“Adeus, minha praça Onze”: como se apagou um dos bairros mais boêmios e vivos do Rio de Janeiro

Um reduto popular derrubado em meio ao caos de grandes reformas urbanísticas no Rio de Janeiro: a praça Onze das escolas de samba, da cultura afro-brasileira, dos imigrantes e trabalhadores, que se transformou em estéril esplanada.
7 de abril de 2025
Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chaves.
Dalva de Oliveira, Herivelto Martins e Nilo Chaves. S.l, 14 de julho de 1957. Correio da Manhã. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_37182_012

Na virada para o século XIX, a região do entorno da atual Praça Onze, na região central do Rio de Janeiro, encontrava-se desabitada, além dos limites urbanos da cidade. Mas após a instalação da família real no Brasil, em 1808, as coisas começaram a mudar. A região passou a abrigar ruas, casas e um incipiente comércio, conhecida por Rocio Pequeno.

Em 1842, mais mudanças: o imperador d. Pedro II determinou a construção de um grande chafariz em cantaria e estilo neoclássico de autoria de Grandjean de Montigny, notório arquiteto francês, fonte de água para os moradores e transeuntes. E na década seguinte, a região recebeu as instalações de uma fábrica de gás do empreendedor Visconde de Mauá, o que favoreceu uma grande concentração de trabalhadores em seu entorno.

Nas últimas décadas do século XIX, a região passou a receber muitos imigrantes e escravizados recém-libertos. Tornou-se um centro de cultura judaica no Rio de Janeiro, o maior que a cidade já teve – seis instituições judaicas funcionavam na região neste período, em que também havia vários jornais em íidiche. Linhas de bonde e a estrada de ferro Central do Brasil cruzavam suas ruas, conectando o lugar a tantos outros da cidade.

No início do século XX, o bairro, que ganhou o nome oficial de “11 de junho”, em homenagem a uma batalha durante a Guerra do Paraguai, a Batalha do Riachuelo (1865), deixou de ser uma região desabitada e além dos limiares urbanos. Estava integrado e vivo.

A cultura faz a cidade

Com uma vida social intensa, circulação de trabalhadores de várias origens, a Praça Onze expandiu-se além do quadrilátero que formalmente a delimitava, formado pelas ruas Santanna, Senador Eusébio, Marquês de Pombal e Visconde de Itaúna. Com o impulso criativo das diversas culturas populares que ali conviviam, atividades produtivas e boemia, aos poucos a região passou a assistir à consolidação de uma cultura afro-brasileira que, entre outras consequências, seria de crucial importância para o nascimento do samba.

Foi em seu entorno que as notórias “tias” baianas abriam seus espaços para confraternizações, onde nasceu o samba, a partir da animação dos maxixes, lundus e batucadas, e a despeito da perseguição policial que não admitia a diversão expansiva de negros e proletários. Já nas décadas de 1930 e 1940, o carnaval faz da praça seu palco, recebendo os primeiros desfiles de escola de samba da cidade.

Mas em 1942, em meio a uma reformulação extrema do centro promovida pelo então presidente-ditador Getúlio Vargas, em seu período mais autoritário e pelo prefeito do então distrito federal, Henrique Dodsworth, a praça foi praticamente extinta, reduzida a uma inóspita esplanada em função da ampliação da avenida do Mangue e da abertura da avenida Presidente Vargas. A Praça Onze, de tantas culturas, de tantos encontros, de tantos bares e trabalhadores, que tanto tempo levou para criar identidade própria e alma carioca, foi posta a baixo sem qualquer consulta aos seus moradores e frequentadores.

Atualmente, do carnaval e da população negra e proletária, resta o monumento a Zumbi dos Palmares e a imponente Passarela do Samba, atual palco dos desfiles das escolas de samba. O nome, eternizado em canções clássicas da nossa música popular, sobrevive em uma estação de metrô.

A Praça Onze vive: no Arquivo Nacional

Ainda bem que existe a história e a memória. Porque a exuberância da praça Onze continua viva nesses termos. O Arquivo Nacional guarda, por exemplo, extensos registros da história do samba, do carnaval, de vários logradouros da antiga Corte do Império e da ex-Capital Federal, incluindo a praça Onze de Junho.

“Adeus, minha praça Onze, adeus… já sabemos que vai desaparecer…” Estes versos compõem a canção “Praça Onze,” de autoria de Grande Otelo e Herivelto Martins. Nesta gravação, uma das várias que estão protegidas no Arquivo Nacional, é interpretada pelo Trio de Ouro e Castro Barbosa, acompanhados de Benedicto Lacerda. Tanto a gravação quanto o rótulo (fotografado do disco) pertencem ao fundo Humberto Moraes Franceschi. O lamento da canção expressa uma tristeza aguda diante da perda de um ponto de referência na então jovem história das escolas de samba, mas também vislumbra um futuro em que uma nova praça abrigará novamente os sambistas.

