O dia 8 de abril é o Dia Internacional do Povo Romani, no Brasil, mais conhecido como “Povo Cigano”1. Essa data foi escolhida durante o 1º Congresso Mundial Romani (1st World Romani Congress/WRC), realizado nas proximidades de Londres, em abril de 1971, apra tratar da “questão cigana”. Esse congresso é um marco no processo de internacionalização dos movimentos sociais romani, quando foram lançadas as bases para a fundação da União Internacional Romani (International Romani Union/IRU) em 1978, a mais importante organização transnacional romani até meados da década de 1990 – e ativa até hoje.
Este artigo tem o objetivo de explicar as origens deste movimento social e as bandeiras que ele passou a levantar no congresso realizado em Londres em 1971.
O 1º Congresso Mundial Romani
A realização do 1º Congresso Mundial Romani foi o resultado da internacionalização dos debates sobre questões políticas e sociais relacionadas aos povos conhecidos como ciganos. Essas discussões foram encabeçadas por parte de uma elite intelectualizada que havia sido socializada e formalmente educada dentro dos grupos maioritários dos países onde viviam, mas sentiam-se como integrantes dos povos ciganos.
De acordo com a literatura especializada, calcula-se que pessoas de 14 diferentes países estiveram reunidas em Londres no 1º Congresso Mundial Romani. O evento foi realizado para discutir problemas enfrentados cotidianamente por populações ciganas ao redor do mundo, bem como estratégias e desafios a serem enfrentados por essas comunidades.
No campo simbólico, três decisões importantes foram tomadas nesse congresso: a adoção de uma bandeira para representar a população romani; a escolha de um hino – Gelem, Gelem (em português “eu fui, eu fui”); e a decisão de que a palavra mais adequada para representar as populações conhecidas como ciganas seria roma (singular rom, adjetivo romani).
Todos esses três elementos são relevantes na organização do nacionalismo romani. Contudo, a questão da autodenominação é a mais complexa e aquela com mais significados sociais. 2 Em português, costuma-se utilizar a palavra cigano para se referir à população que em inglês é conhecida por gypsy, em romeno țigan, em alemão zigeuner, em espanhol gitano etc. Esses gentílicos têm duas origens diferentes. Cigano, țigan e zigeuner desenvolveram-se a partir da palavra do grego antigo atsinganoi e que significava algo próximo de ‘aqueles que não devemos tocar’ ou ‘aqueles nos quais não se toca’ – o que já deixa claro o preconceito sofrido por essa população. Por razões históricas não muito claras, migrantes vindos do leste eram assim nomeados dentro do Império Bizantino. Gypsy e gitano têm uma origem diferente, apesar de também estarem conectadas ao mesmo período.
O uso desses termos está conectado com uma cidade portuária movimentada conhecida como Pequeno Egito, situada no que hoje corresponde ao sul da Grécia . Como era uma cidade comercial, tornou-se um espaço de oportunidade para migrantes e, assim, populações que do leste da Europa ou da África buscavam se estabelecer na cidade. Quando partiam para outros lugares na Europa, estas pessoas passaram a ser comumente chamadas de egípcios. Tanto o termo egípcios quanto atsinganoi foram adaptados às línguas locais ao redor da Europa e evoluíram para as palavras que conhecemos hoje.
Contudo, essa palavra não era usada pelos nomeados3. Eles não escolherem ser chamados assim. Por ser uma nomeação exterior à população cigana, o 1º WRC decidiu que a palavra roma (que significa homem ou marido em língua romani) como denominação correta para (quase) todas as populações conhecidas como ciganos ao redor do mundo.
A questão da melhor palavra para denominar os “povos ciganos” pode parecer pequena, mas ela é parte de um processo complexo que envolve a requalificação socioeconômica e política de toda uma população – ou das várias populações que são geralmente vistas como um grupo único quando observadas ‘de fora’. Por meio da auto nomeação e, consequentemente, da reescrita da sua historiografia e da reinterpretação de suas práticas culturais, essas comunidades vão reivindicar seu protagonismo e autodeterminação.
As origens do movimento social romani
As origens do movimento social romani são antigas. É possível dizer que a combinações de três contextos históricos e sociais serviram como motor para o estabelecimento dos movimentos sociais romani.
