Regime Militar Brasileiro: uma História de muitas batalhas

10 de setembro de 2014
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Entrevista com Marcos Napolitano (USP)

De acordo com Marcos Napolitano, “o golpe militar de 1964 foi uma das batalhas da Guerra Fria na América Latina”. Mas o evento não se resume a isso, alerta o historiador: “o golpe e o regime também geraram um modelo de ação política contra governos reformistas e de um regime que iam além das clássicas ditaduras latino-americanas.” Em entrevista ao Café Historia, o professor da Universidade de São Paulo discute essa e várias outras batalhas que fizeram parte da História do regime militar brasileiro, como as batalhas contra os movimentos artísticos e culturais, e contra o reformismo de Jango. No ano em que o golpe civil-militar de 1964 completa cinquenta anos, tivemos o prazer de conversar sobre o assunto com mais um importante pesquisador da área.

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Marcos Napolitano é professor da USP. Foto: Site História da Ditadura (Palo César Gomes e Pedro Teixeirense)

Bruno Leal: Professor, o senhor lançou bem recentemente o livro 1964 – História do Regime Militar Brasileiro, publicado pela Editora Contexto. Fale um pouquinho mais deste projeto, por favor. Qual a proposta do livro? Como ele é estruturado? Qual o público-leitor do livro?

Marcos Napolitano: Este livro tentou sintetizar a trajetória do regime militar brasileiro e as principais polêmicas historiográficas em torno do período. Em uma linguagem fluida, narrativa e acessível a leitores não-acadêmicos, tento discutir temas polêmicos, tais como o “mito da ditabranda”, as relações entre cultura engajada e mercado, o aparato repressivo, os anos Geisel e a natureza da “abertura”, as batalhas de memória. O livro é estruturado em capítulos que mesclam momentos específicos do regime com recortes temáticos, como as artes, a economia e a repressão. Enfim, é uma tentativa de fazer um livro que possa ser lido por um público relativamente amplo, para além dos estudantes e pesquisadores de história, mas que não deixe de ser um produto de pesquisa. Por exemplo, não há notas de rodapé, nem citações autorais no corpo do texto, mas em compensação, há mais de 500 notas no fim de texto, de caráter historiográfico e teórico. O leitor não acadêmico pode ler apenas o texto principal, sem prejuízo do conteúdo. O leitor acadêmico, por outro lado, tem nas notas um guia dos debates bibliográficos e das últimas pesquisas sobre o tema.

Bruno Leal: Na apresentação do livro, o senhor diz: “a subida dos militares ao poder mudaria para sempre a história brasileira, além de ter fornecido um novo modelo de golpe e de regime político para vários países latino-americanos”. O senhor poderia falar sobre esse modelo? Em quais preceitos políticos e ideológicos ele se estruturava?

Marcos Napolitano: O golpe militar de 1964 foi uma das batalhas da Guerra Fria na América Latina. Como tal, ele foi informado pelo anticomunismo e pela Doutrina de Segurança Nacional que pautou o regime que se seguiu. Mas, por outro lado, o golpe e o regime também geraram um modelo de ação política contra governos reformistas e de um regime que iam além das clássicas ditaduras latino-americanas. No primeiro ponto, a desestabilização do governo João Goulart, envolvendo empresários, governo norte-americano, militares e classe média foi utilizada em outro golpes, como no Chile em 1973. O modelo de ditadura brasileira, impessoal e altamente institucionalizada, também serviu de inspiração, com adaptações locais, para Uruguai e Chile. A repressão também foi outra “tecnologia” exportada.

Bruno Leal: O senhor defende que o Golpe Civil-Militar de 1964 foi resultado de uma série de fatores e eventos para além dos erros e acertos de Jango. Que outros fatores seriam fundamentais para se compreender esse golpe?

Marcos Napolitano: Nos últimos vinte anos tornou-se comum responsabilizar a esquerda pelo golpe, sobretudo o próprio presidente João Goulart, cuja mistura de promessas reformistas e falta de tino político teriam sido fatais para a frágil democracia de 1946. O radicalismo das esquerdas que estavam em torno do governo, de maneira mais ou menos crítica, também tem sido apontado como fator corrosivo da política institucional. Acho que estes fatores são importantes para explicar a crise política do governo Jango, mas não são suficientes para explicar o golpe em si. Este foi produto de uma linhagem conspirativa, interna e externa, que aproximou a direita civil e militar e os liberais conservadores com medo dos avanços sociais e do comunismo.

Bruno Leal: No livro, o senhor identifica vários momentos repressivos durante o regime militar. Um deles, que vai de 1969 a 1978, ficou marcado pela tentativa deste regime em repreender o movimento da cultura como mobilizadora do radicalismo da classe média, principalmente dos estudantes. Nesta época, a cultura e as artes tinham mesmo força para sensibilizar e mobilizar as classes médias contra o autoritarismo do governo? Que artistas e eventos artísticos/culturais mais incomodavam os militares?

