A cada ciclo eleitoral nos Estados Unidos, uma pergunta acaba sempre reaparecendo: por que, numa nação de proporções continentais, existe tamanha polarização entre dois partidos políticos? Melhor dizendo: por que republicanos e democratas são as únicas organizações com chances reais de ganharem eleições executivas e legislativas há mais de um século? Afinal de contas, outras agremiações partidárias existiram (e existem!) e, alguns momentos, chegaram a deter relativo poder local em alguns estados. Ainda assim, a despeito dessa força, não conseguiram quebrar o duopólio republicano e democrata na política estadunidense e que, apesar da crescente crise no sistema político do país, não parece dar sinais de exaustão. Com mais de um século de duração, essa divisão, em suas diferentes formas, continua sustentando o funcionamento da estrutura política nos Estados Unidos sem que se veja um fim para ela.
O sistema eleitoral norte-americano
Uma das respostas para a longa duração do bipartidarismo está no sistema eleitoral norte-americano, em que predomina, desde as reformas eleitorais da década de 1840, o voto distrital por maioria simples, sacramentado pela lei federal de 1967, que proíbe qualquer outro tipo de representação. Na prática, isso transforma os pleitos para os legislativos estaduais e o federal em eleições majoritárias, pois somente um único candidato pode ser escolhido por distrito, sempre definido geograficamente e sem segundo turno – o que enfraquece substancialmente a possibilidade de terceiras forças surgirem em estados controlados por um ou outro partido.[1]
Quando aliado ao chamado “gerrymandering”, isto é, a manipulação dos limites distritais para garantir a continuidade do domínio republicano ou democrata, esse mecanismo reforça a reprodução da polarização, ao mesmo tempo em que é estruturado por ela. Na percepção do pesquisador Sandy Maisel, isso gera, principalmente em cidades maiores e/ou distritos mais populosos, uma restrição da competição eleitoral aos principais partidos e, consequentemente, um empobrecimento das possibilidades de representação, sobretudo dos eleitores e eleitoras independentes.
Finalmente, temos outra peculiaridade, tão americana quanto a torta de maçã e obsessão por armas de fogo: a existência de um Colégio Eleitoral, que decide as eleições para a Presidência, amparado pelo chamado princípio do “winner-takes-it-all”, ou seja, o partido eleito pela maioria simples dos habitantes de um determinado estado leva todos os seus votos na escolha para o Executivo federal, não importa quão tênue tenha sido a diferença entre o vencedor e o perdedor. Esse sistema, cujas raízes elitistas e antidemocráticas são manifestas, desestimula a pluralidade partidária efetiva, pois concentra poder nas mãos dos partidos dominantes, além de criar distorções, como, por exemplo, a sobre-representação da América rural em relação à urbana e a escolha de Presidentes derrotados no voto popular (ocorrida em 1824, 1876, 1888, 2000 e 2016), que são corrosivas à própria democracia no longo prazo. A crescente insatisfação dos norte-americanos com essa estrutura é um indício de suas limitações para o século XXI.
Uma antiga característica política
Por outro lado, a polarização política tem sido uma característica norte-americana desde a crise que levou à Guerra de Independência e seus desdobramentos posteriores, sendo o mais importante deles o conflito entre “patriotas” e “lealistas” cedendo, após 1783, à luta entre federalistas e jeffersonianos e, mais tarde, democratas e whigs.
O mote desses confrontos era, primeiramente, a questão da organização nacional (a extensão do poder federal, em particular); a predominância de um dos setores econômicos, agricultura e indústria, sobre o outro; a extensão do sufrágio e dos direitos eleitorais; a expansão continental; e, por fim, a escravização de seres humanos. Em linhas gerais, os federalistas, e os whigs posteriores, defendiam um Executivo federal com um papel crucial no fomento ao crescimento econômico e o favorecimento da indústria local contra a britânica. Eles também viam com maus olhos a dilatação do território nacional, eram ambíguos quanto à escravidão e suspeitavam da “tirania da maioria” simbolizada, aos seus olhos, pelas administrações de Thomas Jefferson, presidente entre 1801 e 1809, e Andrew Jackson, que governou de 1829 a 1837.
