Entre 1618 e 1648, a Europa conheceu uma das guerras mais devastadoras de sua História: a “Guerra dos Trinta Anos”. No início, o conflito era fundamentalmente religioso (disputas envolvendo católicos e protestantes) e concentrou-se nas diversas unidades políticas germânicas. Com o tempo, no entanto, os combates disseminaram-se pelo continente e logo passaram a levar em conta outros interesses e causas, como a expansão de territórios e a busca por hegemonia política na região.
Tropas treinadas, uso da metalurgia, academias militares, amplo uso de exércitos mercenários e novas armas, tais como canhões móveis e mosquetões. A Guerra dos Trinta Anos foi, por conta disso tudo, uma guerra com um custo humano e material altíssimo. Os cálculos mais ponderados, sublinha o historiador Henrique Carneiro, apontam para quatro milhões de mortos no conflito. O número que pode parecer discreto se comparado com os mais de 45 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial, mas tendo a Europa do século XVII uma população de cerca de 20 milhões de pessoas, a Guerra dos Trinta anos foi proporcionalmente a guerra mais mortal do continente – 1/5 dos europeus teriam perecido nela.
Em janeiro de 1648, após três fatigantes anos de conversas a fim de viabilizar uma conferência de paz e após um longo lastro de morte, destruição e esgotamento econômico, centenas de negociadores das mais de 100 unidades políticas envolvidas na Guerra dos Trinta Anos se reuniram nas cidades vestfalianas1 de Osnabrück e Münster (atual Alemanha) para selar um acordo de paz.2 Os acordos ali firmados (11 no total) consumiram voluptuosos recursos financeiros, levaram dez meses para serem todos costurados, mas a guerra foi, enfim, foi encerrada.
Os chamados “Tratados de Vestfália” (também conhecidos como “Tratados de Münster e Osnabrück” ou “Paz de Vestfália”), no entanto, foram importantes não só porque colocaram um ponto final na guerra, mas porque a partir deles também se forjou um novo sistema internacional para a Europa. O objetivo deste artigo é discutir que sistema foi este e por que ele é geralmente tomado como um marco no campo de estudo das Relações Internacionais.
Um sistema internacional baseado no “equilíbrio de poder”
De acordo com Raymond Aron, um sistema internacional é “conjunto constituído pelas unidades políticas que mantêm relações regulares entre si e que são suscetíveis de entrar em uma guerra geral”. Com isso, o historiador se refere a uma espécie de ordenação racional que busca ditar as dinâmicas no pano internacional, gerenciar conflitos, negociar termos de paz e discutir questões que interessam aos seus membros além de constituir um ecossistema político que, embora diverso, compartilha de determinados valores e cultura.
É justamente um sistema internacional nos temos descritos por Aron que vai se forjar no âmbito das conferências realizadas em Münster e Osnabrück. Este sistema substitui o anterior – o medieval ou da cristandade – no qual a moral religiosa era tomada como norte para o comportamento dos Estados e no qual o Império dos Habsburgos e o Papa – os principais centros de poder na Europa na época – representavam a fonte de toda (ou quase toda) autoridade. Mas qual era o propósito e as características deste novo sistema internacional?
Para fins didáticos, podemos identificar três grandes características norteadoras. Em primeiro lugar, ele é um sistema fundado em preceitos fundamentalmente seculares. A religião continuaria sendo importante na vida social e política, no que pese a força que teriam nas décadas seguintes as monarquias absolutistas com base no “direito divino”, porém não seria mais a confissão religiosa de um Estado aquilo que ordenaria os seus movimentos e as suas decisões. Estes seriam guiados pelos interesses do Estado, principalmente os geopolíticos.3 É neste momento que se emerge vitoriosa a “razão de Estado” ou “interesse nacional” (do francês, Raison d’état), conceito desenvolvido por Nicolau Maquiavel (1469-1527) e consagrado pelo Cardeal Richelieu (1585-1642), que justifica o uso de qualquer meio, até mesmo a violência, para assegurar o bem-estar e a sobrevivência do Estado, cujos interesses estariam acima de qualquer ideologia, linha de pensamento ou religião.
