Em 1873, José de Alencar publicava a novela intitulada “A guerra dos mascates”, livro que romanceava os eventos ocorridos na Capitania de Pernambuco em 1710. Muito menos preocupado com o apuro histórico dos fatos narrados, a novela era uma sátira contemporânea à atuação do liberal Visconde do Rio Branco junto ao gabinete de D. Pedro II (1871-1875). Independente da importância do romance na obra de José de Alencar, o livro foi responsável por construir uma memória histórica: os conflitos ocorridos em 1710 envolvendo a elevação do Recife à vila, que eram conhecidos como “Sublevações em Pernambuco”, passaram então a se chamar “Guerra dos mascates”. O nome criado por José de Alencar passou a ser adotado e reproduzido pela historiografia a ponto de que são poucos os que sabem da origem do título que deu nome à revolta.
Não é de hoje que a história influencia a literatura e vice-versa. O caso narrado acima é apenas um dentre vários que poderiam ser elencados. A memória social sobre fatos e até mesmo personagens pode ser completamente moldada pela literatura. Vide a construção social da imagem de Chica da Silva, moldada a partir de romances, como bem coloca Júnia Ferreira Furtado em sua obra Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito.
Então História e Literatura se confundem? Não. Até porque entre elas está a memória, a qual não é invenção, nem verdade. A memória não se compromete nem com a veracidade dos acontecimentos, nem com o apuro poético que uma boa obra literária exige. A memória atende ao foro íntimo de cada um de nós, obliterando aquilo que não nos interessa numa narrativa, ao mesmo tempo que exalta alguns de seus “causos”.
História e Literatura seguem metodologias próprias que as levam a textos de naturezas diferentes. A narrativa historiográfica, por exemplo, possui limites que a Literatura não segue. O historiador está sempre no limite do que a fonte lhe diz. A problematização e interpretação da fonte são partes intrínsecas do trabalho historiográfico, todavia, isso não significa que seja permitido ao historiador falsear a interpretação da fonte expressando dados contrários às informações contidas no documento.
Ao mesmo tempo, Literatura e História unem-se espontaneamente na formação da memória social. Assim como nem todo relato histórico consegue ultrapassar o círculo de seus pares, tornando-se parte do debate social, nem toda literatura consegue alcançar impacto social. Contudo, vale ressaltar que é a possibilidade da narrativa ficcional se tornar parte da memória social que conduz o romance à coletânea de fontes documentais pelas quais os historiadores podem caminhar.
Se, por vezes, essa construção memorialista acontece de forma involuntária, ou seja, através de narrativas que não se colocam dentro do espectro da História, quando um romance é denominado ficção histórica, há explícita vontade de ultrapassar a fruição literária, pois, na base daquele romance, existe uma “verdade” que era monopolizada pelos historiadores até então.
A Literatura alcança um público mais largo e diverso, pois, ao contrário da historiografia, ela não é escrita para seus pares. O romance é pensado para uma audiência mais ampla. Por isso, é intrigante que poucos historiadores tentem produzir ficções históricas. Faz-se necessário conjecturar sobre essa suposta falta de interesse.
A linguagem literária exige um esforço poético que nossa formação como historiadores não nos proporciona. Então, ou você tem “aptidão”, ou estudos de escrita criativa, ou você simplesmente não consegue tornar aquela escrita palatável para o público comum. Como expõe Rob Kitchin em seu artigo Writing fiction as scholarly work, enquanto a escrita acadêmica é seca e impessoal (ou na terceira pessoa do plural), a literatura é mais “acessível”:
“Inerentemente, o ato de contar histórias é um registro mais engajado e acessível de comunicação de ideias além de prover uma visão crítica de reflexão da sociedade. Contos, romances, quadrinhos, documentários, biografias, dramas televisivos, animações e filmes fornecem meios comunicativos que podem ser mais provocativos e divertidos do que os textos acadêmicos. Eles podem fornecer diferentes pontos de vista e explorar valores, conflitos e consequências, usando vários mecanismos narrativos como metáfora, alegorias e analogias.”[1]
Uma das exceções, e talvez a mais emblemática atualmente, são as obras da historiadora Mary del Priore, que misturam escrita literária e historiográfica. A historiadora utiliza-se de um estilo peculiar que tenta mesclar as características de uma narrativa historiográfica com algumas ferramentas da ficção, como faz no seu livro a Condessa de Barral, a paixão do imperador, no qual reproduz como falas das personagens trechos de cartas trocadas entre o imperador D. Pedro II e sua amante, a Condessa de Barral.