Já os seus opositores, os jeffersonianos, chamados de “democratas” depois de Jackson, depositavam sua fé no “homem comum” contra o governo, suspeitando do alargamento de suas funções e instituições[2]; desejavam a marcha a Oeste e a extensão das fronteiras dos Estados Unidos, incluindo a remoção das populações nativas e o embate com adversários estrangeiros – como visto na Compra da Louisiana (1803), nas guerras indígenas empreendidas por Jackson e na Guerra Mexicano-Americana (1846-1848). Os jeffersonianos eram agrarianistas contrários a qualquer benefício à indústria em detrimento da agricultura; e, no Sul, eram ardorosos defensores da escravidão. Essas divergências, que podiam ter variações locais, foram recorrentes a toda primeira metade do século XIX. A crise da década de 1850, contudo, reorganizaria o sistema partidário e daria fôlego renovado à polarização, agora sob outra forma.
Com o agravamento das tensões entre Sul e Norte a respeito da expansão da escravidão, e entre os próprios abolicionistas sobre as melhores maneiras de se acabar com o império do Rei Algodão, o partido Whig, sempre recalcitrante sobre o tema, colapsou internamente, e surgiu o Partido Democrata, dividido em duas alas, uma moderada, dedicada a preservar os compromissos que davam base à União e com força em cidades como Nova York e Philadelphia, e outra, centrada nos estados sulistas, radicalmente pró-escravidão. Do realinhamento político ocorrido nesse período, surgiu também o Partido Republicano. Fundado em 1854 ele foi resultado da aliança entre whigs e democratas anti-escravocratas, nativistas do velho Know Nothing Party, protecionistas e fazendeiros livres do Oeste. O que lhes dava um ímpeto comum era tanto o temor de uma extensão incontrolada da escravidão para além dos limites do Sul quanto a necessidade, no seu entendimento, de uma modernização econômica dos Estados Unidos, sintetizada na famosa afirmação de Abraham Lincoln de que uma casa não podia ser meio-livre, meio-escrava ao mesmo tempo. “Tornar os homens livres”, lembra Heather Cox Richardson, era o resumo ideológico do novo partido, eleito à Presidência, com Lincoln, em 1860.
Esse triunfo marcaria o início da Guerra Civil e, após seu encerramento, do longo controle republicano no Executivo federal que duraria até 1933 e que seria concomitante à consolidação, depois do fim da Reconstrução, do domínio democrata no Sul segregacionista e supremacista branco – um virtual regime de partido único, graças à supressão de votos, perseguição de opositores, corrupção e violência política generalizada comum à região naqueles dias.
As linhas de divisão, nesse contexto, se alteraram: de um lado, os republicanos, encorajados pela vitória da União contra os estados sediciosos, radicalizaram sua plataforma de modernização econômica, promovendo uma política de protecionismo econômico, investimento em infraestrutura de transportes e comunicação, expansionismo imperial e defesa do big business; de outro, os democratas apresentavam uma improvável coalizão entre a classe operária urbana, homens de negócios (os Bourbon Democrats) e os sulistas, muito embora suas divisões internas fossem pronunciadas: em alguns estados, os conflitos intrapartidários dos democratas eram mais acerbos do que aqueles entre eles e seus tradicionais adversários republicanos. Essa era, na verdade, uma condição de ambas as agremiações: como eram agremiações de massa, sem fundamentos ideológicos específicos (ao contrário, por exemplo, do Partido Socialista), suas disputas interiores eram bastante aguerridas, pois os dois possuam alas conservadoras que antagonizam, a seu modo, com elementos mais reformistas/progressistas.
