Por que os Estudos Feministas são importantes?

25 de fevereiro de 2019
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Combater a negação de discriminações, transformar e salvar vidas, erradicar escandalosas e históricas injustiças sociais ajudam a explicar a importância dos estudos feministas em nossa sociedade.

Por Soraia Carolina de Mello

Gostaria de dividir essa explicação em três partes: a primeira trata da invisibilidade de determinados sujeitos nas ciências, como objeto de estudo e, principalmente, como produtores de conhecimento; a segunda trata da negação do preconceito e da discriminação contra esses sujeitos; a terceira trata das possibilidades de transformação desse quadro. Meu foco são as mulheres (inclusas as trans), o sujeito dos feminismos1.

A invisibilidade diz respeito ao suposto universalismo das ciências, que alegam ser neutras. Contudo, os estudos feministas, assim como os estudos negros, indígenas, sobre deficiências, LGBTQ+ e decoloniais2, perceberam que as ciências não são neutras. Elas são produzidas a partir de determinada perspectiva, que está relacionada à posicionalidade do sujeito que produz ciências. Esse sujeito tradicionalmente era o sujeito do colonialismo, o colonizador: o homem branco (europeu ou descendente), pertencente via de regra às classes sociais privilegiadas – o sujeito hegemônico. Nunca era a/o colonizada/o, nem as mulheres. O androcentrismo, nesse quadro, pode ser definido como a prática de considerar a experiência dos homens como universal, valendo para toda a humanidade, inclusas as mulheres, que são mais da metade da população mundial e que vivem, historicamente, de maneiras muito diferentes dos homens.

Por que os Estudos Feministas são importantes? 1
Passeata política do #elenao em Florianópolis, 2018. Foto:  Elaine Schmitt

Mas levar isso em conta muda o quê? A verificação científica e as evidências não bastam para provar a neutralidade das ciências? O argumento dos estudos feministas diz que não, que o sujeito do conhecimento, quem o produz, transforma o saber. Que os conhecimentos são sempre situados e, portanto, inevitavelmente parciais3.

Conhecimento se produz a partir de perguntas, e a posicionalidade do sujeito muda radicalmente essas perguntas. E quando as ferramentas teóricas androcêntricas não respondem às nossas perguntas, elaboramos novas ferramentas teóricas. O conceito de gênero, ou o conceito de cuir (ou queer4, se preferirem), são excelentes exemplos de ferramentas teóricas desenvolvidas por sujeitos que se sentiram insatisfeitos com as ferramentas teóricas das ciências androcêntricas, porque não respondiam de forma adequada ou suficiente a suas perguntas. Quer dizer, os conceitos usados para explicar tão bem as relações nas sociedades de classes não ajudavam, sozinhos, a explicar de forma satisfatória outras matrizes de desigualdade, exclusão e exploração, inclusive as que se impõem sobre as mulheres.

Negar que existem essas outras matrizes de desigualdade, ou afirmar que elas são secundárias em relação a uma matriz principal, é negar também as formas de exclusão e preconceito específicos. Aceitar que a superação das desigualdades de classe resultará também na superação das desigualdades entre homens e mulheres, do preconceito racial e da homofobia (só para dar alguns exemplos), apesar de uma série de estudos que pensam a interseccionalidade das categorias mostrar que as relações de exclusão e exploração não são assim tão simples, é uma maneira muito comum de invisibilizar as especificidades de determinadas desigualdades.

E quando falamos em especificidade, não quer dizer que seja uma relação numérica, que envolva poucas pessoas. A maior parte da população mundial é composta por mulheres. São tantas mulheres que suas experiências diferem entre si profundamente, e por isso usamos o plural ao invés de falar em mulher. E por isso também os estudos feministas estão cada vez mais preocupados com as interseccionalidades, isto é, com o cruzamento de diferentes categorias de exclusão5, para que seja possível pensar sobre essas diferentes mulheres.

Como a academia não é um espaço neutro6, as mulheres, dentre outros sujeitos subalternizados, são entendidas como sujeitos específicos, como o outro. O termo “segundo sexo”, título do famoso livro de Simone Beauvoir, vem dessa relação com o que seria universal. As Ciências Sociais não tratam, tradicionalmente, as experiências dos homens como específicas em relação às das mulheres. A especificidade fica localizada no “outro”. O outro então é sempre secundário, e nessa relação a desigualdade, a falta de equidade, de acesso a direitos iguais, se naturaliza no discurso das ciências, e o preconceito e a discriminação se tornam “invenções”. Os estudos feministas oferecem um contraponto a essa perspectiva de ciência “neutra” que invisibiliza desigualdades.

Mas qual seria a utilidade, afinal, em nossas sociedades pragmáticas, dos estudos feministas? Quais os resultados disso na vida prática das pessoas? As ciências podem parecer distantes do cotidiano, mas evidenciar as desigualdades é pré-requisito fundamental para se pensar e construir as transformações. Como vamos combater o feminicídio se negamos sua existência? Como reivindicar uma distribuição de renda mais equânime entre homens e mulheres se considerarmos estudos como os dedicados à feminização da pobreza como parciais, específicos, que não contribuem para o geral, o global? Os movimentos sociais, as articulações e lutas, iniciativas individuais e coletivas, políticas públicas em prol da igualdade de gênero, que têm levado a cabo também debates sobre sexualidade e, através de diferentes frentes, têm transformado as vidas das pessoas – e salvado tantas outras – só podem ser específicos para os sujeitos hegemônicos. Lá na ponta dos processos, no final das contas, é para isso que servem os estudos feministas, para transformar e salvar vidas, para erradicar escandalosas e históricas injustiças sociais.

