Por que a ditadura matou povos indígenas — e por que precisamos da Comissão Nacional Indígena da Verdade

A justiça de transição só chegará para os povos indígenas com medidas eficientes de reparação e não repetição. Cerca de 4.649 indígenas foram mortos no período, e outros milhares entre 1946 e 1964.
18 de abril de 2025
Cacique Tuchaua dos Carajás. Fundo: Correio da Manhã. Código: BR_RJANRIO_PH_0_FOT_04447_170
Em dezembro de 2015, o MPF/MG concluiu uma ação civil pública para cobrar reparações do Estado brasileiro ao povo indígena Krenak, que sofreu graves violações contra seus direitos com ações da ditadura militar, no período de 1967 a 1988. Cacique Tuchaua dos Carajás. Fundo: Correio da Manhã. Código: BR_RJANRIO_PH_0_FOT_04447_170

A terceira recomendação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), presente no Texto 5 do Volume II, Violações dos direitos humanos dos povos indígenas, propõe a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). Essa nova comissão teria como foco exclusivo aprofundar as investigações sobre os casos de graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas.

A CNV reconhece que muitos episódios ainda não foram suficientemente detalhados no relatório final. Com base nos fatos apurados, a Comissão afirmou que o Estado brasileiro foi responsável, por ação direta ou por omissão, pelo esbulho de terras indígenas no período investigado, além de outras violações de direitos articuladas em torno desse mesmo eixo.

A ditadura civil-militar brasileira durou 21 anos e deixou um rastro de mais de 5 mil mortes e desaparecimentos. Esse número resulta da soma entre os 420 mortos e desaparecidos políticos identificados pela CNV, no período de 1964 a 1985, e os 4.649 indígenas mortos durante o mesmo intervalo. Esses dados aparecem, respectivamente, nos volumes I, III e II do Relatório Final da CNV.

Apesar disso, é comum que se repita o número de 434 mortos e desaparecidos como se fosse o total de vítimas da ditadura. Na verdade, esse total se refere ao recorte mais amplo adotado pela Comissão, que vai de 1946 a 1988. A mesma confusão acontece com os números relacionados aos povos indígenas: embora 8.341 mortes tenham sido registradas para todo o período analisado, cerca de 4.649 ocorreram especificamente durante a ditadura.

A própria CNV alerta que o número real de indígenas mortos deve ser “exponencialmente maior”, já que apenas uma pequena parte dos povos afetados foi analisada. Em alguns casos, a quantidade de vítimas é tão alta que sequer foi possível estimar um número com precisão.

Esses dados reforçam a urgência de ampliar as pesquisas sobre o período, para que se possa compreender melhor o alcance das violações cometidas pelo Estado brasileiro. Também é essencial discutir a decisão da CNV de tratar separadamente os “mortos e desaparecidos políticos” e os indígenas mortos na ditadura.

Mortos políticos

Aos povos indígenas foi negado o reconhecimento de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura civil-militar. A CNV apurou, entre 1946 e 1988, as mortes de 8.341 indígenas. Do total, 1.180 pertenciam ao povo Tapayuna, 118 ao Parakanã, 72 ao Araweté, 14 ao Arara, 176 ao Panará, 2.650 ao Waimiri Atroari, 354 ao Yanomami e 85 ao Xavante de Marãiwatsédé. Além disso, antes da ditadura, ocorreram genocídios de aproximadamente 3.500 Cinta-Larga, em 1963, e de 192 Xetá, em data provável entre as décadas de 1950 e 1960.

Durante a ditadura, esses povos foram frequentemente tratados como “inimigos do desenvolvimento”, por estarem diretamente relacionados à preservação de seus territórios. Isso nos leva à reflexão sobre o antagonismo entre as forças militares e os povos originários, percebidos como obstáculos ao avanço da ditadura.