Desta forma, embora republicanos e democratas estivessem à direita do espectro político, podiam, em alguns momentos (como no movimento antitruste da década de 1880 ou no apoio a certas exigências dos trabalhadores urbanos) terem setores mais à esquerda, até como forma de contenção de desafios à ordem estabelecida – um “reformismo conservador” que acomodava avanços sem, contudo, questionar a estrutura socioeconômica maior. E ambos também não hesitavam em reprimir, ou dar seu apoio à repressão, duramente o movimento operário quando necessário, como visto durante as grandes greves de 1886 e 1894. Até os anos 1930, quando o Partido Democrata migra, em política interna, para o centro, com algumas alas de centro-esquerda, nenhuma das duas agremiações podia ser considerada genuinamente de esquerda.
Uma terceira força questiona o duopólio
Nem sempre o duopólio ficou inquestionado. Durante a década de 1890, uma terceira e importante força emergiu para confrontar republicanos e democratas: o Partido do Povo (People’s Party), centrado nas demandas de pequenos fazendeiros do Oeste e do Sul e dos operários das cidades do Norte e Leste e contraposto ao conservadorismo dos partidos dominantes. Na sua famosa Plataforma de Omaha (1892), que sumarizava a “insurgência” política populista, como a chamou Lawrence Goodwyn, o Partido do Povo acusava o governo de ser um instrumento dos ricos, denunciava a repressão contra o proletariado e exigia, dentre outras coisas, a nacionalização das ferrovias, uma reforma agrária e um imposto de renda para financiar essas reformas.
Nas eleições daquele mesmo ano, Benjamin Weaver, seu candidato, recebeu mais de um milhão de votos, mas, dadas as já mencionadas particularidades do sistema eleitoral norte-americano, os populistas elegeram somente onze deputados federais (e nenhum senador) – demonstrando, assim, a impossibilidade real de uma terceira força em quebrar a hegemonia democrata-republicana. Apesar disso, nos anos seguintes, tiveram êxitos circunstanciais, como no Alabama e na Carolina do Norte, onde brancos pobres e negros se uniram em aliança contra as oligarquias estaduais. Ainda assim, e sobretudo após a derrota nas eleições de 1896[3] e o massacre de Wilmington, em 1898, quando os democratas depuseram o governo populista eleito para o governo daquela cidade e assassinaram, em represália, vários de seus moradores afro-americanos, o Partido do Povo colapsou e desapareceu da cena política estadunidense. Somente em 1912, com a candidatura do socialista Eugene Debs, um terceiro partido à esquerda voltaria a ter uma votação expressiva à Presidência.
De Realinhamento em Realinhamento, tudo volta para o lugar
A partir da década de 1930, ocorreria um novo realinhamento: com o New Deal de Franklin Delano Roosevelt, os democratas finalmente consolidariam seu poder entre a classe operária, com os sindicatos tornando-se um dos pilares da nova coalizão, e aumentariam progressivamente sua presença entre afro-americanos e a classe média intelectualizada; enquanto isso, os republicanos organizaram uma duradoura aliança anti-New Deal composta pelo big business, fazendeiros do Oeste, setores médios, protestantes e conservadores mais extremados que duraria por trinta anos, mais ou menos. A partir dos anos 1960, apesar de algumas mudanças importantes desde então, a situação partidária se estabiliza em mais um reordenamento, com o Partido Republicano assumindo-se como a força de direita hegemônica, inclusive atraindo antigos democratas segregacionistas para seus quadros e eleitores sulistas insatisfeitos com a Lei de Direitos Civis de 1964, e o Partido Democrata adquirindo uma identidade de centro-esquerda que dura até os dias de hoje, em que se pese o enfraquecimento de sua ala operária e a adoção de princípios neoliberais nos anos do governo Bill Clinton (1992-2000). Sob essa ótica, a polarização se reinventa a cada novo realinhamento e acaba por manter-se viva.
