Quem, como eu, cresceu na frente da tv nos anos 80, deve ter assistido no canal SBT – voluntaria ou involuntariamente, dadas as inúmeras reprises – a série em dois capítulos feita pela ABC norte-americana em 1988 baseada no memoir “Elvis and Me” de Priscilla Presley concebido em parceria com a escritora Sandra Harmon e publicado em 1985. Nessa minissérie o ator Dale Midkiff interpretou o torturado Elvis e Susan Walters a sua musa Priscilla. Eu já conhecia a música e os filmes de Elvis bem antes disso, graças à “Sessão da Tarde” que me apresentava diariamente clássicos do cinema hollywoodiano nas tardes de ócio infanto-juvenil. Mas foi ao assistir à série da ABC que tive meu primeiro contato consciente com a figura do popstar autodestrutivo e da miséria emocional dos que desfrutavam das vantagens e desvantagens de pertencer a seu núcleo íntimo de família e amigos.
Confesso que Elvis foi meu primeiro crush, em uma época em que as garotas da minha idade idolatravam Menudo entre outras boy bands. A complexidade de um ícone com carreira extensa e vida conturbada me era muito mais atraente do que as imagens de bons moços dos ídolos adolescentes. Demorei, até mesmo, a me apaixonar por Beatles ou Rolling Stones que compõem, também, a raiz do pop rock branco internacional. Somente mais tarde acordei para o fato de que esses artistas anglo-saxões, assim como Elvis, idolatravam deuses muito maiores e que existiam sob o legendário selo Motown. Mas isso seria uma história para outro tipo de resenha. Aqui o olhar é de, e é para Priscilla Ann Beaulieu. A eterna namorada, esposa e mãe da única filha do rei do rock estadunidense.
Li Elvis and Me já adulta, e desencantada das fantasias de fã. Nele vemos pelos olhos e palavras de Cilla – apelido carinhoso que ganhou de Elvis – o primeiro encontro com o astro numa base militar norte-americana em Wiesbaden – mais especificamente no pequeno vilarejo de Bad Neuheim – na Alemanha em 1959, nos anos em que esse cumpria o serviço militar obrigatório. O padrasto de Priscilla, também militar, tinha sido realocado para a gelada Alemanha, muito a contragosto do resto da família que vinha do quente Texas. Elvis ficou encantado com a menina de 14 anos quando tinha 24 anos. Uma diferença de idade significativa, que tanto à época, mas muito mais hoje em dia, era considerada indevida. Porém, isso não impediu o começo de um dos romances mais famosos da história da música, e que se tornou uma espécie de sonho de princesa de toda a jovem apaixonada por um ídolo juvenil.
Sofia Coppola adquiriu os direitos de (re)filmar a história de Priscilla e atuou como diretora e roteirista juntamente com a própria Priscilla – que também atua como produtora – e com o material base de Sandra Harmon, já falecida. Porém, as controvérsias em torno da produção iniciaram muito antes do começo das filmagens, a filha de Elvis, Lisa Marie Presley, considerou que o roteiro colocava seu pai como “vilão” e não deu sua “benção” para a produção. Poucos meses após a polémica Lisa Marie morre em janeiro de 2023. No final Coppola acabou não conseguindo autorização para utilizar as músicas de Elvis em um filme sobre a mulher que viveu pra Elvis parte de sua vida. Não tem como não levar isso em consideração em uma biopic desse tipo. Sem o catálogo musical de Elvis à disposição, Sofia foi criativa e, assim como em seus outros filmes, a trilha sonora é inesperada, não é cronologicamente sincronizada com os acontecimentos, mas profundamente ligada aos sentimentos na tela. O filme já abre com a versão de Baby, I Love You cantada pelos Ramones com a majestosa produção de Phil Spector de 1980, porém derivada de um score original das Ronettes de 1964. Sofia fica no tema, transgredindo normas temporais musicais, algo que já estava presente em sua visão de “Marie Antoinette” (2006) onde os prazeres, devaneios e indulgências de Marie (Kirsten Dunst) eram embalados por ninguém menos do que The Cure, Strokes ou New Order. Para Coppola o importante é a captação do clima do momento e de amplificar sentimentos lúdicos e oníricos. Essa atitude da diretora permite um desprendimento temporal quase completo na experiência auditiva e um foco inteiramente no sentimento expresso.
