Em novembro de 2024, o OHS realizou o seminário “Covid Longa no Brasil: invisibilidade e cuidado de uma síndrome pós-viral”. Mais do que debater as consequências da pandemia, o evento reuniu ativistas da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico), especialistas em saúde pública, médicos de família, cientistas sociais, pesquisadores da Fiocruz e de diversas universidades federais, com um objetivo central: compreender os desafios científicos, clínicos, sociais e políticos envolvidos no reconhecimento, diagnóstico e manejo da Covid Longa no Brasil.
“Desde 2021, quando o termo Covid Longa foi cunhado, diferentes sugestões de termos foram elaboradas, como síndrome pós-Covid e condições pós-Covid. A definição de nomes atribui sentido a um conjunto muito amplo de sintomas e agravos que foram ampliados após o evento epidêmico”, explica o historiador, coordenador do seminário.
Nesta entrevista, Alves analisa as consequências da invisibilidade da nova doença, que acomete milhões de pessoas no Brasil e no mundo, e o papel dos historiadores nesse processo de reconhecimento da nova síndrome.
“A pandemia continua não somente como trauma e memória, mas também como um processo contínuo. Discutir o cuidado e a invisibilidade da Covid Longa no Brasil é, também, tensionar narrativas sobre o fim da epidemia, mobilizar ações de memória e contra o esquecimento de um processo que teve impactos tão profundos e graves em âmbito coletivo e individual. A rigor, é demarcar que a pandemia de Covid-19 não acabou”.
O evento reuniu profissionais de diversos campos sociais que estão pesquisando as consequências da pandemia de Covid-19. O que significa o termo?
Covid Longa foi um termo cunhado por grupos de pacientes sofrendo com uma variedade de sintomas que surgiram após episódios de Covid-19 aguda, ou seja, quando os sintomas se manifestam rapidamente, podendo ser mais graves ou mais leves, principalmente associados a fadiga, dor crônica e confusões mentais de diferentes ordens, posteriormente nomeadas de brain fog, névoa cerebral, em inglês.
Ainda em 2020, nos primeiros meses da pandemia, começaram as discussões acerca das possíveis sequelas da Covid-19, principalmente relacionadas aos sistemas respiratório e circulatório. Nesse âmbito, formularam-se controvérsias científicas referentes à natureza da Covid Longa, se seria uma nova doença, ou um conjunto de sequelas associadas à infecção aguda.
Essa discussão possui diferentes implicações, da produção do conhecimento à experiência das pessoas doentes. Envolve elementos científicos, políticos, sociais e culturais complexos.
Por isso é preciso nomeá-la?
Sim. A definição do conjunto de sintomas de uma nova doença traz maior reconhecimento social do sofrimento das pessoas, possibilita a formalização de demandas legais, como licenças e aposentadorias, permite a organização de linhas de cuidado específicas no sistema de saúde e estabelece categorias para a produção de dados e indicadores que permitem melhor compreensão do impacto dessa doença, entre outros aspectos.
Nomear uma doença é reconhecer sua existência e, no limite, o adoecimento das pessoas. O historiador estadunidense Charles Rosenberg afirma, no artigo Disease in History: Frames and Framers, que as doenças não existem até que concordemos que elas existam – percebendo-as, nomeando-as e respondendo a elas.
Nessa mesma lógica, é importante perceber o ato de nomear como algo além de uma mera classificação, mas também como uma hermenêutica, uma atribuição de sentido ao mundo.
No caso da Covid Longa, a definição de nomes atribui sentido a um conjunto muito amplo de sintomas e agravos que foram ampliados após o evento epidêmico. Há, entretanto, dois problemas fundamentais quanto à terminologia para essa nova entidade.
Quais são eles?
O primeiro diz respeito ao chamado nexo causal, ou seja, à conexão entre esses diversos sintomas e a infecção por Covid-19. O estabelecimento desse nexo é difícil por alguns motivos em diferentes cenários, por exemplo, como saber se a pessoa foi infectada pelo coronavírus sem testagem à época, se o sintoma foi agravado pela infecção ou se surgiu após a ocorrência da Covid-19.
É o caso de pessoas hipertensas que tiveram piora em sua condição após um quadro de Covid-19. Essa piora foi ocasionada pela Covid-19, ou está relacionada a outro processo patológico, ou fisiológico?
