Por uma descolonização do Ensino da História Indígena no Brasil

O Ensino de História tem um papel fundamental na compreensão, valorização e proteção dos povos indígenas do Brasil. Mas, para isso, precisamos não são só de leis que assegurem esse ensino, mas uma ampla e profunda revisão de nossos conceitos e perspectivas historiográficas.
30 de janeiro de 2023
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Índios Kayapó. Foto: Marcel Camargo/Agência Brasil.

O ensino da história indígena conheceu avanços significativos no Brasil nos últimos anos. O mais importante foi, sem dúvida, a promulgação da Lei n.º 11.645/2008 que, complementando a Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino. Contudo, apesar dos avanços, muitas escolas brasileiras ainda enfrentam dificuldades para tratar desses temas. Há carência de materiais didáticos, de projetos de formação continuada, resistência de parte da comunidade escolar e até efeitos contraditórios da lei de 2008. Como bem percebeu Daiara Tukano, a Lei n.º 11.645/2008 tem sido usada em muitos casos contra os próprios povos indígenas, ao reproduzir, em muitos casos, estereótipos indígenas e ao favorecer a reprodução de conteúdos superficiais, acríticos e despolitizados sobre os chamados povos originários.

Mas por que o ensino de História é tão importante para a nossa compreensão dos povos indígenas e de seu papel na história do país?

Negação da história indígena e invisibilidade no presente

Durante muitos anos, a narrativa histórica corroborou uma lógica colonial. Muitas gerações aprenderam que os povos indígenas eram infantis, incivilizados, sociedades primitivas, incorretas, sem história e de hábitos estranhos. A negação das perspectivas indígenas sobre a história também foi outo problema. Segundo Linda Tuhiwai Smith, “uma necessidade imperiosa da ideologia colonial em seu processo de impor-se.”

Esse negacionismo teve suas consequências sobre as vidas indígenas. A ruptura com sua historicidade foi acompanhada pela ruptura de suas relações com o território e pela usurpação de seu direito à autodeterminação, o que reforçou o processo de marginalização desses povos. Os indígenas, para muitos, se tornaram invisíveis. E ser “invisível” significa que eles não podem ser vistos, ouvidos ou compreendidos. Esta invisibilidade é intencionalmente construída a fim de criar uma ausência e destruir a possibilidade de um futuro. Se você não tem futuro, qual é sua situação no presente ou qual é o significado de seu passado? Por fim, a negação da história indígena tem relação com o direito à terra. Afinal, quando o passado indígena é negado, quando a existência desses povos é invisibilizada no presente e não há futuro para eles, por que eles precisariam da terra?

Por uma descolonização do ensino da história indígena

A descolonização do ensino e da escrita da história indígena, de acordo com o pensamento decolonial, implica uma crítica à modernidade ocidental e à sua racionalidade hegemônica. A descolonização do conhecimento requer uma reabilitação do valor dos conhecimentos que não se encaixam na episteme moderna, como tem sido o caso dos saberes indígenas. Contestar a dominância epistêmica do Norte global representa um desafio no sentido de abrir o mundo a outros saberes, narrativas e lutas, contadas por múltiplas vozes. No caso da história indígena, descolonizar significa problematizar a dimensão epistêmica do colonialismo moderno, mostrando como a imagem predominante do indígena na história ainda é reflexo de representações forjadas no centro de um saber de matriz eurocêntrica que reforça a permanência das perspectivas do Norte sobre o Sul.

A pesquisadora Linda T. Smith nos ajuda a pensar a descolonização do ensino e da escrita da história indígena em seu livro Decolonizing methodologies: research and Indigenous Peoples, publicado pela primeira vez em 1998. Nesse livro, ela propõe pensar a descolonização como um processo capaz de provocar um pensamento revolucionário sobre os papéis que desempenham o conhecimento, a produção do conhecimento, as hierarquias do conhecimento e as instituições do conhecimento na transformação social.

No âmbito da ética profissional, Smith explica que uma metodologia decolonial deveria, inicialmente, servir para garantir que a “pesquisa seja significativa” para as comunidades e a visão e a experiência indígena sejam reconhecidas. Também deveria servir para assegurar que toda e qualquer pesquisa envolvendo os povos indígenas seja feita de um modo “respeitoso, ético, compreensivo e útil”. Ela denuncia o legado colonial do racismo epistêmico e da exploração dos conhecimentos e da sabedoria indígena por parte dos pesquisadores não indígenas há séculos. Além disso, mostra como os legados imperiais do conhecimento ocidental continuam influenciando as instituições educacionais e excluindo os povos indígenas e suas aspirações dos assuntos que lhes dizem respeito.   

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2a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, Brasília. Agência Brasil Fotos.

Boa parte da história ocidental foi construída em torno de um conjunto interconectado de ideias. Smith destaca dez: 1) A história é totalizante; 2) A história é universal; 3) A história é uma grande cronologia; 4) A história é equivalente ao desenvolvimento; 5) A história tem a ver com a autorrealização do sujeito humano; 6) Os relatos da história se podem contar em uma narrativa coerente; 7) A história é uma disciplina inocente; 8) A história se constrói sobre categorias binárias e 9) A história é patriarcal.

A descolonização do ensino da história indígena começaria pela revisão e desconstrução dessas ideias. Esse processo depende de uma revisão crítica de conceitos centrais, a começar pelas ideias de espaço e tempo, da forma como foram hegemonicamente definidos pela racionalidade moderna, como uma estrutura de saber que legitimou a expansão do projeto civilizacional moderno ocidental no mundo. Depende, também, de uma compreensão da oralidade e do papel das tradições orais na produção do conhecimento indígena.