O primeiro contexto histórico diz respeito ao legado político-social do Império Otomano. Pode-se encontrar os registros mais antigos de organizações sociais ciganas na região dos Balcãs por volta do fim do século XIX.4 Diferentemente do que acontecia em outras localizadas da Europa, a população cigana que vivia no território otomano era considerada parte integrante da sociedade e lutava, como qualquer outra minoria, pelo seu espaço de participação política5, não existindo uma repressão sistematizada à sua identidade étnica. Desse modo, dentro do Império Otomano e em regiões sobre forte influência otomana, essas populações ciganas sempre viveram em pelo menos dois níveis: tanto como uma comunidade étnica separada e reconhecida, quanto como parte da sociedade como residentes e cidadãos.
O resultado é que entre 1905 e 1939 existem registros da fundação de 27 organizações ciganas na região, sendo 12 na Bulgária, nove na Romênia, cinco na Iugoslávia e uma na Grécia. Depois de 1945, outras cinco organizações surgiram na Bulgária, um dos poucos países europeus onde os ciganos não foram perseguidos e mortos6 . Havia, deste modo, um contexto favorável à politização das populações romani localmente nos Balcãs, tanto pela existência histórica de certo nível de liberdade política quanto porque havia uma consciência étnica entre esses grupos, ao menos em parte deles.
A esse contexto será somada a chegada da experiência socialista aos países balcânicos (com exceção da Grécia). O socialismo no Leste Europeu é um segundo elemento que nos ajuda a compreender a realização, em 1971, do 1º Congresso Mundial Romani.
Após a chegada de Stalin ao poder na URSS, o seu ponto de vista sobre nacionalismo e minorias nacionais confundiu-se com a política de Estado e espalhou-se pelos outros Estados socialistas formados depois da 2ª Guerra. Stalin escreveu que nações eram constituídas de uma comunidade de pessoas com língua comum, território demarcado, vida econômica e cultura comum7. Enquanto três dos quatro elementos citados podem, em diferentes níveis, ser encontrados em meio à população cigana, não existem territórios específicos ao quais estas populações estejam atreladas. Eles viviam em praticamente todos os países da Europa naquele momento – e ainda vivem.
Desse modo, os povos ciganos não foram vistos como um grupo nacional/étnico e sim como parte integrante da sociedade onde viviam, tendo como principal característica identitária o de serem parte da massa proletária. Dependendo do momento e da região, ciganos enfrentavam ou uma política repressiva com relação as suas expressões culturais ou eram simplesmente ignorados nesse aspecto. O não reconhecimento da etnicidade cigana teve um contra efeito que foi, de certa forma, positivo. Qualquer tipo de discriminação por motivos étnicos era proibido dentro da Cortina de Ferro – não se afirma aqui que o racismo não acontecia, mas que era sumariamente proibido – porque todos deveriam ser iguais. Assim, ciganos conseguiram alcançar níveis mais altos de educação formal nos países chamados socialistas do que no oeste europeu8.
Apesar deste esforço estatal socialista para desconectar esses indivíduos de seu pertencimento étnico durante anos, foram essas pessoas com ascendência cigana e formalmente educadas que, a partir da década de 1960, começaram a requalificar a historiografia e o status político romani. Não parece coincidência, deste modo, constatar que grande parte da elite intelectual romani envolvida no 1º WRC tem conexão com os países europeus que viveram a experiência da economia socialista de influência soviética.
Por fim, o terceiro contexto histórico para compreender a realização do evento de 1971 foi a violência a que foram submetidos os povos romani durante o regime nazista.
Menos discutido e, por isso, menos conhecido que o assassinato de judeus durante a Segunda Guerra Mundial foi o genocídio cigano durante o conflito. Algumas fontes, sendo a mais importante delas professor Ian Hancock, afirmam que proporcionalmente o assassinato de ciganos em campos de concentração foi tão grande para a população cigana como o de judeus para a comunidade judaica. No entanto, como o método de perseguição, a forma do genocídio e mesmo os registros a respeito dos povos ciganos antes da guerra são diferentes, é praticamente impossível chegar a um número fixo. Certo é que, diferentemente do caso judeu, não houve o reconhecimento do genocídio depois da Guerra, como também não houve reparações simbólicas e/ou financeiras até meados da década de 1990. Apenas em 2001 o Memorial sobre o Holocausto localizado em Auschwitz inaugurou um espaço abordando a história cigana.
