Responder a esta pergunta após a recente extinção do Ministério do Trabalho e do Emprego, depois de 88 anos de atividade ininterrupta, pode levar a um texto em tom de obituário. O Ministério do Trabalho – que existiu em diferentes conjunturas políticas e sobreviveu até mesmo à Ditadura Civil-Militar (1964-1988) – teve suas atribuições reduzidas e distribuídas entre outras pastas ministeriais em janeiro de 2019.
A morte do Ministério do Trabalho, escondida por uma retórica de que a gestão eficiente da coisa pública se daria pela diminuição do Estado, é, na verdade, resultado do ataque ao trabalho e a uma cultura de defesa de direitos trabalhistas já arraigada na sociedade brasileira há muitas décadas. A despeito do tom de obituário, é importante entender como o conhecimento histórico interpreta a criação do Ministério, seja para se perceber o que se perdeu ou para se exigir seu retorno.
Em 26 de novembro de 1930, quando Getúlio Vargas assinou o Decreto nº 19.433 para a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, apenas 23 dias eram transcorridos desde o início de seu governo. Não por acaso, o primeiro titular da pasta, Lindolfo Collor, o apelidou de “Ministério da Revolução”, dada sua importância estratégica para o projeto político do novo governo.
Implantado após o processo revolucionário de 1930, o governo de Getúlio Vargas colocou como prioridade a resolução da então chamada “questão social” – ou seja, a mediação das relações entre capital e trabalho, bem como a solução para a pobreza crescente devido à exploração predatória de trabalhadores e trabalhadoras. Vargas indicava que haveria acolhida para tais questões nos braços do Estado. Este, portanto, é o principal motivo para a criação do Ministério do Trabalho.
Ao longo das décadas de 1930 e 1940, o Ministério elaborou e decretou medidas protetivas para trabalhadoras e trabalhadores. Por exemplo, em 1932, foram regulamentados os Institutos de Aposentadoria e Pensões; em 1933, foi criada a carteira de trabalho; em 1938, foi instituído o salário mínimo. Essas e outras medidas protetivas foram reunidas, em 1943, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Tais medidas atendiam a demandas antigas do movimento sindical brasileiro e as transformavam em direitos legalmente constituídos. Também no Ministério do Trabalho foram criadas as Comissões Mistas de Conciliação que deram origem à Justiça do Trabalho. Pode-se dizer que o Ministério do Trabalho foi o primeiro e principal instrumento para a implementação do projeto político do governo Vargas.
O projeto modernizador do primeiro governo de Getúlio Vargas, que previa a aceleração da industrialização do país, dependia da diminuição das tensões sociais causadas pela exploração do trabalho, especialmente nos centros urbanos. Para tanto, o governo criou e difundiu um projeto político e ideológico de valorização do trabalho que tinha como objetivo principal a criação da figura do “cidadão-trabalhador”.
Por considerar essencial que a visão negativa do trabalho e a inevitabilidade da pobreza se tornassem noções superadas na sociedade brasileira, Vargas precisou criar uma visão positiva do trabalhador, que seria o motor das mudanças sociais e econômicas que tentava empreender no país – daí associação da ideia de trabalho à de cidadania.
As medidas adotadas por Vargas fizeram com que ele fosse acusado de ter oferecido direitos aos trabalhadores e trabalhadoras de forma impositiva para controlá-los e evitar a convulsão social. Parte do movimento sindical não via com bons olhos as medidas normativas anunciadas no primeiro governo Vargas, entre elas, a vinculação dos sindicatos ao Estado por meio do registro no Ministério do Trabalho e a obrigatoriedade da formação de um sindicato único por categoria profissional.
Esse grupo era formado, sobretudo, por militantes vinculados ao sindicalismo de estratégia revolucionária da Primeira República e, portanto, críticos à interferência do Estado nos sindicatos.
O jurista Evaristo de Morais Filho, em O problema do sindicato único no Brasil, publicado em 1952, foi mais duro na crítica ao afirmar que a estrutura criada por Vargas solapou a autonomia sindical e limitou a ação reivindicatória. De fato, não se pode negar que houve esta intenção. Mas a coisa não é tão simples assim, como mostraram alguns trabalhos historiográficos.
Em A invenção do trabalhismo, Angela de Castro Gomes demonstrou que, embora o governo de Getúlio Vargas tivesse realmente a intenção de controlar diversos aspectos das relações de trabalho no Brasil, ele foi capaz de absorver temas e reinvindicações que estavam na pauta do movimento operário urbano durante a Primeira República (1889-1930) – muitas das quais jamais tinham sido consideradas pelos governos anteriores. Isso, de certa forma, flexibiliza o aspecto impositivo, muitas vezes enfatizado quando se trata do período.
De acordo com Gomes, o governo incorporou tais demandas, transformou-as em agenda política e interagiu diretamente com as camadas mais populares da sociedade. Atraiu trabalhadoras e trabalhadores diretamente para o seio do governo. O trabalhador-cidadão deveria ser sindicalizado e os sindicatos deveriam ser agregados à estrutura do Estado por meio do registro no Ministério do Trabalho.