“Hoje mando um abraço para ti, pequenina”
https://www.editoraescaleras.com.br/produto/575696/hoje-mando-um-abraco-para-ti-pequenina-de-andre-cabral-honorClaro que essa ausência de historiadores na produção de ficções históricas não é resultado de apenas um fator, mas sim de um conjunto de situações que vão desde o interesse pessoal a questões estruturais. A falta de incentivo à escrita “criativa” na educação brasileira, o tempo e cansaço que a docência impõe – a esmagadora maioria de nós é professor ou professora com altas cargas de aula e baixos salários – e a falta de incentivo acadêmico para produzir esse tipo de material – afinal, os critérios de excelência da CAPES desqualificam completamente essa produção – são apenas alguns dos elementos que podem ser levantados. Ao publicar um romance histórico Hoje mando um abraço para ti, pequenina, pela Escaleras – uma pequena editora que tenta fugir do padrão homem/branco/hétero/paulista – me defrontei/defronto com dificuldades tão desafiadoras quanto encarar a própria escrita literária.
Premiado com uma bolsa promovida pela Biblioteca Nacional e pelo extinto Ministério da Cultura no ano de 2014, o livro é fruto de uma vivência de anos de pesquisas históricas sobre a Paraíba do século XVIII. A triste jornada do capitão-mor José Jerônimo de Castro e Melo, que passa 33 anos à frente da Capitania da Paraíba, odiando cada segundo de sua presença no local, tem sido objeto de encanto para pesquisadores que se debruçam sobre aquele período. Sempre tangenciando e nunca adentrando fundo na sua figura, os trabalhos históricos registram o capitão, mas também se abstém de percebê-lo nas suas contradições e complexidade.
A ficção histórica, em suas diversas formas de expressão, é uma boa ferramenta para enfrentar esses desafios e popularizar a História. Percebi que a complexa relação de Jerônimo com a Paraíba era a trama ideal para a construção de uma história que mesclasse fatos, lugares históricos da antiga Cidade da Paraíba e o tecido social que envolvia personagens do século XVII. Escolhi uma narrativa que descentraliza Jerônimo, o qual toma corpo de forma testemunhal por meio do que chamo de “personagens inventadas factualizadas” ou “personagens reais ficcionadas”, destacando-se os espaços que compõe a cidade. Assim, o livro fala para leitores que nunca foram à Paraíba, mas também traz aos moradores de João Pessoa um senso de pertencimento e identificação com o espaço em que vivem, buscando trazer a historicidade desses locais e sua importância na própria constituição da identidade do leitor paraibano. Como mais uma vez afirma Rob Kithin em seu artigo:
“Numa era de pós-verdade, na qual a academia está lutando para convencer políticos, mídia e público a se engajarem chamando atenção para nosso trabalho, ficção e outras formas criativas de escrita acadêmica possuem o potencial de abrir novos caminhos para alcançar leitores para além dos acadêmicos (e prover textos pedagogicamente mais acessíveis para os estudantes).”[2]
Para além de todas as questões já aventadas, o difícil e complicado mercado editorial torna-se uma barreira a mais. Uma coisa é publicar um livro entre seus pares, que você sabe que haverá uma circulação restrita, outra é publicar tentando encontrar um público externo mais amplo e diverso. Não basta ter uma boa escrita, um bom enredo, um apuro histórico, sem apoio à circularidade da obra ela continuará restrita a um público pequeno. Esse é o grande desafio, não apenas dos romances históricos escritos pelos historiadores, mas do sucesso da História pública em si.
Notas
[1] Original: “Storytelling is inherently a more engaging and accessible register for communicating ideas and providing a critical lens to reflect society. Short stories, novels, comics, documentaries, biographies, television dramas, animation and movies provide media that can be more provocative and playful than academic accounts. They can set out different views and explore values, conflict and consequences, using various forms of narrative devices, such as metaphor, allegories and analogies”.
