinhos em geral, e de Sandman em particular, a série da Netflix tem como um dos públicos-alvo os filhos dos primeiros leitores da história de Gaiman. Portanto, lida com tensões geracionais de modo inteligente, não abrindo mão, por exemplo, de recursos importantes como a representatividade, mantendo exatamente a ideia dos quadrinhos. Não qualquer representatividade, mas uma representatividade efetiva, mais do que a “afetiva” que muitos leitores de primeira hora exigem. Penso que esse não é mero adereço na adaptação. É parte, talvez, do modo como Gaiman reforça elementos da sua criação na nova mídia e para a nossa contemporaneidade. Assim, as personagens que nos quadrinhos são representadas como pessoas brancas, de cabelos morenos ou loiros, são interpretadas majoritariamente por atores e atrizes pretos na série da Netflix. Isso é deliberado, da mesma forma como não são retratadas como vítimas indefesas nas cenas em que suas personagens sofrem algum tipo de violência. Pelo modo aguerrido como Gaiman tem atuado nas redes sociais, pode-se dizer que esse seria o “sonho” de tolerância e diversidade dele para o nosso tempo? Talvez… Numa abordagem “anti-J.K. Rowling”, digamos, Gaiman faz questão de quebrar rótulos e estereótipos. Por exemplo, pessoas do sexo masculino, como a personagem John Constantine, podem tornar-se a mulher lésbica Johanna Constantine (ela existe nos quadrinhos, portanto, nem de longe trata-se de mera “lacração”, como dizem as más línguas); Lúcifer é interpretado por uma atriz (lembrando que anjos não existem, não possuem sexo, menos ainda possuiriam papéis de gênero!); Desejo, irmane de Morpheus, já era uma personagem não binária nas histórias em quadrinhos, manteve-se como tal na adaptação, entre outros, outras e outres.

Em segundo lugar, vivemos tempos diferentes, porém com muitos paralelos àqueles anos que testemunharam o sucesso dos quadrinhos de Gaiman. Nosso tempo, infelizmente, parece mais sombrio, mais intolerante e mais violento contra grupos minorizados e historicamente perseguidos. Isso não significa que não houvesse racismos, xenofobia e lgbtfobia, toda sorte de discriminação na época em que Sandman foi publicada. Óbvio que existia! Mas podemos dizer que a nossa época, e as novas mídias, e as novas representações políticas e a atividade ética e política de uma nova juventude reforçam a consciência crítica do papel das artes na luta pelos direitos humanos mais fundamentais. Entre outros, o direito a sonhar. Sim, sonhar. Não o sonho pelo sonho, mas o sonho como potência, como força vital e alegoria para uma vida livre de onde se pode extrair a força para lutar contra “pesadelos” que muitos julgaram mortos e enterrados, mas se fazem vivos e perambulam pela nossa realidade desperta, como o vilão da série, o pesadelo fugitivo do reino do Sonhar, o “Coríntio”. Nosso tempo conhece pessoas reais que são privadas de seu sonhar e de sua dignidade, aprisionadas nas teias de “sonhos” de felicidade “eterna-enquanto-viraliza” e da obsolescência programada. Em sonhos corporativos de desempenho e eficiência, de glória no produtivismo, do consumismo, da propaganda nas telas de computadores, dos smart isso e aquilo,e que tais.

Cena da HQ de Sandman. Imagem: Reprodução/Vertigo.

A série de Sandman da Netflix nos apresenta o mundo do sonho de Gaiman hoje, o mito e a alegoria. Nos relembra não apenas do valor poético, estético e literário da obra de Gaiman, mas da importância de levarmos a sério o ato de sonhar como parte da luta por uma vida menos egoísta (em parte, parece ser este o caminho que o próprio Morpheus percorre) e mais digna no mundo dos despertos. Nosso mundo, contudo, não é desprovido de sonhos, mas, dizem, que o mundo seria dos “(d)espertos”. Será? Hoje, há venda de sonhos “espaciais” de bilionários, sonhos de liberdade nas prisões da “vida saudável”, da cosmética do “forever young”, os sonhos de enriquecimento rápido e ganância, sonhos de glória, fama e celebridade instantânea, sem jornada, sem aprendizado. Vendem-se sonhos como experiência “fast food” gourmetizada para quem foge, deliberadamente ou não, do mundo, da vida real. Vendem-se sonhos pré-fabricados, multiplicamos sonhadores impotentes, compulsivos e obedientes, em escala industrial. Sonhadores que almejam trancafiar-se numa realidade virtual (e comercial), como o tal “metaverso”, com seus avatares, jogos online, consumos, filtros, edições e deep fakes e dali evadirem-se do mundo real para sempre. Nosso mundo de muitos desejos e pouca potência, de muitas drogas e harmonizações faciais, de realidades paralelas e mediocridades celebradas, de tantos ressentimentos e vinganças, de fake news, negacionistas e conspirações sonhos tornaram-se meios para alienação. Dos sonhos vendidos no grande varejo das máquinas de publicidade e marketing das grandes corporações do Vale do Silício, ou para os sonhadores do empreendedorismo com a moda do coaching para pessoas exaustas, frustradas, perdidas, desempregadas ou esgotadas pelo cotidiano devastador das precarizações do capitalismo tardio.

Talvez, a mais importante provocação de uma série como Sandman, hoje em dia, seja esta: precisamos reaprender a sonhar menos egoistamente, menos como consumidores de sonhos-produtos, e mais como partes de uma humanidade porvir. Para que possamos reconstruir o mundo em ruínas que temos diante de nós, esse outro sonho seria imprescindível. Sem ele, a vida “real” se resumiria ao pesadelo de olhos abertos, ao ódio, ao massacre, à pulsão de morte, enfim, ao horror.

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