A Hungria é um país da Europa Central ainda pouco estudado no Brasil. Pertenceu ao bloco soviético durante a Guerra Fria, faz fronteira com sete outras nações (Romênia, Eslováquia, Áustria, Sérvia, Croácia, Ucrânia e Eslovênia) e é governada desde 2010 pelo Primeiro Ministro Viktor Orbán, do partido Fidesz, abertamente conservador e direitista.
Desde sua chegada ao poder, Orbán vem se esforçando para promover uma profunda transformação cultural no pais. Esta “nova era”, como muitos a chamam, tem como um dos seus pilares um amplo revisionismo histórico que toca em temas sensíveis do passado húngaro. Neste artigo, o primeiro de uma série especial de três artigos intitulada “Revisionismos Históricos na Hungria Contemporânea”, meu objetivo é discutir a criação de um monumento, no ano de 2014, em homenagem às vítimas da ocupação alemã ocorrida em 1944 e as reações provocadas por essa iniciativa.
O monumento
No último dia de 2013, o governo Orbán assinou um decreto para a construção de um monumento em memória dos 70 anos da ocupação da Hungria pelas tropas alemãs, durante a Segunda Guerra Mundial. A obra deveria ser concluída até março do ano seguinte e tamanha rapidez demonstrava a importância que o regime conferia à efeméride que se aproximava. Houve dispensa de licitação para a escolha da empresa construtora e a documentação do projeto ficou pronta em meados de janeiro.
Assim que os planos do governo Orbán se tornaram públicos, grupos políticos, artistas, ONGs, historiadores, e especialmente a comunidade judaica de Budapeste, se levantaram contra esse lugar de memória que pretendia homenagear “todas as vítimas” da ocupação alemã. A força das críticas levou Orbán a suspender a construção do monumento até 31 de março de 2014 e a se comprometer a dialogar com a comunidade judaica.
Entretanto, dois dias após a vitória do Fidesz nas eleições legislativas de 8 de abril, a obra foi retomada sem aviso e as últimas partes foram colocadas na noite de 20 de julho. Não houve inauguração oficial e nenhuma cerimônia pública foi realizada, o que não esfriou a resistência da oposição, que culminou na constituição de um monumento alternativo – ou contramonumento – à construção tão desejada por Orbán.
Mas quais as razões de tantas controvérsias? Por que um monumento que homenageia “todas as vítimas” da ocupação nazista da Hungria foi considerado um problema? Não seria um monumento como este algo positivo para os húgaros? Quais foram as críticas que mobilizaram tantos grupos da sociedade húngara contra o monumento e como ele se inscreve no revisionismo histórico em curso desde 2010 no país?
A Hungria de Orbán: vítima e e guerreira
Orban ocupou o cago de Primeiro Ministro da Hungria pela primeira vez no período 1998-2002. Em 2010, ele foi eleito pela segunda vez. Seu regime tem procurado se apresentar aos seus cidadãos como o representante legítimo da luta por um país soberano e independente. Se essa luta tem, nos dias de hoje, a União Europeia e o liberalismo ocidental como alvos a serem combatidos, ao longo da história outras foram as fontes de opressão sobre a nação húngara, como as ocupações nazista e soviética.
Este é um dos pontos mais importantes do revisionismo histórico do regime de Orbán: nele, a nação húngara é historicamente vítima de agentes externos, especialmente turcos, alemães e russos, que infligiram incontáveis sofrimentos ao seu povo – e toda vítima, como sabemos, é aquela pessoa (ou coletividade) que apenas sofre.
A história húngara é, sob essa perspectiva, uma história dos males causados por outros impérios e nações. Mas não é só isso. Atacado por agente externos, o passado húngaro tem além de vítimas, inúmeros “guerreiros da liberdade” que lutaram pela libertação dos húngaros dos muitos grilhões que os aprisionavam. Como bem definiu a historiadora Andrea Pető, a identidade nacional é apresentada pelo Fidesz como “uma comunidade de sofrimento e uma compreensão anti-pluralista da coletividade”.
