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Quando as pandemias afetam a nossa percepção do tempo histórico

Em uma parede na região metropolitana do Recife, a pergunta: "e depois do vírus?"

Em uma parede na região metropolitana do Recife, a pergunta: "e depois do vírus?". Foto: Cibele Barbosa

As epidemias de larga escala que se acumularam ao longo da história abalaram a “ordem dos tempos”. Dito de outro modo, balançaram a relação que os indivíduos estabeleceram com a experiência do tempo.

Durante a Grande Peste do século XIV, o escritor Giovanni Boccaccio descrevia a chegada da peste em Florença sob um cenário ambíguo: enquanto algumas pessoas buscavam se isolar da doença, outras bebiam, riam e perdiam toda noção de limite “como se não houvesse amanhã”.

Para aqueles homens e mulheres medievais, não havia muito o que se esperar do futuro. Literalmente, o porvir a Deus pertencia, e ao humano pouca margem era oferecida para mudar os rumos do destino.

O evento da Grande Peste foi decisivo para mudanças que prepararam o terreno para o Renascimento e para uma nova compreensão da existência pautada no deslocamento do teocentrismo para o antropocentrismo.[1] Deste ponto em diante, como bem ilustra o historiador alemão Reinhart Koselleck, “tanto as especulações sobre o futuro, agora livres da religião cristã, quanto as previsões resultantes do cálculo político chancelavam a aparição do filósofo profeta do século XVIII”.

Pensar as diferentes definições e modos de viver o tempo é o que faz também o historiador francês François Hartog. Da mesma forma que Koselleck, Hartog destaca a construção social dos horizontes de expectativa elaborados em períodos distintos da História do Ocidente. Se na Antiguidade o passado era o exemplo ( a chamada historia magistra vitae, ou, em português, “a história mestra da vida”), na Modernidade o futuro se descortinava como um cenário promissor em razão dos avanços proporcionados pela evolução científica e técnica. O passado era ruína e o futuro uma aposta.

Com a pandemia de Gripe Espanhola no século XX, a Crise de 1929 e as duas Guerras Mundiais, um novo regime de historicidade se delineia a partir de duas certezas socialmente vividas: o futuro se tornava mais uma ameaça do que promessa, e esperá-lo não era mais uma opção; era preciso antecipá-lo. Essa noção profilática acerca do futuro é exemplificada por ações patrimoniais orquestradas pela Unesco, ao incluir meio ambiente e expressões culturais como tipos de patrimônios. A noção de salvaguarda foi ampliada sob a premissa de que não apenas monumentos materiais, mas também bens simbólicos e ambientais eram passíveis de destruição em razão dos avanços tecnológicos e do recrudescimento de interesses macroeconômicos.

A figura mítica de Prometeu estava assim “desacorrentado”: a técnica não seria necessariamente a nossa salvação; poderia ser a nossa sentença, a depender das decisões a serem tomadas a partir do presente. Tal cenário levou Hans Jonas, no seu livro “O princípio responsabilidade”, a pensar em uma ética voltada para as sociedades futuras em meio à civilização tecnológica. Em sua obra, Jonas estabelece como condição para se mobilizar uma ética voltada para o futuro: “consultar nossos medos antes do nosso desejo.” Fazer projeções pautadas na ciência e precaver indivíduos, culturas e ambientes dos perigos à existência constituem-se em princípio ético e dever moral. Diferentes instituições supranacionais, a exemplo da ONU, encarnaram esse pressuposto. A justificativa para a criação da Unesco, por exemplo, vinculada às Nações Unidas, consistia em promover ações educativas para que destruições e opressões operadas no passado não se projetassem no futuro.

O futuro que projetamos

Alguns aspectos dessas obras são reativados diante do cenário no qual estamos mergulhados. A pandemia de coronavírus despertou nossos medos e o presente é futuro. Já vivemos as expectativas do porvir e não é por azar que somos bombardeados com uma série de textos de teóricos que são incitados a pensar, ou melhor, imaginar essa “nova sociedade” pós-pandêmica.

Os modos como as projeções futuras são pensadas revelam-se como chaves para uma melhor compreensão dos comportamentos sociais que estamos assistindo no presente. A preocupação profilática com o porvir, pauta das organizações mundiais seja no âmbito da saúde, da justiça ou da educação, assim como tema das ações de políticas públicas de salvaguarda, nasce de um compromisso, de um pacto social, de um investimento social na existência das sociedades futuras. Com a sensação de que o nosso tempo é mais acelerado do que em outras épocas,  não é preciso pensar em um futuro distante, pois os impactos chegam em um curto prazo. No caso da pandemia do coronavírus, em alguns dias. Mas esse futuro que chegou com celeridade e estupor poderia, em certa medida, ter sido atenuado ou mesmo evitado seja por ações de proteção ambiental ou mesmo por medidas de planejamento sanitário antecipadas.

Estátua em Milwaukee, WI, EUA. Foto: Tom Barret, Unpleash.

Perguntamos aos velhos, aos sábios, aos loucos, aos cientistas e aos filósofos o que esperar. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e o analista de sistemas Edward Snowden, para não dizer outros tantos, esforçam-se, dentro de seus aparatos teóricos e experiências vivenciais, em desenhar cenários pós-covid: estes, em particular, desenham futuros onde nossas privacidades estariam mais cerceadas face a governos que sacrificariam nossas liberdades individuais em proveito de um novo panóptico (termo utilizado para designar uma penitenciária ideal), cujo controle via dados e drones aguçaria renovadas e reforçadas formas de biopoder e psicopoder.

Sem adentrarmos no mérito das projeções dos autores, para os historiadores que se interessam pelo presente, já o enquadrando como História, uma chave de compreensão interessante é observarmos como diferentes atores sociais se comportam em relação aos regimes de tempo, como desenham seus futuros e reciclam seus passados. Como lidam com as projeções científicas, qual o valor que dão aos prognósticos das ciências naturais e sociais. Talvez as ideias que construímos sobre o futuro sejam o nosso melhor espelho do presente, termômetro dos nossos afetos e disposições políticas.

Notas

[1] Teocentrismo é a doutrina ou crença que considera o divino ou a divindade no centro de todas as coisas. O antropocentrismo, por sua vez, considera a humanidade no centro de todas as coisas.

Referências Bibliográficas

BOCCACCIO, Giovanni. O Decamerão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2018.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica,2014.

JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: ED. PUC-RIO,2007.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio,2006.

Como citar este artigo

BARBOSA, Cibele. Quando as pandemias afetam a nossa percepção do tempo histórico. In: Café História – história feita com cliques. Publicado em 11 mai. 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/pandemias-e-experiencias-de-tempo-historico/. ISSN: 2674-59.

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