Em segundo lugar, os Tratados de Vestfália, nascidos de uma guerra extremamente extenuante, tinham em seu horizonte evitar novos conflitos daquela magnitude. Para isso, aquele novo sistema internacional, ainda que não houvesse tornado a guerra ilegal, estabeleceu um conjunto de procedimentos que visava evitá-la a todo custo. Entre outras coisas, ficou acordado o recurso da diplomacia ao invés da guerra como solução para conflitos e a aclamação das noções de soberania do Estado (em negócios internos e externos) no lugar do princípio de intervenção. E como as nações representadas nas conferências de Münster e Osnabrück preocupavam-se com a emergência futura de uma potência hegemônica, isto é, uma potência que tivesse muito mais força que os demais entes políticos da região (que iam desde repúblicas até monarquias, passando por ducados e principados), consagrou-se a igualdade dos Estados soberanos, mesmo que estes não fossem semelhantes militarmente ou de sistemas políticos. Todos teriam que, dali em diante, respeitar os territórios uns dos outros, assim como seus anseios, desde que, claro, não se colocasse outro território em risco iminente.4 Os Tratados de Vestfália, deste modo, consagraram a ideia de “múltiplas independências” no continente europeu, além de refletir a necessidade de um sistema de “balança de poder”.
O livro do historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília, é destaque na categoria “historiografia” e “ensino e estudo”da Amazon Brasil. Livro disponível para leitura no computador, no celular, no tablet ou Kindle. Mais de 60 avaliações positivas de leitores.
Todas essas mudanças são consideradas por boa parte da literatura especializada como um divisor de águas na constituição do mundo moderno. Não fortuitamente, os Tratados de Vestfália são considerados o primeiro grande fórum internacional moderno das nações. Segundo resume o historiador Amado Luiz Cervo, “a filosofia política de Vestfália fez avançar a sociedade internacional europeia em termos conceituais: a nova ordem era fruto da negociação, legitimava uma sociedade de Estados soberanos, enaltecia a associação e a aliança, mas não era ingênua a ponto de ignorar a existência de hierarquia e hegemonia entre Estados e a mobilidade da balança de poder”.
Em terceiro lugar, finalmente, os Tratados de Vestfália transformaram o Direito Internacional Público (DIP), reflexo de Estados que se empenhavam em seguir a partir de agora pressupostos seculares e não mais religiosos – parte do arcabouço desta doutrina fora desenvolvida ainda durante a guerra por nomes como o do acadêmico Hugo de Groot (1583-1645), famoso jurista dos Países Baixos, precursor de trabalhos que em breve, por exemplo, ajudariam a codificar as leis internacionais, tanto em tempos de guerra quanto em tempos de paz. Como explica Valerio de Oliveira Mazzuoli, muitos autores consideram que antes da Paz de Vestfália não existia um Direito Internacional propriamente dito, que codificasse, por exemplo, leis pertinentes à navegação, à formação de forças militares permanentes ou ainda à instalação de embaixadas. Também não existia uma sociedade internacional com poder político para sujeitar os Estados ao cumprimento de suas regras de conduta. Neste sentido, Henrique Carneiro resume a importância dos 11 tratados firmados em 1648 afirmando que: “toda a política moderna e contemporânea, baseada no reconhecimento da legitimidade dos Estados e na constituição de um conjunto político de nações que se reconhecem como parte de um sistema em que rege um direito internacional, deriva do modelo criado e formalizado a partir da Paz de Vestfália”.
No século XVII, o modelo vestfaliano funcionou relativamente bem. Mas, na primeira metade do século XVIII, encontrou problemas para conter França e Prússia: a primeira porque sua força cresceu demais e perigava tornar-se uma força hegemônica; a segunda porque cresceu de tamanho e queria agora conquistar o seu lugar entre as grandes potências. Já no final da segunda metade do século XVIII, a Revolução Francesa e o Império Napoleônico o questionavam efetivamente, sendo necessário, ao fim das Guerras Napoleônicas (1803-1815), uma nova conferência europeia para a reajustar a “balança de poder” no continente, conferência esta que ficou conhecida como Congresso de Viena.
