“Já sei de sua curiosidade por minha pessoa. Veio pensando encontrar-me com uma dinamite na mão.” Foi com essas palavras que, no dia 20 de março de 1953, um jovem jornalista foi recebido pelo candidato do Partido Democrático Cristão (PDS), às vésperas do pleito que consagraria o próximo prefeito da capital paulista. Àquela altura dos acontecimentos, nem o jornalista, nascido na cidade de Teresina, no Piauí, muito menos o candidato, oriundo de Campo Grande, capital do futuro estado do Mato Grosso do Sul, poderiam imaginar que em menos de uma década, estariam trabalhando lado a lado na sede do Poder Executivo em Brasília. O primeiro, na chefia da Secretaria de Imprensa do Palácio do Planalto; o segundo, após uma sequência de vitórias eleitorais espetaculares, no cargo de presidente da República do Brasil.
Alguns anos mais tarde, a história daquele encontro, que reuniu o jornalista Carlos Castello Branco e o jovem deputado Jânio Quadros, seria publicada na edição de O Cruzeiro de 11 de fevereiro de 1961. Quando a edição alcançou as bancas de revistas, Jânio ocupava a presidência da República havia duas semanas; Carlos Castello Branco – por ofício ou por curiosidade pessoal – ainda buscava traçar o perfil daquele político que, em pouco mais de uma década, construíra uma carreira notável: vereador, deputado estadual, prefeito de São Paulo, governador do estado e presidente da República. Desde 1953, o jornalista parecia cultivar o mesmo propósito: entender as razões que moviam aquele homem inquieto que, ainda no final da década de 1940, intrigava políticos, militares e intelectuais brasileiros.
Sobre o primeiro encontro, Carlos Castello Branco escreveu que a ideia da dinamite lhe pareceu excessiva. E acrescentou: “o que eu imaginava encontrar era apenas a figura de um demagogo, meio pitoresco, meio vulgar”. Em 1961, após os 7 meses em que esteve à frente da Secretaria de Imprensa do Palácio do Planalto, o jornalista ainda não era capaz de explicar, afinal de contas, quem era Jânio da Silva Quadros. E, nessa tarefa, ele não estava sozinho.
As contradições da trajetória política do ex-presidente e, sobretudo, sua decisão inusitada de renunciar à presidência da República no dia 25 de agosto de 1961, ajudaram a consolidar a imagem de Jânio como o personagem mais controverso da história republicana nacional. Neste breve texto, pretendo analisar a decisão de Jânio de renunciar ao Palácio do Planalto e a hipótese – que considero equivocada – de que o efeito mais grave do ato da renúncia foi precipitar os acontecimentos que conduziram o país ao golpe de 1964 e à ditadura militar que se estendeu por mais de duas décadas.
Nas linhas das mãos: um rapaz de destino excepcional
À saída do escritório de advocacia de Vicente Rao, ex-ministro da Justiça do governo Vargas, enquanto aguardava pelo elevador, um jovem distraído foi abordado por um terceiro homem.
– Desculpe-me, meu rapaz, mas senti algo de estranho à sua passagem. Gostaria de ler sua mão.
Passados alguns instantes, com os olhos marejados, o homem desabafou:
– Estamos diante de alguém com um destino excepcional. Vejo este moço prefeito, deputado, governador e presidente da República. Será assassinado como Lincoln no segundo período de governo, numa cidade do interior do Brasil.
A história trataria de confirmar (quase todas) as supostas previsões que, naquela tarde, foram reveladas para o jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. A primeira eleição, no entanto, não estava prevista nem mesmo no horizonte de expectativas do vidente. Em 1938, com 21 anos de idade, aquele jovem rapaz, de olhar fixo e cabelos negros, elegeu-se secretário da Associação Acadêmica Álvares de Azevedo da Faculdade de Direito. Era a primeira vitória eleitoral de Jânio da Silva Quadros.
