Segundo Luiza das Neves Gomes, doutoranda em História Social pela UFRJ, as ideias de Antonio Carlos Pacheco e Silva ajudaram a legitimar diversas ideias que caracterizaram o regime militar.
Por Bruno Leal | Agência Café História
“Ao médico, é óbvio, cabe papel de grande relevo nesse combate e o dever de colaborar, com o mais ardoroso espírito cívico e patriótico, em tudo quanto concorra para a segurança nacional”. Assim escreveu o médico-psiquiatra Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988) em seu livro “Hippies, drogas, sexo, poluição”, publicado no Brasil em 1974 pela editora Martins Fontes. A trajetória e o trabalho de Pacheco e Silva, defensor da psiquiatria como compreensão das “doenças morais” que ameaçavam a segurança nacional no século XX, são os objetos de pesquisa de Luiza das Neves Gomes, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (PPGHIS).
Em conversa com o Café História, Gomes explicou que sua pesquisa busca entender como os trabalhos de Pacheco e Silva e sua participação em diversos espaços sociais e políticos relacionam-se com os debates científicos ligados à higiene mental nas discussões que permeavam a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) e a Doutrina de Guerra Revolucionária (DGR), ambas elaboradas nos anos 1950 e 1960. Luiza entende Pacheco e Silva como um “intelectual orgânico”, conforme categoria usada por Rene Armand Dreifuss “1964: a conquista do estado” (1981).
– Dreifuss afirma que nos anos 1960 no Brasil uma elite intelectual lutava pelos interesses do capital multinacional. Como consequência disso, acabou se formando um conjunto de agentes sociopolíticos e um aparelho civil e militar modernizante. Esses agentes, os tecno-empresários e os militares, muitos deles membros dos quadros da ESG, eram caracterizados por Dreifuss como os intelectuais orgânicos do novo bloco de poder em formação. Esses intelectuais serão os principais atores políticos para implementação do regime militar. Dreifuss, é importante dizer, se apropria do trabalho de Antonio Gramsci, para quem o intelectual orgânico é todo intelectual que, diferentemente do “intelectual tradicional”, é vinculado a um projeto de classe ou fração de classe – explicou Gomes.
Um médico-psiquiatra “civil militarizado”
Pacheco e Silva foi um dos pioneiros da psiquiatria militar brasileira. Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, produziu diversos estudos sobre eugenia e higiene mental, muitos dos quais buscavam demonstrar como o atraso social, o declínio produtivo e o comunismo eram consequências diretas e indiretas de doenças mentais e morais. Nos anos 1960, foi um dos principais difusores da DSN e da DGR no meio civil, além de defensor do regime militar instalado no país em 1964. Ao longo de sua carreira, escreveu livros, realizou palestras e conferências. Foi presidente da Liga Paulista de Higiene Mental (1926), Deputado Constituinte (1933-1934), professor da Universidade de São Paulo (1935-1967), membro da Escola Superior de Guerra (anos 1950 e 1960), vice-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e membro da comissão executiva da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), além de membro de outros espaços que o ajudaram a legitimar e difundir suas ideias.
A relação de Pacheco e Silva com o meio militar era bastante considerável, não só no âmbito da ESG, da qual foi aluno e conferencista, mas também na Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), no jornal Notícia do Exército e no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército (CPOR), onde circulavam publicações suas sobre Segurança Nacional. Para Gomes, Pacheco e Silva foi um “civil militarizado”.
Pensamento conservador e ditadura militar
Segundo a historiadora, o pensamento de Pacheco e Silva foi bastante pautado pelo conservadorismo. “Entre as décadas de 1920 e 1940”, ela explica, “seus trabalhos apontavam uma íntima relação entre o mundo laboral e a higiene mental”. Para o médico-psiquiatra, o rendimento de uma indústria se equacionava através do estado de saúde física e mental de seus trabalhadores, haja vista que um indivíduo corroído pelas “verminoses sociais” não poderia se tornar produtivo. Outro tema bastante presente em seus estudos nessa época era o “aperfeiçoamento da raça”, sempre pautado pela eugenia.
– Pude verificar como Pacheco e Silva entendia os problemas sociais da época, exercendo juízos de valor e retratando determinados grupos enquanto entidades mórbidas, como judeus, muçulmanos, japoneses, ciganos e hippies. Ele via estes grupos como uma ameaça à ‘homogeneidade da população’ devido às suas características culturais e religiosas, que ele julgava perniciosas para a “raça em formação”.
Na década de 1960, Pacheco e Silva se destacou quanto aos alertas que fazia à sociedade sobre o avanço do comunismo e da propaganda comunista no Brasil, cabendo, segundo ele, às elites do país cuidar das condições materiais e educacionais da nação para evitar a adesão às ideias revolucionárias. Gomes cita o caso de uma conferência proferida na ESG, em 1961, onde Pacheco e Silva mostrou grande preocupação com as “personalidades psicóticas” e “desajustadas” que estariam suscetíveis à influência dos comunistas e das táticas soviéticas. Essas ideias circularam em instituições como a USP, a FIESP, o Fórum Roberto Simonsen, o IPES, o Wolrd Anti-Communist League e diversos veículos de imprensa, como os jornais Folha de S. Paulo e O Globo.
– Muitos dos valores pregados por Pacheco e Silva ganharam espaço no projeto da grande burguesia brasileira e multinacional que visava garantir seus investimentos pautados em um modelo de desenvolvimento modernizante. Valores que perpassavam pela a preservação da família, da escola, da harmonia no trabalho, da obediência às normas políticas e da religião cristã – disse a historiadora.
Fontes e descobertas
Gomes, que é orientada pelo historiador Renato Lemos, está trabalhando com documentos encontrados na Escola Superior de Guerra (ESG), na Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), no jornal Noticiário do Exército e no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército (CPOR). A maior parte de suas fontes, no entanto, encontra-se no Museu Histórico Carlos da Silva Lacaz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. No fundo “Pacheco e Silva”, Gomes debruça-se sobre correspondências, fotografias, atas, recortes de jornais, laudos periciais, plantas arquitetônicas, regimentos, relatórios, artigos especializados, separatas de sua produção e originais, entre os quais manuscritos, relatórios e textos não publicados.
Embora a pesquisa ainda esteja em seu segundo ano, a historiadora já encontrou diversos documentos interessantes. É o caso de um livro sobre psiquiatria militar escrito por Pacheco e Silva logo depois da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Neste livro, financiado pelo Fundo Universitário de Pesquisa para Defesa Nacional, o médico discorre sobre os temas do recrutamento e das neuroses de guerra. Além disso, Gomes também destaca as atas de reunião da Liga Anticomunista Internacional, da qual Pacheco e Silva foi presidente na década de 1970, e um documento manuscrito de Pacheco e Silva idealizando a Associação dos Revolucionários de 64 e sua ata de Fundação e o Estatuto, que tinha como objetivo manter vivos os ideais da “Revolução Brasileira”.