Os indígenas mortos durante esse período podem ser considerados, portanto, mortos e desaparecidos políticos, pois eram vistos como inimigos da ditadura civil-militar. De fato, o Estado brasileiro os tratou como inimigos da segurança nacional, considerando suas resistências como obstáculos ao progresso e ao desenvolvimento. A resistência dos Waimiri Atroari à construção da BR-174, que resultou no genocídio de 2.650 indígenas desse povo, exemplifica o tratamento violento imposto pela ditadura. Qualquer forma de oposição aos projetos do governo militar era interpretada como uma ameaça direta aos interesses nacionais.

Obras de construção da rodovia Transamazônica, no início dos anos 1970.
Obras de construção da rodovia Transamazônica, no início dos anos 1970. (Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã) Fonte: Agência Senado

A relação entre segurança e desenvolvimento, muito clara durante esse período, refletia a dependência da ditadura de grandes obras de infraestrutura para sua sustentação econômica. Assim, os povos indígenas foram vistos como inimigos internos e passaram a ser vítimas de um tratamento cada vez mais violador. No período, o conceito de crimes contra a segurança nacional foi ampliado para incluir uma gama cada vez maior de comportamentos, com o intuito de enquadrar como oposição qualquer resistência ao projeto de desenvolvimento da ditadura. No discurso oficial da época, os indígenas eram rotulados como “hostis” e “violentos”, e essa narrativa ajudava a justificar as graves violações cometidas contra eles.

CNIV e protagonismo indígema

Nesse sentido, é muito importante que ocorra a implementação da Comissão Nacional Indígena da Verdade, voltada especificamente para apurar as graves violações cometidas contra os povos indígenas. É fundamental que esse novo momento ocorra sob o protagonismo indígena, rompendo com a lógica tutelar e superando as amarras do colonialismo. A centralidade dos interesses dos povos indígenas deve ser o ponto de partida e o fio condutor desse processo.

Em 2023, o Ministério dos Povos Indígenas lançou a campanha institucional “Nunca Mais um Brasil Sem Nós”, marcando a primeira vez em que o 19 de abril foi celebrado como o “Dia dos Povos Indígenas”. A iniciativa buscou valorizar a diversidade dos 305 povos indígenas que vivem no país, bem como suas 274 línguas, e também significou o rompimento com a antiga nomenclatura “Dia do Índio”, vista como reducionista.

Para compreender a campanha “Nunca Mais um Brasil Sem Nós” e sua importância na viabilização da Comissão Nacional Indígena da Verdade, é preciso discutir o protagonismo indígena. Conforme Felipe Tuxá, antropólogo e professor indígena da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o reconhecimento do Brasil como um país “multiétnico, multilinguístico e multicultural”, e o próprio texto constitucional abrem espaço para repensar o exercício da cidadania. Isso implica a construção de uma cidadania indígena que valorize as formas próprias de organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos originários.

Na luta pela autonomia, Felipe Tuxá defende a oposição entre tutela e protagonismo, destacando que o protagonismo não se resume à busca por espaços eletivos ou cargos públicos. Trata-se, na verdade, de um verdadeiro “aldeamento da política”: indigenizar o Estado e retomar aquilo que historicamente lhes foi negado. Esse movimento deve partir do reconhecimento de cinco séculos de apagamento e obliteração dos povos indígenas, legados por uma política de tutela que os silenciou. Sobre esse silenciamento, o autor aponta que “o imaginário nacional construiu o arquétipo sobre povos indígenas através da sua ausência: indígenas precisam estar longe, são habitantes de lugares distantes e remotos, estão no passado, são todos iguais, e, portanto, pouco complexos”, e conclui que a melhor forma de enfrentar o racismo é estar presente.

Indígenas acompanham os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 (Leopoldo Silva/Senado Federal).
Indígenas acompanham os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 (Leopoldo Silva/Senado Federal). Fonte: Agência Senado

Quase quatro décadas após a promulgação da Constituição de 1988, os povos indígenas têm, cada vez mais, se afirmado como protagonistas na construção de políticas voltadas para si e na ocupação de espaços que antes lhes eram negados. Como enfatiza Felipe Tuxá: “O futuro já é hoje, é o futuro de nunca mais um Brasil sem nós. O futuro é indígena”.