Anos depois, ele seria capaz de atrair multidões às praças públicas, onde conduzia comícios eleitorais, representando um tipo enigmático, dotado de grande carisma. Se, por um lado, trajava roupas amassadas e trazia os cabelos desalinhados, compondo um personagem despojado e popular, por outro, Jânio recorria ao uso formal da língua portuguesa e acentuava, com metáforas complexas e um sotaque carregado, traços muito peculiares, que ajudavam a estabelecer com a população que lhe assistia laços de afeto e de curiosidade.
A chegada de Jânio ao Palácio do Planalto, com uma vitória fenomenal nas eleições de 1960, consagrou a imagem que, ao longo dos últimos 13 anos – desde que decidira se candidatar a uma vaga de vereador na cidade de São Paulo – criava em torno de Jânio o mito da figura implacável contra a corrupção. O jingle “Varre, varre, vassourinha…” foi parte marcante da campanha de teor moralista que via em Jânio Quadros “a certeza de um Brasil moralizado”. A campanha presidencial – talvez a primeira a contar com recursos publicitários extensivos – consolidava uma imagem, construída ao longo dos anos, que o identificava com um “político avesso à política”.
Em diversas oportunidades, ele manifestou desprezo pelos partidos políticos tradicionais. Ainda assim, durante a campanha presidencial de 1960, embora filiado a um minúsculo partido – Partido Democrático Cristão (PDC) – Jânio concorreu por uma coligação que tinha na União Democrática Nacional (UDN) seu principal ponto de apoio. Durante os meses que antecederam o pleito, Jânio percorreu o país, liderando uma campanha nacional, baseada na promessa de moralização da vida pública.
Nessa campanha, valendo-se do símbolo da “vassourinha”, Jânio prometia acabar para sempre com a corrupção no país e chegou a dizer que, se eleito, seu primeiro ato como presidente seria dar voz de prisão a Juscelino Kubitschek, responsável pela “terrível situação financeira do Brasil”. No dia 31 de janeiro de 1961, data da primeira posse presidencial em Brasília – a recém-inaugurada capital – uma trégua entre os dois políticos garantiu a realização da cerimônia. Ainda assim, no discurso de posse, Jânio não poupou críticas ao governo JK, proferindo um discurso violento que daria o tom dos próximos 7 meses de governo: a imprevisibilidade como forma de ação.
O governo Jânio Quadros nascia com a promessa de inaugurar um modelo peculiar de se fazer política no país. As preocupações imediatas da nova administração estiveram concentradas em três eixos principais: os problemas econômicos, o reposicionamento internacional do Brasil – com o lançamento da Política Externa Independente (PEI) – e a “pequena política”, ou seja, a administração conservadora em torno de temas polêmicos, que Jânio atribuía à missão de “saneamento moral da nação”.
Em menos de 7 meses, entretanto, o governo perdeu sua base de apoio e conseguiu desagradar a quase totalidade dos atores políticos: a política externa incomodava o governo dos Estados Unidos, o plano ortodoxo de estabilização financeira agravava a situação da maior parte do povo, as polêmicas posições ideológicas geravam muitos desgastes em diversas frentes de ação e o governo já não conseguia manter uma base sólida de apoio no Congresso Nacional. Com o afastamento de importantes lideranças da UDN, o governo parecia perder a legitimidade política.
No dia 24 de agosto, em rede de rádio e televisão, Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, apresentou uma série de denúncias contra o presidente da República, que estaria tramando um golpe contra a democracia brasileira. Menos de 24 horas depois, Jânio Quadros renunciava à presidência da República. Para um grupo de assessores mais próximos, ele fez uma previsão ao estilo daquela que havia recebido, há quase três décadas, no início de sua vida pública: “Não farei nada por voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo”.
Dessa vez, a história provaria equivocadas as previsões relacionadas ao ex-presidente. A renúncia apresentada ao Congresso Nacional foi imediatamente aceita. Como o vice-presidente, João Goulart, encontrava-se ausente do país, o deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu interinamente o governo. Não houve manifestação popular.
Mas, afinal, por que Jânio renunciou?