Os primeiros estudos sobre a Covid Longa acompanharam grupos muito delimitados, como pacientes hospitalizados por conta da Covid-19 aguda ou pessoas acompanhadas em instituições que realizaram testagem regular para Covid-19, a exemplo do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz, no Rio de Janeiro.
Esses cenários são importantes para entender os diferentes aspectos da doença, mas dificilmente passam uma imagem precisa do comportamento da Covid Longa na população de modo geral.
O segundo problema envolve os critérios de nomeação. Desde 2021, quando o termo Covid Longa foi cunhado, diferentes sugestões de termos foram elaboradas, como síndrome pós-Covid e condições pós-Covid. A variedade de nomes é resultado de dissensos quanto aos critérios de inclusão e exclusão de sintomas, de definição da temporalidade da doença, ou seja, em quantas semanas os sintomas se manifestam ou até quanto tempo eles duram.
Parece difícil definir o termo e mesmo a doença. Quais as consequências disso, na prática?
Em termos práticos, a falta de consenso quanto à nomeação e a instabilidade na definição da doença resultam em uma elevada invisibilidade da doença e das pessoas doentes, do sofrimento de milhões que lidam com os sintomas associados ao pós-Covid.
Soma-se a isso o caráter crônico da doença, o que significa uma convivência longa com os sintomas, alterações na vida cotidiana, nas relações sociais, na percepção de si. São muitos problemas.
O Brasil registrou 10% das mortes no mundo, e mais de 700 mil pessoas vieram a óbito. Para além do aspecto biológico da doença, seus sintomas, tratamentos e medidas para reabilitação de pacientes, há a dimensão social, relativa ao impacto na renda das famílias, às crenças, valores e experiências individuais da enfermidade, e também a dimensão política, se consideramos que houve muita desinformação sobre a doença e as vacinas disponíveis. Qual o papel dos historiadores nesse processo? Como o OHS pode contribuir para esse debate?
A História foi muito mobilizada nos esforços de compreensão da pandemia de Covid-19, tanto para comparar com epidemias passadas como em discussões sobre o fim do evento epidêmico.
Historiadoras e historiadores também foram mobilizados para fornecer lições para o presente sobre como lidar com a Covid-19 baseadas nas experiências pretéritas. Embora esses esforços sejam relevantes e façam parte do arcabouço intelectual e profissional da disciplina histórica, acredito que existem outras contribuições possíveis a partir de nossas análises.
No Observatório História e Saúde, uma estação de trabalho do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, trabalhamos com uma noção de que a História faz parte de um conjunto de disciplinas que compõe o campo da Saúde Coletiva. Isso significa, na prática, pensar no papel da História a partir de quatro elementos.
Primeiro, a história da saúde nos permite ter uma noção contextual dos problemas da população brasileira e da estrutura sanitária do país. Ambos são resultados de contingências históricas específicas, devendo, portanto, ser compreendidos à luz das demandas e dos constrangimentos de toda ordem.
Em segundo lugar, a história da saúde nos fornece elementos para fazer uma análise crítica que discuta as práticas dos profissionais de saúde não somente como atos técnicos, mas como ações orientadas por visões políticas, ideológicas, culturais, mas também pessoais e morais.

Em terceiro, a história da saúde nos dá a dimensão temporal das políticas de saúde que falam sobre seu tempo, sobre a sociedade brasileira, suas características e seus desafios.
E, em quarto lugar, mas não menos importante, a História, a partir de seus contingentes de atores, potencializa a criação e o reforço de identidades institucionais.
Essa abordagem posiciona a História da Saúde, a meu ver, de forma engajada e dialógica com o campo da saúde, pensando as questões de profissionais, gestores, ativistas e pacientes como problemas para a investigação histórica. Isso, certamente, traz desafios e tensionamentos importantes, como um adequado diálogo interdisciplinar deve trazer.
A OMS declarou o fim da Emergência Sanitária de Importância Internacional em 5 de maio de 2023. Na visão da história da saúde, é possível declarar o fim de uma crise de tamanha dimensão?
Não. A historiografia da saúde, da medicina e das doenças discute há muito tempo sobre o que, quando e como epidemias acabam. Essa discussão é bastante relevante, pois envolve a dimensão processual dos fenômenos históricos, bem como lida com as dinâmicas de permanências e rupturas, continuidades e descontinuidades, elementos centrais à disciplina histórica.