Do passado recente, a ocupação alemã é o evento que mais tem mobilizado o revisionismo de Orbán. O país foi ocupado em 1944 e a presença dos nazistas no território húngaro marcou o fim da soberania nacional, além de marcar uma escalada de opressão que se acentuou durante a vigência do regime comunista, a partir de 1945. Apenas em 1990 os húngaros recuperariam sua liberdade com a eleição dos primeiros representantes do Parlamento após o fim do socialismo no país. Essa interpretação do passado se tornou oficial, estando inscrita em um preâmbulo da Constituição ultraconservadora de 2011.
Reabilitação do Almirante Miklós Horthy
Uma outra faceta do revisionismo histórico na Hungria contemporânea é a reabilitação do regime do Almirante Miklós Horthy. Militar de carreira, Horthy assumiu o poder na Hungria em 1920, após um golpe contra o breve governo socialista de Béla Kun, e logo assumiu posturas cada vez mais autoritárias, com perseguições a socialistas, liberais e judeus, no que ficou conhecido como “Terror Branco”.
Sob a liderança de Horthy, a Hungria assinou alianças com a Itália fascista e a Alemanha nazista em 1927 e 1939, respectivamente. Partes perdidas do território húngaro foram recuperadas, e o regime e o seu regente passaram a ser exaltados nos círculos mais autoritários e nacionalistas.
Durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo aliado ao Eixo, tentou negociar um acordo de paz com os Aliados, o que provocou a invasão das tropas alemãs em 1944 e a ocupação do território húngaro, acelerando o processo de deportação de judeus.
No mesmo ano de 1944, Horthy é derrubado pelos nazistas e, com a derrota de Hitler e o fim da guerra, a Hungria entrou definitivamente na órbita soviética dentro da geopolítica da Guerra Fria. Interrompia-se, na ótica revisionista, o breve período em que a soberania húngara havia sido reconquistada e iniciava-se mais um longo período de opressão externa.
Orbán tem tentado nos últimos anos reabilitar o Almirante Horthy, transformando o seu governo em um dos marcos da luta dos húngaros pela soberania, após a queda do Império Otomano e as perdas territoriais resultantes do Tratado de Trianon.1
Nessa releitura do passado, Orbán pode se posicionar como o continuador da eterna batalha pela total independência da Hungria, sempre em risco em função dos inimigos externos. Nessa reconexão entre passado e presente, Horthy é designado pelo regime de Orbán como o governante que restabeleceu a unidade nacional no período pós-Primeira Guerra em meio à desintegração territorial e à cobiça internacional.
O revisionismo histórico desloca o governo de Horthy do contexto da Segunda Guerra e o insere em uma sequência de acontecimentos que formam o sentido mais profundo da nação húngara. Em um discurso de 2017, após apresentar as décadas de 20 e 30 como uma “pedra fundamental” da história húngara e Horthy como um “excepcional estadista”, Orbán minimizou a política do Estado húngaro durante a Segunda Guerra, pois a “história não nos enterrou sob o peso da guerra perdida” – declaração que implica a desconsideração de sua aliança com o Eixo antes da ocupação alemã e, sobretudo, da sua eventual responsabilidade pela deportação dos judeus (a Hungria possuía leis antissemitas desde 1938).
O monumento instalado em 2014 é, deste modo, uma parte integrante e fundamental desse processo revisionista de reabilitação do governo de Horthy. A construção mostra uma gigantesca águia se lançando contra o indefeso anjo Gabriel. Não é difícil perceber que essa imagem simboliza o ataque alemão sobre a Hungria, vítima de uma nação militarmente mais forte. A narrativa aí exposta se conecta plenamente com a interpretação do passado húngaro como um acervo de derrotas e espoliações.
Ao homenagear “todas as vítimas” da ocupação pelas tropas nazistas, Orbán promove dois potentes movimentos revisionistas: de um lado, assinala que a invasão alemã marca o fim trágico do bravo governo nacionalista de Horthy que, por mais de duas décadas, esforçou-se em restaurar as fronteiras húngaras dilaceradas pelo Tratado de Trianon; por outro, iguala nazismo e comunismo como duas ideologias estrangeiras opressoras que foram as responsáveis, no século XX, pela perda da soberania húngara.