Marcos Napolitano: A primeira medida do regime na área cultural foi romper os frágeis laços orgânicos que os artistas engajados de esquerda tentavam estabelecer com as classes populares. Em grande parte, este é o sentido das ações do CPC da UNE e do MCP do Recife. Feito isso, os militares até permitiram certa liberdade de expressão até 1968, até porque essas manifestações estavam restritas a setores intelectualizados da classe média que consumia cultura em circuitos mercantilizados. Com a guerrilha, alimentada sobretudo por jovens radicalizados da classe média, a cultura engajada deixou de ser vista como inócua, ainda que restrita a estes segmentos sociais. Na crise de 1968, o governo fez uma leitura conjuntural que unia a mobilização cultural ao desgaste político crescente do regime. A partir daí, os artistas de esquerda também foram vigiados, cerceados e, em alguns casos, reprimidos diretamente, como indivíduos. As áreas que mais assustavam o regime, obviamente, eram aquelas ligadas às artes de espetáculo – cinema, teatro e música popular. Mas outras áreas, como a literatura, também foram vigiadas e censuradas. Entretanto, o regime evitou uma guerra aberta contra a área cultural, tentando manter uma censura seletiva, aliada a políticas culturais diversas.

Bruno Leal: E qual foi a efetividade das leis e decretos que o governo criou com o fim de censurar e intimidar esses movimentos artísticos e culturais no Brasil?

Marcos Napolitano: A censura foi muito efetiva ao sinalizar o produtor e o criador cultural que sua atividade era vigiada e cerceada “24 horas por dia” pelo regime. O regime conseguiu, através da censura, estabelecer restrições à circulação de imagens que falavam diretamente contra o regime e poderiam ser apropriadas por públicos mais amplos. Por outro lado, a luta contra a censura acabou por construir uma espécie de “educação sentimental e cívica” de amplos setores da classe média, diluindo o tradicional conservadorismo e elitismo deste grupo em percepções de mundo mais progressistas e democráticas. Temo que essa educação não tenha deitado raízes efetivas na classe média, mas foi importante nas lutas por democracia até meados dos anos 1990.

Bruno Leal: Professor, é bastante comum em uma certa literatura a visão de que o suicídio de Vargas adiou por dez anos o golpe de 1964. Ou ainda, que o golpe de 1964 teve como episódios percussores “Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Alguns historiadores, no entanto, não “compram” essa ideia. Recentemente, o professor Jorge Ferreira (UFF) refutou completamente essa ideia. Para ele, 1954 e 1964 são duas coisas distintas. E o professor Carlos Fico (UFRJ), também recentemente, disse que essa ideia de continuidade deve ser analisada com muito cuidado. “Prefiro ser cauteloso”, ele disse. Como o senhor vê essa forma de interpretar o golpe?

Marcos Napolitano: Concordo que não se pode tecer uma linha contínua entre 1954 e 1964. Mas acho que o golpe também não pode ser explicado pela conjuntura pontual da crise política do final do governo Jango. Há temporalidades diversas na crise de 1964, que envolvem, inclusive, o golpismo da direita udenista presente desde 1950, bem como a desconfiança dos militares da capacidade de mobilização popular de tradição getulista e trabalhista. Acho que 1964, entretanto, traz uma novidade: no bojo do velho golpismo, um grupo civil-militar produziu um novo projeto para o Brasil, calcado numa nova leitura do que deveria ser o Estado diante das pressões sociais por democracia e direitos sociais.

Bruno Leal: Em palestra proferida recentemente no Rio de Janeiro, o historiador James Green comentou sobre uma pesquisa que ele vem desenvolvendo sobre a questão homossexual dentro das esquerdas brasileiras. Embora o tem ainda seja uma espécie de tabu, sabemos que diferentes quadros da esquerda eram bem, digamos, conservadores quanto aos militantes homossexuais. O senhor concorda?

Marcos Napolitano: A agenda da esquerda à época, entre os anos 1960 e 1970, passava pouco pela questão das identidades sexuais e dos direitos de minorias. Havia, em grande parte, uma leitura de que esta agenda era mera importação dos movimentos sociais típicos dos Estados Unidos e sua sociedade guetificada. Em outras palavras, esta e outras questões eram submetidas pela esquerda dita ortodoxa, de tradição pecebista, ao problema nacional e às demandas da luta de classes. Mas não se pode esquecer que as lutas das chamadas “minorias” foi muito importante no Brasil já no começo dos anos 1970, e não desconsiderou a luta por democracia, em termos mais amplos. A esquerda dos anos 1970, pós-guerrilha, logo se abriu para estes novos temas.

Bruno Leal: No Brasil, os militares estiveram sempre muito próximos da politica. Desde a redemocratização, no entanto, as forças armadas parecem ter perdido força nesse âmbito. Não que ela tenha se despolitizado, mas que a sua presença nos rumos políticos do país deixou de ser decisiva. Essa avaliação seria correta? Se sim, como essa “desemponderamento” aconteceu? Isso teria ligação com a forma como as lideranças políticas da redemocratização conduziram o processo?