A construção de um novo momento para os povos indígenas no Brasil, alicerçado na memória, na justiça de transição e na reparação histórica, passa necessariamente pelo protagonismo. Sem superar práticas antigas, baseadas em políticas de tutela e na ideia de que os indígenas seriam incapazes, não haverá transformação plena na experiência dos 305 povos existentes no país. Por décadas, decisões importantes foram tomadas por não indígenas, evidenciando a histórica desvalorização dos reais interesses indígenas e os efeitos desse atraso ainda se fazem sentir nos diversos âmbitos de decisão.

Memória e reparação

O filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles e vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva e se apoia, em grande medida, nos levantamentos e investigações realizados pela Comissão Nacional da Verdade. A obra é um importante componente na construção da memória sobre o período da ditadura civil-militar brasileira, contribuindo para a ampliação do debate público sobre as violações de direitos humanos cometidas naquele contexto.

De modo análogo, a realização da Comissão Nacional Indígena da Verdade poderá criar bases sólidas para uma política de memória voltada especificamente para os povos indígenas, aprofundando a investigação das graves violações de seus direitos humanos e promovendo maior conhecimento, reconhecimento e engajamento da sociedade brasileira frente a essa realidade histórica.

Neste 19 de abril, o terceiro ano em que a data é oficialmente reconhecida como o Dia dos Povos Indígenas, torna-se imprescindível um manifesto pela implementação da CNIV. Trata-se de uma urgência histórica que envolve reparação, memória e justiça de transição para os povos originários.

Ao reafirmar a frase “Nunca mais um Brasil sem nós”, a ministra Sônia Guajajara aponta para um novo projeto de país, um projeto fundado no respeito aos direitos dos povos indígenas e, sobretudo, em sua presença ativa e em seu protagonismo na construção do Brasil. O que foi sistematicamente negado aos povos originários ao longo dos séculos abrange, entre outros direitos fundamentais, o próprio direito à cidadania. Apenas por meio de ações concretas de justiça, memória e reparação será possível avançar rumo a uma justiça de transição plena e efetiva para esses povos.

No cerne desse processo de justiça de transição, voltado especificamente aos povos indígenas, está a urgência da implementação de medidas reais de reparação. Entre elas, destaca-se uma das principais e históricas reivindicações do movimento indígena: a demarcação de terras. Sem a garantia e a proteção efetiva de seus territórios, torna-se inviável a preservação de suas histórias, memórias, tradições e culturas.

Ademais, é fundamental que o processo de criação e funcionamento da CNIV seja conduzido com protagonismo indígena, pautado por uma escuta sensível, real e ativa de suas demandas. A CNIV deve ser, portanto, um espaço de reconhecimento e ação, que rompa com práticas tutelares e promova um caminho de reparação construído por e com os povos indígenas.

Referências

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Disponível em aqui.

TUXÁ, Felipe. O que é protagonismo indígena e por que ele é tão importante para nós indígenas. NEXO. Ponto de Vista. Políticas públicas. Disponível aqui.

PEREIRA, Nathanael Martins. Quem são os mortos e desaparecidos políticos? O genocídio indígena na ditadura civil-militar e a Comissão Nacional da Verdade: caso do povo Waimiri Atroari. 2025. Dissertação de Mestrado — Universidade de Brasília, Brasília, 2025.

ZELIC, Marcelo. Comissão Nacional Indígena da Verdade, uma emergência civilizatória. In: Relatório Violência Contra Os Povos Indígenas No Brasil, Dados de 2022. 2023.

Como citar este artigo

PEREIRA, Nathanael Martins. Por que a ditadura matou povos indígenas — e por que precisamos da Comissão Nacional Indígena da Verdade (artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/povos-indigenas-ditadura-verdade/. Publicado em: 18 de abril de 2025. ISSN: 2674-5917.

Nathanael Martins Pereira

Historiador. Mestrando em História Cultural, Memórias e Identidades no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB). Coordenador do projeto Memória e Ditadura nas Escolas Públicas do DF.

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