Assim como em outras de suas obras, Sofia busca atores da “new Hollywood” para seus filmes. Atores que estão no spot Light ou que são extremamente promissores, e, claro, belos. Para o papel de Priscilla, Sofia escolheu a jovem atriz Cailee Spaeny, ainda desconhecida do grande público, mas que consegue dar à jovem Cilla ares da mais pura inocência pueril atrelada à adoração e, fatalmente, à decepção de um primeiro amor profundo. Cailee fala quase em sussurros e se sujeita a todas as mudanças de humor do seu objeto de adoração. Elvis, por sua vez, é interpretado pelo rising star Jacob Elordi. Jacob tenta interpretar os trejeitos e o sotaque do rei do rock, porém sem muito sucesso. Na tela vemos o Jacob Elordi de Euphoria (2019) e de Saltburn (2023), mas não sentimos Elvis. A química entre Cailee e Jacob não nos convence, quer seja pela imagem estética – Elordi é quarenta centímetros mais alto do que a atriz – ou pela pouca profundidade em cenas dramáticas do casal.
Como na maioria de seus filmes, Sofia Coppola nos oferece um eye candy com a beleza de uma cenografia com filtro macio e romântico. Priscilla, e todo o elenco, possuem figurinos fantásticos, e os sets são perfeitos nos mínimos detalhes – passamos bastante tempo acompanhando a transformação da menina Cilla na mulher almejada por Elvis. Vemos o cuidado extremo dedicado aos cabelos, unhas, maquiagem, até mesmo no momento de dar à luz à Lisa Marie. Cilla fez de sua existência um constante preenchimento dos desejos, vontades e manias de Presley. Ela aguenta as inúmeras traições, a solidão e o isolamento do mundo fora de Graceland, assim como compartilha com Elvis seus comprimidos e atende a suas fantasias sexuais, que incluíam um processo lento e gradual de grooming de Priscilla para tornar-se a imagem fantasiosa de Presley do que deveria ser uma mulher, esposa e mãe. Priscilla é uma boneca em uma casa de bonecas, e Sofia enfatiza bastante isso no argumento.
Até que ponto essa representação é convincente e verossímil? Não temos como saber. Em um novo documentário chamado “Loving Elvis” (2023) disponível no streaming Peacock, que tem o foco somente na vida romântica de Elvis e seu comportamento com as mulheres, diversas testemunhas presentes na vida do casal afirmaram que Priscilla era obstinada, insistente e abusava de chantagem emocional para prender Elvis a si. Mas o filme de Sofia é totalmente fiel ao livro fonte e às memórias de Priscilla, e dentro desse universo azul (cor predileta de Elvis para as roupas de Cilla), vemos um homem extremamente manipulador e que “encastela” uma menina em sua mansão visando educá-la para ser a mulher devota e discreta que ele supõe atender as exigências de sua finada mãe. Aliás, a relação de Elvis com a mãe nunca pareceu ter abandonado a infância e as fantasias de um menino mimado. Cilla acaba sendo o objeto da projeção de Elvis da santificada imagem de sua mãe perfeita.
Priscilla é um filme sem apelos melodramáticos. Sofia não é dada a exposições exageradas em seus personagens. Assim como evita os grandes conflitos do lado sombrio de Elvis ou eventuais tropeços de Priscilla. Em alguns momentos o filme tem um ritmo muito modorrento, o que gera a falsa sensação de superficialidade da direção. Porém, no geral, é uma bela obra, e, de certa forma, complementar à leitura da autobiografia de Priscilla Presley.
O filme entrou em cartaz oficialmente no Brasil em 04 de janeiro de 2024 e está disponível para streaming exclusivamente no canal MUBI desde 1º de março.