O autoritarismo brasileiro e as eleições
Em fevereiro de 1992, Carlos Castello Branco publicou, em sua coluna no Jornal do Brasil, um episódio que merece destaque. De acordo com o jornalista, que durante os 7 meses do governo Jânio Quadros esteve à frente da Secretaria de Imprensa do Palácio do Planalto, o ex-presidente lhe enviara um bilhete contestando as declarações que o ex-assessor havia feito recentemente à imprensa. De acordo com Castello Branco, Jânio dizia “não admitir que seu antigo secretário não soubesse porque renunciara”. Àquela altura dos acontecimentos – e a posterior publicação, em 1996, de “A renúncia de Jânio” demonstrará – Carlos Castello Branco “desconhecia os motivos da renúncia” como quem honra um compromisso pessoal com o registro histórico de eventos nos quais atuou mais como testemunha do que como jornalista. Desfazer as brumas que pairavam sobre a renúncia de Jânio era tarefa para a posteridade, no entendimento de Castello Branco.
A questão sobre a “verdadeira” motivação por trás da renúncia de Jânio Quadros coloca diversas questões relevantes tanto para a história contemporânea do Brasil, como para a História enquanto disciplina acadêmica. Em primeiro lugar, é importante destacar que a “questão da renúncia” ganhou significado especial em decorrência da atuação autoritária, irregular e violenta das Forças Armadas brasileiras que, desde o primeiro momento, agiram para impedir a sucessão presidencial nos termos da Constituição de 1946, vigente naquele momento. Ao coagir a sociedade brasileira “vetando a posse do vice-presidente”, as Forças Armadas reforçaram sua tradição de interferência no jogo democrático por meio da violência.
Nas análises produzidas por parte da historiografia, da ciência política e da imprensa brasileiras, a renúncia assumia o papel de “evento-chave” do processo de desmoronamento do edifício constitucional, que havia sido inaugurado em 1946, com o fim do Estado Novo e a adoção de uma nova constituição. Essas análises contribuem para a naturalização dos mecanismos de coerção e violência que as FFAA dispõem, em função da natureza de suas atividades. Não é, portanto, a renúncia de Jânio que assinala o início do processo de esgarçamento da experiência democrática entre 1946 e 1964; antes, a tradição autoritária e a interferência irregular das Forças Armadas no processo político nacional.
Ao mesmo tempo, a análise histórica dos eventos que cercam a trajetória política de Jânio, bem como dos quase 7 meses em que esteve à frente do Poder Executivo, sugere que o ex-presidente planejava uma espécie de golpe político que lhe permitiria ampliar seus poderes para além das restrições constitucionais. As “forças terríveis” que, na narrativa de Jânio, provocaram sua renúncia, desapareceriam em face de sua eventual volta à Presidência. Com poderes ampliados, Jânio seria capaz de contornar a necessidade de negociação política, por meio, por exemplo, do fechamento do Congresso ou da restrição das atividades do Poder Judiciário, cujos vícios apareciam frequentemente nas críticas que o ex-presidente dirigia aos demais poderes da República. As razões que motivaram a renúncia de Jânio podem ser encontradas, de muitas formas, na cultura autoritária que molda a democracia brasileira. Por todas essas razões, passados 60 anos da renúncia de Jânio Quadros, a questão do ato, suas consequências e seus limites permanecem atuais no Brasil de 2021.
Referências
Carlos Castello Branco. A renúncia de Jânio. Coleção Biblioteca Básica Brasileira, Brasília, Senado Federal, 2000.
Carlos Fico. História do Brasil Contemporâneo – da morte de Vargas aos dias atuais. São Paulo: Contexto, 2015.
Paulo Markun. 1961: O Brasil entre a ditadura e a guerra civil. São Paulo: Benvirá, 2011.
Como citar este artigo
TEIXEIRENSE, Pedro. Por que Jânio Quadros renunciou? 60 anos depois. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/por-que-janio-quadros-renunciou/. Publicado em: 27 set. 2021. ISSN: 2674-5917.