Considerações finais
Ao consagrar as noções de “soberania”, de “Estado-nação”, de “razão de estado”, de “diplomacia” e de “equilíbrio de poder”, entre outras tantas, os Tratados de Vestfália se tornaram um objeto de estudos bastante importante no campo das Relações Internacionais e do Direito Internacional Público, embora esses tratados não constituam um documento diplomático formal único e haja debates relevantes sobre sua originalidade.
Há estudos recentes, como o do internacionalista (nome dado aos pesquisadores de Relações Internacionais) Diego Santos Vieira de Jesus, que questionam a profundidade das inovações da “Paz de Vestfália” e que problematizam a existência de brechas nos princípios de autonomia e de territorialidade do modelo vestfaliano de relações internacionais, destacando suas dificuldades em se chegar à paz e à estabilidade. De acordo com Jesus, “o que Vestfália fez, em certa medida, foi consagrar uma ordem cooperativa legal de entidades autônomas não-soberanas, o que indica que a soberania não é o único conceito ou forma possível de interpretar a interação entre atores autônomos”. O pesquisador fala em um “mito da Paz de Vestfália na história das relações internacionais modernas”.
Ainda assim, as conferências realizadas nas cidades vestfalianas tornaram-se objetos de reflexão consagrados nos campos da História, da Ciência Política, das Relações Internacionais e do Direito, além de ponto de referência para os estudos sobre os Estados, consagrando conceitos e vocabulários. Conforme explica Henry Kissinger, “a principal característica desse sistema, e o motivo de ele ter se espalhado pelo mundo, residia no fato de que suas disposições tinham a ver mais com procedimentos do que com substância”. E Kissinger complementa seu pensamento chamando a nossa atenção para o que os Tratados de Vestfália representavam em sua própria época: “caso um estado aceitasse esses requisitos básicos, poderia ser reconhecido como um cidadão internacional capaz de manter sua própria cultura, política, religião e práticas internas, protegido pelo sistema internacional contra intervenções externas”.
Notas
1 Vestfália é uma região alemão. Vale destacar na nota que os limites políticos e geográficos da Europa na época não eram semelhantes aos de hoje e nem mesmo seguiam a mesma lógica e padrão.
2 As potências católicas se reuniram na cidade católica de Münster, enquanto a 50 quilômetros dali, na cidade de Osnabrück, reuniram-se as potências protestantes. Segundo Henry Kissinger, nenhuma das duas cidades estava preparada para um encontro com aquela dimensão. “O enviado suíço ficou alojado no andar de cima da oficina de um tecelão, num quarto que fedia a salsicha e óleo de peixe, enquanto a delegação da Baviera obteve 18 camas para seus 29 integrantes.” Ver referência ao final do artigo..
3 Além disso, ficou acordado que as minorias religiosas poderiam praticar a sua fé sem temer repressões ou conversões forçadas – um marco, ainda que a tolerância religiosa muitas vezes tenha seguido no sentido oposto em diversos tempos e lugares na Europa e fora dela, desde então e até hoje.
4 O desfecho da Guerra dos Trinta Anos impediu por si só a formação de um grande bloco de poder na Europa, representado pela Casa Habsburgos e também pelo Sacro Império Romano Germânico, constituído em 962, e completamente enfraquecido após 1648. A Espanha – grande potência nos séculos XV e XVI também iniciou uma rápida decadência após a derrota na Guerra dos Trinta Anos.
Referências bibliográficas
ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. UNB/IPRI, 2002.
CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. História das guerras, v. 3, p. 163-187, 2006.
CERVO, Amado Luiz. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: SARAIVA, José Flavio Sombra. História das Relações Internacionais Contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2007.
JESUS, Diego Santos Vieira de. O baile do monstro: o mito da paz de vestfália na história das relações internacionais modernas. História (São Paulo), v. 29, n. 2, 2010.
Como citar este artigo
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. A “Paz de Vestfália”: marco das relações internacionais (artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/paz-de-vestfalia-marco . Publicado em: 29 jan. 2018. Acesso: [informar data].