Sobre a prática da história oral, Smith explica que a “arte de contar histórias” é “parte integral de toda investigação indígena”. Os testemunhos indígenas são vivos e “cada história individual é poderosa” e contribui para uma história coletiva. As narrativas indígenas sobre o passado são formas de “transmitir as crenças e os valores” de um povo, “esperando que as novas gerações os apreciem e continuem transmitindo a história”. É uma maneira de “conectar o passado com o futuro, uma geração com a outra, a terra com a gente e a gente com a história”. As narrativas indígenas são também compreendidas como “uma obra que educa o coração, a mente, o corpo e o espírito”.

Ouvir e integrar a versão indígena do passado

A compreensão da oralidade e do papel das tradições orais nos coloca a necessidade de aprendermos a ouvir e a integrar a versão indígena do passado. Nesse sentido, a participação dos indígenas e de suas organizações é fundamental na escolha e na definição dos conteúdos, assim como sua colaboração na criação de material didático e para a formação de professores. Os conteúdos da história indígena não deveriam ser pensados apenas em termos de conhecimentos, deveriam ser tratados em uma abordagem mais íntima, pois existem sensibilidades a serem descobertas e uma visão de mundo mais holística a ser integrada. Deveríamos, assim, tentar fazer refletir nas nossas práticas pedagógicas valores particularmente significativos para os povos indígenas como reciprocidade, interdependência, compartilhamento, respeito à natureza, consciência das consequências de nossos atos. Um tal enriquecimento dos cursos escolares teria não apenas como efeito combater os racismos e preconceitos, mas permitiria também aos milhares de crianças e jovens indígenas que hoje frequentam as escolas e universidades brasileiras serem reconhecidos e terem fortalecido o orgulho de seu povo e de sua cultura.

Resistência Indígena no Brasil
Arqueiro indígena participa de edição dos “Jogos Indígenas”. Foto: Valter Campanato/ABr.

O nosso desconhecimento da história e da realidade dos povos indígenas ainda é um obstáculo para a luta contra o racismo anti-indígena no Brasil

Na luta contra o racismo anti-indígena, o ensino da história deveria ser a ponta de lança deste processo de descolonização do saber histórico. Por isso, os movimentos indígenas pediram aos sucessivos governos que tomassem as medidas necessárias para favorecer o reconhecimento de suas identidades, valorizando suas culturas, línguas e visões de mundo nas instituições educativas e lutam por uma reescrita da história conforme a sua visão dos fatos.  

A luta contra o racismo deve ser um dos principais objetivos do ensino da história indígena. Para isso, é preciso mudar a mentalidade e avançar na construção de um programa escolar que não apenas questione os processos de dominação da cultura eurocentrada, mas que favoreça a compreensão dos processos de construção e produção do racismo e de conscientização e responsabilização da sociedade. Desse modo, o ensino da história indígena deveria incluir uma reflexão sobre os processos de construção do racismo anti-indígena. É preciso explicar aos estudantes que o racismo não é o resultado de um confronto entre pessoas de diferentes cores de peles, mas o produto de uma construção política e econômica. É preciso ensinar a perceber o conjunto de elementos que contribui, ainda hoje, para a formação de opiniões e preconceitos raciais a fim de afastá-los do sistema educativo. É preciso ainda preparar os futuros professores de história a desenvolver uma abordagem crítica das representações tendenciosas, dos conceitos e noções inadequadas por meio das quais a história indígena é ensinada. Para isso, uma das primeiras tarefas que o professor de história deve ser capaz de cumprir é questionar os seus próprios preconceitos e racismos.S

Referências

SMITH, Linda Tuhiwai. A descolonizar las metodologías. Investigación y pueblos indígenas, Santiago: LOM, 2016.

TUKANO, Daiara. (Daiara Hori Figueroa Sampaio). UKUSHÉ KITI NIISHÉ. Direito à Memória e Verdade na perspectiva da educação cerimonial de quatro mestres indígenas. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília, 2018.

Como citar este artigo

ZEMA, Ana Catarina. Por uma descolonização do Ensino da História Indígena no Brasil. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/por-uma-descolonizacao-do-ensino-de-historia-indigena/. Publicado em: 30 jan. 2022. ISSN: 2674-5917.

Ana Catarina Zema

Doutora em História Social pela Universidade de Brasília e Mestre em Histoire Sociale, des idées, des cultures et des religions pela Université Sorbonne Nouvelle. Fez estágio de Pós-doutorado em Ciências Políticas pela Université Laval (Quebec) com bolsa do Centre Interuniversitaire d'études et de recherches autochtones (CIÉRA) (2019-2021) e em Antropologia do desenvolvimento no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília com bolsa de excelência acadêmica da CAPES (2018-2019). Foi pesquisadora Visitante na Université Libre de Bruxelles e membro do Groupe Décolonial de Traduction. É Pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Direitos Étnicos Moitará da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília desde 2010. Pesquisadora do Observatório de Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND) do Departamento de Estudos Latinoamericanos da Universidade de Brasília desde 2016. Atualmente é Coordenadora do Grupo de Trabalho Pueblos Indígenas y Proyectos Extrativos (GTPIPE) do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso) e Pesquisadora no Centro de Referência Virtual Indígena do Armazém Memória. Desenvolve pesquisa sobre direitos dos povos indígenas e pensamento crítico e decolonial latino-americano e caribenho.

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