Na década de 1960, Vanko Rouda fundou o Comitê Internacional Cigano (International Gypsy Committee/IGC) e, entre os seus principais objetivos, estava: conseguir levantar reparações financeiras pelos crimes de guerra cometidos contra ciganos, dinheiro esse que deveria ser manuseado ou pela UNESCO ou pelo Governo Indiano9. O IGC foi a principal organização responsável pela realização do 1º WRC em 1971. Uma das comissões criadas durante o congresso estava voltada para discutir crimes de guerra, que acabou por se reunir pela primeira vez em 1972 sob o nome Comissões sobre Crimes de Guerra e Problemas Sociais do Congresso Mundial Romani (Social and War Crimes Commissions of the World Romani Congress).
Aliás, o principal agente agregador das elites intelectuais romani na década de 1960 foi justamente a discussão sobre o Baro Porrajmos ou Samudaripen (palavras em língua romani para representar o genocídio). Em outras palavras, em meio a uma população culturalmente plural, geograficamente espalhada e com diferentes necessidades sociais e políticas, o debate sobre o reconhecimento do genocídio durante a 2ª Guerra Mundial serviu como elemento comum que acabou por reunir essa elite intelectual e ativistas romani e/ou simpatizantes.
Por fim, ainda que a Comissão criada em 1971 não tenha tido papel direto nas futuras restituições financeiras e simbólicas do genocídio, foi um importante primeiro passo que ajudou no reconhecimento da IRU por organizações internacionais.
O legado do Congresso de 1971 e a questão cigana
O congresso de 1971 abriu espaço para uma organização internacional dos vários grupos que já trabalhavam com a causa cigana ao redor da Europa. A partir dali, os ativistas romani passaram a ser reconhecidos pelo Conselho da Europa (1972) e, depois da criação oficial da IRU em 1978, pela Organização das Nações Unidas (1979).
Apesar de não ter conseguido se conectar de forma efetiva com as comunidades ciganas, essa elite intelectual romani e esses ativistas seguiram como principal interlocutores em nome dessas populações até que, com o fim do socialismo, os chamados de “Doadores Ocidentais” puderam chegar ao leste europeu. Com a injeção de financiamento e perícia fizeram com que organizações locais crescessem em importância política.
A partir dos anos 2000 a paisagem muda novamente com a ascensão de países do leste Europeu à União Europeia, trazendo certa centralização das discussões sobre a os povos roma à Bruxelas, com a fundação do Fórum Europeu de Viajantes e Roma (European Roma and Travellers Forum/ERTF) em 2004. Não conseguindo superar a distância entre a realidade local e a elite intelectual/ativistas o ERTF foi caindo em força política, a IRU passou a enfrentar crises internas e até uma separação em dois grupos (durante alguns anos houve duas IRU, ambas considerando-se a única e verdadeira) e as iniciativas financiadas pelo dinheiro ocidental novamente voltaram a crescer em relevância.
O último capítulo dessa história, até agora, foi a fundação do Instituto Romani Europeu de Artes e Cultura (European Roma Institute of Arts and Culture/ERIAC) em 2016, baseado em Berlim e com apoio da União Europeia e suporte financeiro do milionário George Soros. Nesse contexto, a IRU se reinventou em 2018, conseguiu unir duas facções que estavam separadas e tentam crescer em força política novamente10.
Notas
[1] A questão de como nomear as populações que são comumente conhecidas como ciganos é sempre um desafio. No Brasil, tanto intelectuais e ativistas como a população aceitam e utilizam a palavra cigano. O mesmo acontece no Reino Unido, em Portugal, na Espanha e, até certo ponto, na Polônia e na Bulgária onde é possível utilizar a versão local de cigano. Contudo, em outros países da Europa utilizar essa palavra em sua versão local pode ser (e geralmente é) entendido como bastante ofensivo a partir do ponto de vista dos ativistas e intelectuais. Esse é o caso principalmente de República Tcheca, Hungria, Romênia e Alemanha. A questão se torna ainda mais complexa porque nas comunidades locais de diversos países existem grupos que não ligam ou não aceitam a nomenclatura roma, e continuam se autodenominando ciganos, ou ainda que utilizam ciganos e roma como sinônimos. Nesse texto, convencionou-se utilizar o termo cigano ao se referir à população em geral e romani em relação à identidade étnica requalificada pelos movimentos sociais a partir de 1971. Contudo, essa é uma decisão arbitrária que não dá conta da complexidade do tema.