Marcos Napolitano: Acho que as Forças Armadas, em grande parte, saíram desgastadas, interna e externamente falando, do regime militar. A politização da oficialidade durante o regime foi traumática e em muitos momentos ameaçou a hierarquia e a unidade, tão prezadas pelos militares. Por outro lado, a experiência do regime desgastou o caráter messiânico das intervenções militares no Brasil, tão marcante desde o Tenentismo dos anos 1920. E por fim, como a transição brasileira foi negociada e controlada pelos setores moderados, as Forças Armadas como instituição não se incomodaram muito com o encaminhamento das eventuais demandas por investigações e punições aos agentes da repressão, tema até hoje sensível. Acredito que, ainda na atualidade, as Forças Armadas tem dificuldade em lidar com a sua própria experiência política do regime. Parecem oscilar entre o autoelogio por ter salvado o Brasil do “comunismo”, e a sensação de que alguma coisa não saiu como planejado pelo “movimento de 64”. Além disso, há muito ressentimento dos militares mais antigos pelo não reconhecimento da sua “obra salvadora” pela parte da sociedade mais influente no debate público. A relação dos militares com a política no pós-ditadura é marcada por esta ambiguidade.

Bruno Leal: Como o senhor tem avaliado as efemérides sobre os cinquenta anos do golpe? A natureza e a intensidade do que vimos em 2014 – de seminários a reportagens, de livros a pesquisas – foi muito diferente daquilo que vimos, por exemplo, em 2004?

Marcos Napolitano: Acho que 2014 amadureceu questões para o debate historiográfico que já tinham sido esboçadas em 2004. Alguns exemplos: o protagonismo das esquerdas na crise e no golpe, para além de vítimas passivas da “grande conspiração”; o papel da sociedade civil no apoio ao regime; o caráter da luta armada no campo maior da “resistência”; as relações complexas e ambíguas da arte engajada com o mercado. Acho que a grande novidade em torno dos 50 anos foi uma maior amplitude dos estudos sobre as direitas no contexto do golpe e do regime, além de um exame mais profundo sobre os processos sociais de construção da memória sobre a ditadura.

Bruno Leal: Professor, muto obrigado pela conversa. Para encerrar, queremos falar um pouco sobre as novidades historiográficas sobre o tema. Como pesquisador e, principalmente, como orientador, que dissertações ou teses sobre o tema o senhor que o senhor viu e gostou bastante nos últimos anos?

Marcos Napolitano: Bem, são muitas, e qualquer lista seria injusta e incompleta, mas vamos lá. Algumas delas estão citadas no excelente dossiê da Revista Pesquisa FAPESP sobre os 50 anos do golpe (Edição 218, http://revistapesquisa.fapesp.br/revista/ver-edicao-editorias/?e=218 ). No campo da cultura, destaco as teses de Miliandre Garcia (sobre a censura ao teatro), Artur Freitas (sobre a arte conceitual no contexto da ditadura), Rodrigo Czajka (sobre os intelectuais, o mercado e os IPMs), Miriam Hermeto (sobre a peça “Gota D’Água). A dissertação de Fernando Seliprandy sobre as disputas de memória no cinema sobre a ditadura também é inovadora. Na história política mais clássica, destaco o mestrado que orientei de David Ribeiro, sobre o papel do Congresso Nacional na crise e no golpe de Estado. São trabalhos inovadores e alentados, ancorados em pesquisas de arquivo de muito fôlego. Outras teses e dissertações inovadoras devem aparecer no futuro próximo, algumas orientadas por mim no programa de História Social/USP. Enfim, são muitos jovens historiadores que, faço votos, darão o tom dos debates em torno dos 60 anos do golpe…Entre os pesquisadores já estabelecidos e reconhecidos, acho que o trabalho de Rodrigo Motta (UFMG) sobre as Universidades e o regime militar abriu uma nova perspectiva e um novo objeto de estudo, explorando os jogos de acomodações entre regime e sociedade acadêmica e intelectual, para além da dicotomia “cooptação – resistência”.


Marcos Napolitano é Doutor (1999) e mestre (1994) em História Social pela Universidade de São Paulo, onde também graduou-se em História (1985). Foi professor no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (Curitiba), entre 1994 e 2004 e, desde então, é professor de História do Brasil Independente na USP. Atualmente é docente-orientador no Programa de História Social da USP e professor visitante do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade de Paris III. É assessor ad-hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e do CNPq. Especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar e na área de história da cultura, com ênfase nas relações entre música popular e política. Também possui experiência na área de história e cinema e no uso do audiovisual no ensino.

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

3 Comments Deixe um comentário

  1. Passados mais de dois anos, li a entrevista, pois estava pesquisando sobre o tema. Só para confirmar: o nome do Prof da UFF não seria Jorge Ferreira, citado na sexta pergunta? Em uma entrevista esse prof da UFF afirma o mesmo.

    • Oi, João! Obrigado pelo comentário. E sim, com certeza! É o professor Jorge Ferreira. Erro nosso. Já corrigimos. Obrigado e até mais!

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