O fundo Humberto Moraes Franceschi (1930-2014) possui 2799 discos doados por este pesquisador, gravados entre 1906 e 1954. Também guarda a produção das primeiras gravadoras a atuar no Brasil, como, por exemplo: RCA, Victor, RCA-Victor, Columbia, Parlophon, Odeon, Copacabana.

Imagem/vídeo: rótulo de disco do fundo Humberto Moraes Franceschi, [194-]. BR RJANRIO W3.0.DSO, COM.168

O Estado Novo e o Rio de Janeiro

Durante o chamado Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), o prefeito da Capital Federal Henrique Dodsworth promoveu reformas urbanas tão radicais quanto às realizadas por Pereira Passos nos primeiros anos do século XX. O centro da cidade ganhou não apenas uma nova face, mas também uma nova extensão.

O Campo de Santanna perdeu espaço, igrejas tombadas foram derrubadas (São Pedro dos Clérigos e São Domingos), diversas ruas foram extintas ou tiveram seus trajetos alterados. Uma parcela significativa dessas alterações ocorreu em função da abertura da imponente avenida Presidente Vargas, planejada segundo padrões geométricos rigorosos que se impunham à permanência de pessoas e legados. Oficialmente inaugurada em 1944, a via ligava, numa linha reta de 3,5 quilômetros, a praça da Candelária até Avenida do Mangue, na Cidade Nova, ampliando o acesso aos bairros da zona norte da cidade.

A boêmia e popular praça Onze não sobreviveu às obras que, assim como o bota-abaixo de quase 40 anos antes, tinham por objetivo eliminar os últimos resquícios da cidade velha, empurrar as habitações populares para locais mais distantes do centro, e ampliar a rede de circulação de veículos e pessoas, desafogando a cidade que crescia cada vez mais.

Praça Onze, no Rio de Janeiro, em 1942. Foto em Preto e Branco.

Diz o verso da fotografia acima, que integra o fundo Hélio de Brito: “vista do alto de uma torre de madeira na praça 11 de junho, a fim de fixar um dos pontos de eixo da avenida Presidente Vargas (eixo da cruz existente acima do zimbório da igreja da Candelária)”. (Imagem: Data: 1942. Hélio de Brito, [1942]. BR_RJANRIO_C7_0_FOT_041)

O engenheiro civil Hélio Alves de Brito (1902-1978) integrou a Secretaria de Viação e Obras Públicas do Distrito Federal durante a administração do prefeito Henrique Dodsworth (1937-1945). Esteve no cargo de diretor de obras da prefeitura de 1937 a 1940, quando foi criado o Serviço Técnico Especial (STE) da Avenida Presidente Vargas e Esplanada do Castelo, sob sua chefia.

Hélio de Brito fez parte do corpo de engenheiros que compunham a Comissão do Plano da Cidade, responsável em grande medida pelo planejamento de novas vias urbanas. O fundo documental Hélio de Brito, de natureza privada, foi doado ao Arquivo Nacional em 1999, e é formado por mais de 900 fotografias do acervo pessoal do titular, produzidas entre o período de 1922 a 1954.

A maioria das imagens revela aspectos e espaços do Rio de Janeiro envolvidos nas obras de urbanização do Distrito Federal durante o final da década de 1930 e início da década seguinte. Também fazem parte do acervo imagens de outros logradouros cariocas, e de cidades como: Niterói, Piraí, Teresópolis, Piracicaba, Santos e São Paulo.

Nada disso se compara à exuberância da Praça Onze e de tantos outros lugares tão importantes do Rio de Janeiro daqueles tempos, mas é bom saber que um pouquinho de tudo aquilo continua disponível para ler, ver e escutar.  

Referências

DA SILVA, Pedro Sousa. Reforma urbana no Estado Novo: a gestão de Henrique Dodsworth na cidade do Rio de Janeiro (1937-1945). Mosaico, v. 8, n. 13, p. 280-297, 2017.

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995.

SILVA, Beatriz Coelho. Negros e judeus na Praça Onze: a história que não ficou na memória. Bookstart, 2015.

Parceria

Este artigo é fruto da parceria entre o setor de pesquisa do Arquivo Nacional e o Café História. Para saber mais histórias como essas, conheça o projeto de divulgação histórica do Arquivo Nacional, Que República é Essa, coordenado por Viviane Gouvêa.

Como citar este artigo

GOUVÊA, Viviane. “Adeus, minha praça Onze”: como se apagou um dos bairros mais boêmios e vivos do Rio de Janeiro (artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/praca-onze-antigo-bairro-boemio/. Publicado em: 07 de abril de 2025. ISSN: 2674-5917.

Viviane Gouvêa

Viviane Gouvêa, mestre em ciências políticas pela UFRJ e escritora, é pesquisadora do Arquivo Nacional desde 2006.

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