[2] ACTON, T.; KLÍMOVÁ, I. The International Romani Union: An East European answer to West European Questions? Shifts in the focus of the World Romani Congresses 1971 – 2000. Between past and future: the Roma of Central and Eastern Europe. Hertfordshire: University of Hertfordshire Press, pp.157–219, 2001.
[3] HANCOCK, I. We are the Romani people / Ame Sam e Rromane dz̆ene. Hertfordshire: University of Hertfordshire Press, 2005.
[4] Os Balcãs são uma região montanhosa situada a sudeste do continente europeu, com limite a noroeste na Itália, a norte na Hungria, com Moldávia e Ucrânia a nordeste e o mar Egeu ao sul. Desde a queda de Constantinopla em 1453 até o fim da 1ª Guerra Mundial, essa área esteve ou sob o domínio ou, ao menos, sob a influência do Império Otomano.
[5] Os principados da Valáquia e da Moldávia – hoje sul e nordeste da Romênia – tinham uma característica própria, apesar de também dentro da zona de influência otomana. Nessa área os povos ciganos eram escravizados pelo Estado, pela Igreja Ortodoxa Romena e pelos nobres. Mais informações em: NECULA, C. The cost of Roma slavery. Perspectives in Politics / Perspective Politice, v. 5, n. 2, p. 33–45, 2012.
[6] MARUSHIAKOVA, E.; POPOV, V. The first Gypsy/Roma organisations, churches and newspapers. From Dust to Digital: Ten Years of the Endangered Archives Programme. p.189–224, 2015. Cambridge: Open Book Publishers.
[7] STALIN, I. V. Marxism and the National Question. London: CPGB-ML, 2012.
[8] MARUSHIAKOVA, E.; POPOV, V. Ethnic Identities and Economic Strategies of Gypsies in the Countries of the Former USSR. Nomaden und Sesshafte – Fragen, Methoden, Ergebnisse. v. 1, p.289–310, 2003. Wittenberg: Orientwissenschaftliches Zentrum der Martin-Luther-Universität.
[9] KLÍMOVÁ-ALEXANDER, I. The Development and Institutionalization of Romani Representation and Administration. Part 3b: From National Organizations to International Umbrellas (1945-1970) – the International Level. Nationalities Papers, v. 35, n. 4, p. 627–662, 2007.
[10] SAMBATI, D. N. Historical Sociology of the Romani Nationalism: Foundations, Development and Challenges, 2019. Prague: Faculty of Humanities at Charles University.
Referências Complementares
BECK, S.; IVASIUC, A. Roma Activism: Reimagining Power and Knowledge. Oxford, Berghahn Books, 2018.
FRASER, A. M. The Gypsies. 2nd ed. Oxford: Blackwell, 1996.
KJUČUKOV, C. S.; RAWASHDEH, O. (orgs.) Roma identity and antigypsyism in Europe. München: LINCOM Europa, 2013.
MAYALL, D. Gypsy identities, 1500-2000: from Egipcyans and Moon-men to the ethnic Romany. London: Routledge, 2004.
SIGONA, N.; TREHAN, N. Romani Politics in Contemporary Europe: Poverty, Ethnic Mobilization, and the Neoliberal Order. New York: Palgrave Macmillan, 2009.
VAN BAAR, H. The European Roma: Minority Representation, Memory and the Limits of Transnational Governmentality. Amsterdam: F&N Eigen Beheer, 2011.
Como citar este artigo
SAMBATI, Douglas Neander. As origens do movimento social que internacionalizou a “questão cigana” (artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/romani-questao-cigana/. Publicado em: 8 abr. 2019. Acesso: [informar data].
Gostei muito do artigo. Me chamo Israel, estou fazendo mestrado na linha de Políticas Educacionais na pós da UFPB sobre os ciganos. Vc teria algum pdf das biografias citadas no artigo em português? Ficaria muito grato, se fosse possível você disponibilizar.