Essa estrutura corporativista1 de organização social, embora tivesse o claro intento de controlar a ação sindical e a luta por direitos, foi rapidamente apropriada pelos trabalhadores e trabalhadoras, que souberam “jogar com as cartas do jogo” a fim de conquistar e garantir o pleno gozo dos direitos sociais.
O aspecto central de toda essa mudança social proporcionada a partir da criação do Ministério do Trabalho é, de certo, o fortalecimento de uma cultura política de (luta por) direitos que perdurou por diferentes conjunturas. O trabalhismo brasileiro foi a tônica das relações entre Estado e classe trabalhadora. Sua longevidade deveu-se à permanência dos instrumentos que criaram e conformaram tal cultura política na estrutura administrativa do Estado ao longo das décadas subsequentes.
O aperfeiçoamento da cidadania no Brasil se deu, em grande medida, graças ao trabalhador e à trabalhadora que reconheciam seus direitos e sabiam a quais mecanismos recorrer para exigi-los dentro da estrutura do Estado, e graças, também, ao Ministério, que teve a função primária de criar e vindoura de fiscalizar o cumprimento das leis.
Ministério do Trabalho: estrutura de proteção ao trabalho
A criação do Ministério do Trabalho foi a primeira medida promovida pelo Estado brasileiro para criar uma estrutura de proteção ao trabalho. Todas as iniciativas anteriores não tiveram caráter universal. Sua importância, contudo, foi duradoura e permaneceu em outras conjunturas políticas. Criado estrategicamente para controlar e viabilizar o projeto varguista, foi apropriado por trabalhadores e trabalhadoras e transformou-se em um baluarte da luta por direitos sociais.
Ao longo dos anos, assumiu mais funções importantes, especialmente, a coordenação de políticas de geração de emprego e renda e, ainda, a fiscalização das condições de trabalho e o combate ao trabalho análogo à escravidão. É preciso destacar, com pesar, que a extinção do Ministério do Trabalho não foi a única mudança recente. Em 2017, a legislação trabalhista criada pelo Ministério do Trabalho ainda nos anos 1930 e aperfeiçoada no correr das décadas seguintes, foi deformada e vários mecanismos de proteção de trabalhadores e trabalhadoras foram extintos.
Se na década de 1930 o Ministério do Trabalho foi criado em um contexto em que se objetivava criar e fortalecer a figura do trabalhador-cidadão, hoje, com essas letras escritas postumamente, pode-se afirmar que sua extinção é sintomática do ataque à cidadania. Na medida em que se diminui a proteção ao trabalho e se extingue o Ministério que foi seu baluarte, percebe-se que sua ausência será sentida imensamente pela parcela mais desprotegida da nossa sociedade.
Notas
1 O corporativismo é comumente entendido como um sistema de representação de interesses no Estado e foi criado com a finalidade de suprimir as disputas entre as classes sociais. O corporativismo brasileiro é do tipo estatal, ou seja, definido pela subordinação das representações dos grandes interesses sociais à autoridade do Estado. Nesse sentido, entende-se o corporativismo sindical criado nos anos 1930 – que estruturou o sindicalismo brasileiro vinculado ao Ministério do Trabalho – como uma tentativa de controlar a organização autônoma dos trabalhadores. O Estado foi o promotor, criador e, em certa medida, o controlador das associações de interesse, sobretudo dos sindicatos. Sobre o corporativismo s, ver Angela Araújo (1998).
Referências Bibliográficas
ARAUJO, Angela Maria Carneiro. A construção do consentimento: corporativismo e trabalhadores no Brasil nos anos 30. São Paulo, SP: Scritta: FAPESP, 1998.
D’ARAÚJO, Maria Celina. Estado, classe trabalhadora e políticas sociais. In: FERREIRA, J., DELGADO, L. A. N. O Brasil Republicano: livro 2: tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2003.
GOMES, Ângela de Castro (Coord.). Ministério do Trabalho: uma história vivida e contada. Rio de Janeiro: CPDOC, 2007.
GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: FGV, 2005.
PANDOLFI, Dulce Chaves. (Org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1999.
Em 2017, foi pesquisador visitante na KU Leuven, na Bélgica, com recursos do Scholarship Programme for Young Professors and Researchers from Latin American Universities. Foi editor da Revista Mundos do Trabalho (2009-2013), editor-assistente da Revista Brasileira de História (2016-2017) e da revista Estudos Históricos (2016-2018). Atua em pesquisas principalmente nos seguintes temas: história social, associativismo; história do trabalho e trabalhadorxs; catolicismo e trabalho; Belo Horizonte; movimento operário; memória e história oral.
Como citar esse artigo
AMARAL, Deivison. Por que o Ministério do Trabalho foi criado? (Artigo). In: Café História. Publicado em 13 de maio de 2019. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/por-que-ministerio-do-trabalho-foi-criado/.