[2] Original: “In a post-truth age, where the academy is struggling to convince politicians, media and the public to engage with and heed its work, fiction and more creative forms of academic writing have the potential to open up new avenues to reach readers beyond academia (and provide more accessible pedagogical texts for students).”
Referências bibliográficas
FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
HONOR, André Cabral. Hoje mando um abraço para ti, pequenina. João Pessoa: Salvador: Editora Escaleras, 2020.
KITCHON, Rob. Writing fiction as scholarly work. Acesso em: 22 Jan. 2021.
PRIORE, Mary del. Condessa de Barral, a paixão do imperador. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
Como citar este artigo
HONOR, André Cabral. Podemos aprender História com romances históricos? Uma reflexão de um historiador romancista (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/podemos-aprender-historia-com-romances -historicos. Publicado em: 15 fev. 2021. ISSN: 2674-5917.
Prezados Bruno e André, que bom ler um artigo em que iniciativas como essa são possíveis. Já passou da hora da nossa disciplina ganhar o espaço das ruas, plataformas digitais, jornalismo, etc….outras formas de divulgação de pesquisa séria, outras linguagens…que venham outros romances e afins…
Valeu, Rafael!
Caro Rafael. Concordo demais com tua colocação! Um grande abraço.
Achei interessante a abordagem do autor André Cabral. Sim, também concordo sobre a possibilidade de aprendermos fatos históricos por meio da ficção histórica. De fato, existem poucos estudos que dão conta da motivação do público leitor pelos romances históricos. Uma análise receptiva seria de grande valia! Já li alguns autores que defendem várias teorias acerca do assunto, porém ainda falta uma discussão melhor aprofundada. Para isso, sem querer me promover, coloco em debate o meu artigo: OLIVEIRA, Cristiano Mello de. Artefatos de época e o Novo Romance Histórico brasileiro. Uma possível mudança cultural do público leitor. Uniletras, Ponta Grossa, v. 40, n. 2, p. 199-221, jul/dez. 2018. Disponível em: . Boa leitura aos interessados!
PS: Sobre a personagem Chica da Silva, li o romance histórico, do mineiro Paulo Amador. Por sinal, envolve muita pesquisa e dramaticidade acerca dos bastidores da personagem. Fiquei curioso para ler o livro da historiadora Júnia Furtado.
Discussão importante e oportuna. Creio na necessidade de arejar os textos acadêmicos e propor novas possibilidades de escrita. Dessa forma poderemos atingir um público maior. Abcs
Muito interessante sua matéria, me fez pensar em possibilidades dentro da escrita histórica que até esse exato momento não tinha parado para refletir! Muito obrigado.
Estou curiosa. Quero ler.
Olá Maria, espero que goste da leitura! Abraço
Mary del Priore é ótima realmente. Mas é lamentável você não citar Miguel M. Abrahão, um dos melhores do gênero. O romance “A Escola, onde está um estão todos” – ed. Vieira e Lent, é um clássico sobre a Era Vargas.
Olá Sil, eu confesso que não conheço esse romance. Mas já vou procurar! Agradeço demais a dica.
Olá! Achei muito relevante e importante seu artigo André. De fato temos uma grande falta quando falamos de métodos mais abrangentes e por vezes menos tradicinais de história. Eu fiz meu Mestrado em Patrimonios Mundiais presentes em jogos digitais e o tipo de influencia que eles podem exercer. Apesar de não ter focado em romances hitoricos, eu cheguei a pesquisar sobre eles. Gostaria de poder entrar em contato contigo para debater e trocar algumas ideias se você estiver disposto.
De qualquer forma, muito obrigada pelo artigo e as recomendaçoes de leitura, irei atrás!
Olá Renata, será um prazer ter um contato contigo. Se puderes me envia rum e-mail para conversarmos melhor: [email protected]
Forte abraço
Com a História não se brinca. Tem de se fazer uma investigação científica para se relatar como aquilo que queremos examinar se passou. Claro que se pode contar “estórias”, romances, acontecimentos etc etc como quisermos. Para fazer História metodicamente pode ir para um Universidade. Para fazer uma “estória” tem apenas de ter imaginação.