O contramonumento
O monumento provocou reações bastante ásperas contra o governo de Orbán. Do ponto de vista dos historiadores, a construção é vista como uma grosseira tentativa de transformar todos os habitantes da Hungria em vítimas da opressão nazista, ignorando a parte da população que colaborou com os alemães ou que se beneficiou desta ocupação.
De modo enfático, Krisztián Ungváry, afirma, em uma entrevista ao jornal francês Libération, que “99% das vítimas eram judeus deportados por autoridades húngaras entusiastas que procuravam, antes de embarcá-los, se assegurarem de que as contas de eletricidade e de luz estavam quitadas”. E sobre a população que se apropriou dos bens dos judeus deportados, diz Ungváry, “é pouco razoável que ela tenha se sentido oprimida”.
O ponto central das críticas ao monumento reside, portanto, na relativização ou mesmo negação da responsabilidade do Estado e da sociedade civil húngara na deportação dos judeus – mais de 500 mil judeus húngaros foram mortos durante a guerra nas mãos de nazistas e húngaros, o que faz com que a homenagem de Orbán a “todas as vítimas da ocupação” seja vista como uma manobra política a fim de diluir ou minimizar o papel da Hungria e dos húngaros no Holocausto.
Uma carta aberta assinada por diversos intelectuais, situados dentro e fora da Hungria, apresenta o monumento como portador de uma visão falsificada da história, pois anula a diferença, na figura do anjo Gabriel, entre as vítimas e seus algozes internos. Os seus signatários ainda afirmam que os usos do passado pelo governo de Orbán poderão não deixar espaço para pesquisas independentes e “sem entraves” sobre o Holocausto.
A Federação das Comunidades Judaicas da Hungria emitiu declarações na mesma direção e, mais, recusou-se a participar de qualquer solenidade pública promovida pelo governo sobre os 70 anos da ocupação da Hungria pelas tropas alemãs.
A resposta de Orbán foi, como era de se esperar, evasiva. O monumento, segundo o primeiro-ministro, não era dedicado ao Holocausto, mas tão somente à lembrança do sofrimento causado a todos os húngaros, judeus ou não, e à perda da soberania do país. Orbán nunca afirmou que não houve colaboração das elites húngaras com a deportação dos judeus, mas, por outro lado, enfatizou que a perda de tantas vidas não teria ocorrido sem a ocupação alemã.
Monumento e Contramonumento
Essas reações contra o revisionismo contido no monumento foram acompanhadas de uma outra, de maior visibilidade e que persiste até os dias de hoje. Trata-se da edificação de um contramonumento exatamente em frente à construção erguida de modo quase invisível pelo regime de Orbán. Mas o que seria um “contramonumento”?
Um contramonumento é um lugar de memória que confronta a narrativa memorial oficial a partir de formas estéticas distintas dos tradicionais monumentos nacionais, convidando os visitantes a usarem os seus sentidos para descobrirem novos significados e a construir suas próprias interpretações dos eventos e dos sujeitos comemorados. É uma reação que exprime novas representações e expressões acerca do passado.
No caso do contramonumento construído em frente ao monumento de Orbán, sua origem pode ser remontada a um protesto convocado por ativistas, em março de 2014, através das redes sociais, no qual as pessoas eram convidadas a trazer objetos que pudessem se contrapor à narrativa oficial. Centenas de pessoas atenderam à convocação e depositaram pertences variados em frente ao monumento ainda não inaugurado.
A iniciativa ganhou repercussão e cresceu, sobretudo a partir de julho, quando o contramonumento já era denominado de “Monumento Vivo”. Seu acervo é composto por sapatos, fotografias, bolsas, pedras com os nomes de judeus mortos e a data do desaparecimento, e mesmo com recortes com manchetes de jornais húngaros do ano de 1944. Em um deles, pode-se ler: “Os judeus se mudaram. Não precisamos nos lamentar por eles. Centenas de milhares de nossos irmãos húngaros vivem em condições piores”.
Duas cadeiras são dispostas como um convite a todos que desejem conhecer o Monumento Vivo ou debater sobre a história da deportação dos judeus húngaros. Sobreviventes do Holocausto e historiadores palestram no local e oferecem uma versão da ocupação alemã distinta daquela contada pelo monumento oficial. Eis o passado em disputa, em praça pública, envolvendo duas narrativas opostas e situadas a pouquíssimos metros uma da outra.