No caso das epidemias, existem diferentes temporalidades e níveis de organização e desorganização social em jogo: há o tempo epidemiológico, das curvas de incidências e das ondas de mortalidade; há o tempo biológico, de variações de agentes patógenos que se modificam e interagem de formas distintas com as populações e há o tempo social dos impactos de uma epidemia na vida cotidiana, nas relações de trabalho, nas interações sociais, entre outros diversos aspectos.
Como os historiadores Jeremy Greene e Dora Vargha reforçaram recentemente em um texto chamado Ends of Epidemics, a história nos lembra que as interconexões entre a temporalidade da epidemia biológica e da epidemia social estão longe do óbvio.
No caso da Covid-19, a continuidade do processo histórico se dá pela própria persistência de surtos da doença, agora com gravidade bastante reduzida devido à vacinação em massa e às mutações do vírus. Mas há a emergência de uma síndrome pós-viral, a Covid Longa, e as diversas repercussões da pandemia na vida social.
De adolescentes e jovens adultos que tiveram sua sociabilidade e aprendizado completamente atravessados pelas medidas de distanciamento social às mudanças nas relações de trabalho, passando pelas famílias desestruturadas emocional e materialmente pela morte de integrantes, a pandemia continua não somente como trauma e memória, mas também como um processo contínuo.
Dessa forma, discutir o cuidado e a invisibilidade da Covid Longa no Brasil é, também, tensionar narrativas sobre o fim da epidemia, mobilizar ações de memória e contra o esquecimento de um processo que teve impactos tão profundos e graves em âmbito coletivo e individual. A rigor, é demarcar que a pandemia de Covid-19 não acabou.
Para saber mais:
No site do Observatório História e Saúde é possível ter acesso ao acervo online de documentos e referências bibliográficas sobre a Covid-longa como parte dos resultados do projeto de pesquisa intitulado “Entre a visibilidade e a Invisibilidade: Uma abordagem Histórica e socioantropológica da covid-longa entre trabalhadores da saúde no Rio de Janeiro e em Porto Alegre”
Na Base Arch, base arquivística da Casa de Oswaldo Cruz, há fundos e coleções resultantes de pesquisas realizadas na COC sobre a pandemia de Covid-19. Para agendar consulta aos documentos, ligue (21) 2126-3492 ou envie e-mail para [email protected]
Reúne documentos textuais, iconográficos e audiovisuais produzidos por membros da comunidade Fiocruz e alguns moradores dos territórios vizinhos, documentando experiências pessoais e profissionais relativas ao período da pandemia de Covid-19 no Brasil.
Fiocruz (Brasil) e INSA (Portugal): desafios da comunicação pública na pandemia de Covid-19
Reúne oito entrevistas realizadas entre março e outubro de 2022, de forma presencial e pela Plataforma Teams, com dirigentes e profissionais de comunicação da Fiocruz e do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, de Portugal, para apurar desafios e elementos de aprendizado institucional de duas instituições de saúde e verificar possibilidades e limites da comunicação praticada em contexto de infodemia, desinfodemia e crise política.
O tempo presente na Fiocruz: ciência e saúde no enfrentamento da pandemia de covid-19
Reúne depoimentos coletados entre 2020 e 2024, cujo objetivo foi produzir a memória e a análise histórica da atuação da Fiocruz no enfrentamento da covid-19. Sob os marcos teóricos e metodológicos da história do tempo presente e dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, essa atuação foi examinada como caso emblemático da dimensão social e política da ciência, concebida enquanto atividade coletiva, historicamente situada, constituída por meio de redes que conectam o mundo estrito da prática científica a diversas outras instâncias da vida social.

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Ler ainda:
Covid longa: estudo revela alta prevalência de sintomas e invisibilidade nos serviços de saúde.
Rosenberg, Charles. Disease in History: Frames and Framers. The Milbank Quarterly, 1989, p. 1 -15.
Greene, Jeremy; Vargha, Dora. “Ends of Epidemics”. In: Brands, Hal; Gavin, Francis (ed.). Covid-19 and World Order. Baltimore: John Hopkins University Press, 2020. p. 23-39.
Como citar esta entrevista
D’AVILA, Cristiane. “A pandemia de Covid-19 não acabou” (Artigo). In: Café História. Publicado em 31 mar. de 2025. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/pandemia-covid-nao-acabou/. ISSN: 2674-5917.