Quando nós produzimos conhecimento de um determinado ponto de vista – de uma posição não masculina, não hegemônica, preocupada com a superação das desigualdades, quer dizer, feminista, política – fazemos dois movimentos. O primeiro deles enriquece as ciências como um todo, inclusive as hegemônicas, androcêntricas, coloniais, porque na diversidade, na pluralidade, na proliferação de dados, sujeitos, teorias, investigações e abordagens, a produção de conhecimento ganha muito. O segundo movimento é aquele que afirma a existência de sujeitos que tinham antes essa existência negada ou condenada a guetos específicos. Então esses sujeitos que eram objeto de análise passam a ser também produtores de conhecimento, e o enfoque não androcêntrico sobre a sociedade (porque os estudos feministas não estudam apenas mulheres), fomenta a complexidade da produção científica.

O que se exige afinal é verossimilhança com a produção científica feita por e sobre homens (aquela que não é nomeada como específica porque é entendida como universal). Pensando especificamente na História como disciplina, os estudos feministas almejam que a historiografia sobre mulheres seja tão rica e complexa quanto aquela sobre homens. Que sujeitos estigmatizados, usurpados de poder, liberdade e autonomia pelas hierarquias de gênero (inclusas aqui as populações LGBTQ+) tenham o mesmo acesso à produção de conhecimento, o mesmo direito à história, memória, identidade e noção de pertencimento que os homens brancos, heterossexuais e cisgêneros possuem nas ciências e, especificamente, na História.

Saiba mais

Para saber mais, indicam-se os periódicos Revista Estudos Feministas e Cadernos Pagu, editados desde o começo dos anos 1990, como fonte de consulta bibliográfica sobre a produção científica feminista no Brasil. Todos os números das revistas estão disponíveis gratuitamente na rede. Se quiser saber mais sobre questões de gênero, o Café HIstória tem dois outros artigos bem legais aqui e aqui.

Notas

1 COSTA, Claudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu, Campinas, n. 19, pp. 59-90, 2002.

2 Em entrevista publicada na Revista do Instituto Humanitas Unisinos, “Luciana Ballestrin explica que a expressão (…) decolonial não deve ser confundida como mera descolonização. ‘Em termos históricos e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo; por seu turno, a ideia de decolonialidade (ou descolonialidade) procura transcender a colonialidade, a face obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder. (…) O giro decolonial procura responder às lógicas da colonialidade do poder, ser e saber, apostando em outras experiências políticas, vivências culturais, alternativas econômicas e produção do conhecimento’”.

3 HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, pp. 07-42, 1995.

4 Conceito complexo que busca superar a heteronormatividade e o binarismo de gênero, operando ele próprio com os conceitos de estranho e monstruosidade. Seu uso político está relacionado com a superação da constituição identitária ligada a práticas sociais, culturais e sexuais, e das fronteiras estabelecidas a partir dessas práticas. Por exemplo, precisar ter vagina para ser uma mulher; ou não poder ser um homem heterossexual e cisgênero se tiver um pênis e se vestir todos os dias com roupas entendidas socialmente como femininas. Dentro da teoria queer essas práticas não são naturalizadas, essas fronteiras são marcadas como artificiais e usadas para criar e fortalecer hierarquias. O conceito é alvo de disputas e críticas tanto na academia quanto nos movimentos sociais. Algumas leituras sobre a questão: PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, pp. 11-20, jan. 2011; MOMBAÇA, Jota. Para desaprender o queer dos trópicos: desmontando a caravela queer. [SEXX BBOX], 28/08/2016; e BAKER, Meg-John, SCHEELE, Julia. Queer – a graphic history. London: Icon Books, 2016.

5 GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, São Paulo, Anpocs, pp. 223-244, 1984.

6KILOMBA, Grada. Who can speak? In: KILOMBA, Grada. Plantation memories. Münster: Unrast Verlag, 2010. Tradução em português aqui.

Referências Bibliográficas

BAKER, Meg-John, SCHEELE, Julia. Queer – a graphic history. London: Icon Books, 2016.     

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1970.

COSTA, Claudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu, Campinas, n. 19, pp. 59-90, 2002.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, São Paulo, Anpocs, pp. 223-244, 1984.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, pp. 07-42, 1995.

KILOMBA, Grada. Who can speak? In: ______. Plantation memories. Münster: Unrast Verlag, 2010.

MOMBAÇA, Jota. Para desaprender o queer dos trópicos: desmontando a caravela queer. [SEXX BBOX], 28/08/2016;

PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, pp. 11-20, jan. 2011;

Soraia Carolina de Mello é doutora e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dedica-se a pesquisas focadas na história dos feminismos e trabalho doméstico desde 2005, contribuindo com as equipes do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH) e Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC desde então. Atualmente é pós-doutoranda (PNPD/CAPES) do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.

Como citar esse artigo

MELLO, Soraia Carolina de. Por que os estudos feministas são importantes? (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Publicado em 25 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ por-que-os-estudos-feministas-sao-importantes/.  

Soraia Carolina de Mello

Doutora e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dedica-se a pesquisas focadas na história dos feminismos e trabalho doméstico desde 2005, contribuindo com as equipes do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH) e Instituto de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC desde então. Atualmente é pós-doutoranda (PNPD/CAPES) do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.

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