“Reflexão”: um dilema moral

Sergiy Melnyk, um cirurgião ucraniano, cai nas mãos de soldados russos e passa por prisão e tortura durante o conflito na Crimeia em 2014.
2 de outubro de 2023
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Filme chega ao Brasil pela Imovision. Foto: reprodução.

O filme se passa durante a guerra entre Rússia e Ucrânia sobre a tomada de controle da Crimeia pelos russos em 2014. Após questionamento da filha do porquê dele não se alistar o pai e médico ucraniano divorciado, Sergiy (Roman Lutskyi), é ferido a caminho do front ucraniano ao se perder e adentrar ilegalmente a República de Donetsk. Ferido, Sergiy e é aprisionado e torturado pelos soldados russos.

Obrigado a servir os torturadores por ser médico, Sergiy também é encarregado de levar os cadáveres de seus companheiros ucranianos para o forno de cremação móvel russo, que, tetricamente, se encontra em um caminhão identificado como “Ajuda Humanitária Russa”. Ali ele começa a conversar com o operador do forno em seus encontros constantes. É nessa mesma época que Andriy (Andrii Rymaruk), o soldado, marido de sua ex-mulher e padrasto de sua filha, acaba sendo preso e duramente torturado. Para poupá-lo de mais sofrimento, o médico acaba por estrangulá-lo quando é deixado sozinho com seu corpo na sala de tortura.

Sabendo do invariável destino do corpo de Andriy, Sergiy faz um trato com o operador do forno para que o corpo do marido da ex-mulher não seja cremado, mas sim escondido para que possa ser retornado à família. O médico, então, é obrigado pelos russos a fazer uma confissão com a promessa de ser libertado na próxima troca de prisioneiros. Finalmente Sergiy retorna à sua casa e é confrontado com a tristeza de sua filha Polina (Nika Myslytska) e da ex-mulher Olga (Nadiya Levchenko) diante do desaparecimento de Andriy. Sergiy, então, é confrontado com a decisão de contar ou não o que sabe do destino do soldado no cativeiro russo (e sua parte na história) ao mesmo tempo que tenta trazer o corpo de Andriy para casa.

O diretor e roteirista Valentyn Vasyanovych opta por takes longos com poucos e pontuais diálogos sem uso de música de para transmitir sua mensagem. Como pano de fundo recebemos apenas a sonoplastia dos objetos, elementos, movimentos e dos ambientes, o que torna a atmosfera da obra ainda mais pesada e inquietante. Valentyn não nos poupa de pontos de vista inusitados com cenas bastante escuras, campo de visão limitado como, por exemplo, através do para-brisa do carro, da janela de uma sala de cirurgia, ou da cela da prisão.  

Nas cores vemos um alto contraste e uma fotografia pouco saturada, com exceção da aplicação pontual de tons como o branco intenso da neve, o vermelho pulsante do sangue ou as tintas das armas de paintball na primeira cena do filme, o que contribui imensamente para a dramatização. Valentyn e sua equipe também são muito minuciosos nos detalhes, como as longas cenas, incluindo os procedimentos na entrada do cativeiro russo. Cenas dolorosas são estendidas por minutos, gerando um grande desconforto, no caso, proposital. Um jogo barroco de claro-escuro na iluminação, em especial nas cenas da cela, nos oprime e nos limita a visão, apelando para a nossa imaginação. “Reflexão” é a expressão ucraniana do cinema se aproximando do tratamento de dramaturgia teatral em voga nos últimos anos, com takes longos de câmera parada, sendo a câmera em movimento quase que inteiramente reservada para as cenas de locomoção em veículos do ponto de vista do motorista.

Como uma boa reflexão deve ser, a obra fala de como toda guerra possui dois lados, nos quais todos envolvidos são no final perdedores, acometidos pelo medo, marcados por traumas, e ansiando por uma vida melhor. A guerra tem muitos rostos, e a maioria desses rostos permanece anônima, tendo suas trajetórias individuais apagadas pelo impacto conflito. O diretor Vasyanovych nos mostra que não há vitoriosos na violência, apenas perdedores. O título, “Reflexão”, mais parece mais uma provocação ao público do que uma referência ao centro do enredo. Nos faz refletir sobre o dilema moral de Sergiy e temas filosóficos espinhosos como a vida após a prisão e tortura, a morte e sobre religião, usando simbolismos e analogias descomplicadas e acessíveis a um grande público. E com isso se torna bastante necessário, principalmente tendo em vista a retomada da disputa de territórios pela Rússia com mais uma invasão à Ucrânia em fevereiro de 2022.

Lançado pela Imovision, “Reflexão” chega em breve aos cinemas brasileiros.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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