O monumento alternativo desafia o oficial com suas mensagens, conteúdo e estética. Deslocando o foco para as memórias familiares e individuais do passado, há a produção de uma narrativa viva e movente, na medida em que qualquer cidadão pode acrescentar um objeto novo ao acervo aberto do contramonumento. Em contraste, o monumento oficial permanece congelado, do outro lado, e impossível de ser tocado. O embate sobre o revisionismo está firmemente estabelecido: contra o passado imobilizado numa eterna proeminência da nação como vítima inocente, ergue-se um monumento vivo, intenso e que não esgota a experiência em conceitos rígidos e tradições forjadas.
O revisionismo na Hungria contemporânea é indicativo do peso do passado e da necessidade do governo Orbán de se inserir em uma tradição, ainda que inventada. O monumento em homenagem à ocupação alemã pretendeu unificar todo o país sob uma noção frágil de vítima e as disputas em torno desse passado reatualizam questões delicadas da história húngara do século XX.
Estabelecer uma continuidade entre passado e presente tem sido um constante esforço de legitimação da política nacionalista de Orbán, apresentada, pela direita do Fidesz, como herdeira das lutas soberanistas de outros tempos. Em um contexto de evidente recuo das instituições democrático-liberais da Hungria, as experiências dos homens de outros tempos podem ser vitais para a ascensão do autoritarismo ou para a sobrevivência de formas justas e civilizadas de vida coletiva.
Notas
[1] O Tratado de Trianon foi assinado no ano de 1920 e visava definir a situação territorial da Hungria após a derrota na Primeira Guerra e a dissolução do Império Austro-Húngaro. Três quartos do território e dois terços da população húngara passaram a pertencer aos novos Estados da Tchecoslováquia, Romênia e Iugoslávia. Sucessivas gerações de grupos políticos nacionalistas identificam o Tratado como um dos grandes traumas húngaros, e essa visão é também compartilhada pelo revisionismo histórico de Orbán.
Referências bibliográficas
BALOGH, Eva. Viktor Orbán pontificates on 1944. Hungariam Spectrum. Disponível em https://hungarianspectrum.org/tag/german-occupation-memorial/. Acesso em 10 de agosto de 2019.
EROSS, Ágnes. “In memory of victims”: Monument and conter-monument in Liberty Square, Budapest. Hungarian Geographical Bulletin, v.65, n.3, pp. 237-254, 2016.
TOOMEY, Michael. History, nationalism and democracy: myth and narrative in Viktor Orbán´s iliberal Hungary. New Perspectives, v.26, n.1, pp.87-108, 2018.
Como citar este artigo
AVELAR, Alexandre de Sá. O revisionismo histórico húngaro e o fantasma do Holo-causto (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/revisionismo-hungria-monumento. Publicado em: 19 ago. 2019.
As teorias revisionistas aumentam em razão proporcional à eclosão de movimentos nacionalistas. O monumento da primeira foto foi contestado por muitos historiadores, pois “A német megszállas emlekmuve”, monumento em memória à ocupação, não menciona que vários setores da sociedade húngara, como da austríaca (que votou com esmagadora maioria de votos a favor da Anschluss, união com a Alemanha), não apenas foram favoráveis à ocupação, como colaboraram ativamente com a perseguição aos judeus, ciganos e homossexuais. Aliás, a Hungria foi o único país que teve VLKW (“Vernichtung LKW” = caminhões de extermínio. Os judeus, socialistas, ciganos e homossexuais eram colocados dentro de Vans que saíam andando, O escapamento do motor era conectado com o interior hermeticamente fechado, e o combustível tinha uma proporção de gás Zyklon, o mesmo usado nas câmaras de gás dos campos de concentração. Quando o veículo parava poucas centenas de metros depois, todos já estavam mortos. Economizava-se o transporte até os campos, como Mauthausen. O revisionismo é perigoso pois um fato triste da história do país é minimizado, dando ensejo para que fatos similaresd voltem a ocorrer. Quem serão os alvos? Os refugiados?