Nessa conjuntura, mesmo que existam terceiros partidos com relativa força eleitoral (os Dixiecrats em 1948, a candidatura independente de Ross Perot em 1992 e os partidos Libertário e Verde mais recentemente), pouca chance tem de conseguir destronar o duopólio, porque o sistema funciona exatamente para sua autopreservação. Nesse sentido, é interessante perceber que, nos momentos de crise, há realinhamentos e não rupturas partidárias significativas: dadas as características do sistema eleitoral do país, é praticamente impossível que uma nova agremiação possa, de baixo, ameaçar o duopólio. Para que isso ocorra, é necessário que um dos partidos esteja à beira do colapso, como os whigs antes da Guerra Civil, ou que exista um improvável abandono generalizado de um deles pelos eleitores a ponto de causar, por cima, o surgimento de uma nova organização. É muito significativo que, no contexto atual, insurgências à direita, como a do Tea Party em 2008-2009, ou à esquerda, representada pela figura de Bernie Sanders e seu movimento de apoio, acabem sendo incorporadas aos partidos dominantes para que tenham mínima chance de sucesso ou visibilidade nacional – aliás, a colonização do Partido Republicano realizada por Donald Trump e pelo “trumpismo”, dando vestes cada vez mais extremistas ao Grand Old Party, é paradigmática a esse respeito.
Ademais, a história dos realinhamentos também serve para dirimir um nominalismo simplório que, fazendo tábula rasa de circunstâncias históricas específicas, acredita ver no Partido Democrata atual o “partido da escravidão” ou nos republicanos contemporâneos os “sucessores de Lincoln”. É importante, portanto, contextualizar seus câmbios ideológicos, sociais e eleitorais sem essencializar suas identidades, para podermos ver as multifacetadas e complexas formas de manutenção da polarização, o duopólio em questão, em terras norte-americanas e o papel do sistema eleitoral em sua reprodução (quase) perene.
Notas
[1] O caso exemplar aqui é o do Partido do Povo que, durante as eleições nacionais de 1896, precisou fundir-se ao Partido Democrata em diversas localidades para poder eleger seus candidatos, o que desagradou algumas de suas lideranças e eventualmente levou à sua dissolução.
[2] Na administração de Jackson, por exemplo, o Segundo Banco dos Estados Unidos, única instituição até então autorizada a emitir papel-moeda e conduzir as transações fiscais do governo, teve sua concessão cassada pelo Executivo, que o acusava de obedecer aos interesses dos grandes comerciantes e especuladores em detrimento do “homem comum”. Igualmente, foi durante os anos da “democracia jacksoniana” que o sufrágio foi estendido a todos os homens brancos cidadãos do país – ao mesmo tempo em que, por outro lado, se expandia o território da escravidão e se removia grupos ameríndios à força de seus lugares de origem (LYNN, 2019).
[3] Em 1896, os populistas apoiaram o derrotado William Jennings Bryan, candidato democrata identificado com os pequenos e médios fazendeiros do Sul e do Oeste e com algum apoio do movimento operário, contra o republicam William McKinley, explicitamente vinculado ao big business. Embora a diferença entre a votação de ambos tenha sido menos de 4% no voto popular, ela foi de 95 votos no Colégio Eleitoral. Com o revés e sua vinculação com o Partido Democrata, os populistas praticamente sumiram do mapa político dos Estados Unidos como terceira força.
Referências
BREWER, Mark D. & STONECASH, Jeffrey. Dynamics of American Political Parties. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
GOODWYN, Lawrence. The Democratic Promise: the Populist movement in America. New York: Oxford University Press, 1976.
MAISEL, L. Sandy. American Political Parties: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2007.
RICHARDSON, Heather Cox. To Make Men Free: a history of the Republican Party. New York: Basic Books, 2014.
SCHICKLER, Eric. Racial Realignment: The Transformation of American Liberalism, 1932–1965. Princeton: Princeton University Press.
ZUCCHINO, David. Wilmington’s Lie: the murderous coup of 1898 and the rise of white supremacy. New York: Atlantic Monthly Press, 2020.
Como citar este artigo
AVILA, Arthur Lima de. Republicanos e democratas: uma breve história da polarização política nos EUA (Artigo). In: Café História. Publicado em 26 abr de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/republicanos-e-democratas-a-polarizacao-politica-nos-eua/. ISSN: 2674-59.