"Our flags means death": pirataria, rebeldia e tolerância em mares caribenhos 1
O mote é: Stede Bonnet era mais um aristocrata do século 18, mas abandonou sua vida cheia de privilégios para virar o Pirata Cavalheiro. Foto: reprodução.

“Our flags means death”: pirataria, rebeldia e tolerância em mares caribenhos

Tragicomédia da HBOMax (2022) cria um universo multicolorido e multicultural em torno do famoso “gentleman pirate” Stede Bonnet, um dos expoentes da idade de ouro da pirataria no Caribe no século XVIII.
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Piratas do Caribe? Quem precisa mais disso depois do overkill do tema operado pela conhecida franquia da Disney? David Jenkins (People Of Earth – 2016) tomou para si a tarefa de transformar um assunto tão batido em uma série que já conta com duas temporadas no canal de streaming HBOMax.

Dessa vez o personagem principal da trama é Stede Bonnet, que ficou mais conhecido por sua carreira como pirata do que como rico herdeiro de uma plantação de cana-de-açúcar. Stede era fascinado por piratas e navios, sonhava com a vida e as aventuras em alto-mar enquanto se sentia preso a um casamento arranjado e que lhe causava tédio. Uma trajetória típica de um aristocrata branco do século18 nas Bahamas se seguiu – Bonnet teve filhos, administrou mal, segundo consta, seus negócios e frequentou a alta sociedade local. Um belo dia Stede decidiu comprar um barco, contratar uma tripulação e iniciar uma carreira de pirata, sem ter nunca comandado um navio, roubado algo ou matado alguém. E, não, até aqui não entrou a liberdade criativa dos roteiristas, Bonnet fez isso mesmo. Ele abandonou mulher e filhos para se tornar um pirata e passou a ser famoso pelos seus trejeitos, roupas nobres e a peruca empoada. O “pirata gentil” chegou ao topo, inclusive fazendo uma parceria, que até hoje se discute se foi espontânea ou forçada, com o temido pirata Edward Teach, mais conhecido como Blackbeard, um dos mercenários mais temidos dos anos finais da era de ouro da pirataria nos mares América Central e do Norte.

O criador da série, David Jenkins, assina também o roteiro de diversos episódios e dirige ele mesmo dois deles. Porém, ainda temos aqui um grande grupo de talentos na sala de escritores, como Zayre Ferrer (Tijuana – 2019) ou Eliza Jiménez Cossio (We Should Get Dinner! – 2022) e de diretores, como Andrew DeYoung (PEN15 – 2019/2021) ou Taika Waititi (Thor: Love and Thunder – 2022), que ainda interpreta o personagem Blackbeard.

Falando no elenco, esse não deixa nada a desejar, além de Taika como Blackbeard, no papel do pomposo Bonnet temos ainda o hilário Rhys Darby (Flight of the Conchords – 2007-2009), e na equipe de marinheiros vemos entre outros rostos conhecidos Joel Fry (Cruella – 2021) como o malandro Frenchie, Samson Kayo (Bloods- 2021) o pirata de bom coração Oluwande, Ewen Bremner (Trainspotting – 1996) o bruxo encantador de andorinhas Buttons, Nat Faxon (Disenchantment – 2018/2023)como o Swede, Vico Ortiz (Esperanza – 2022) como Jim, e veteranos nos papéis de vilões como Con O’Neill (Batman – 2022) interpretando Izzy Hands o melhor/pior amigo de Blackbeard ou Rory Kinnear (The Imitation Game – 2014) como o ex-colega de internato/oficial da marinha inglesa que virou a nêmesis de Stede Bonnet.

E a lista não para por aí, vemos vários outros atores bastante conhecidos – Minnie Driver assume o papel de Anne Bonny em um episódio e Fred Armisen aparece como um barman com o dom da intriga em diversos outros – que surgem em algum momento interpretando personagens históricos da saga dos piratas que assumiam a vida fora da lei por motivos diversos. Tinham os que recusavam o rei George da Inglaterra como soberano, os que haviam fugido da escravidão ou de penas de prisão e morte, em busca de aventura, ou simplesmente para ter um ganha-pão em uma sobrevivência à margem de uma sociedade liderada pela nobreza, exploradores e seus descendentes nas colônias do “mundo novo” das Américas.

Com esse perfil histórico como base, David Jenkins nos convida a uma visita multicolorida no mundo de rebeldia e anarquia da República dos Piratas, e aborda inúmeras questões sociais e políticas com um humor ácido. Entre piratas tudo era permitido, quem vive fora das regras da sociedade dita civilizada desfruta de uma incomparável liberdade, mas também é constantemente confrontado com a brutalidade, a carnificina, e a total falta de um código ético-moral normatizado, o que coloca muitas vezes piratas, uma vez aliados, uns contra os outros em batalhas sangrentas pela próxima conquista.

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Personagens queer estão presentes na série. Foto: reprodução.

A leveza do humor fica por conta da visão de mundo pelos olhos de Bonnet. Para ele tudo é novidade, diversão e experimento. Como um menino olhando formigas com uma lupa, Bonnet assiste ao caos ao seu redor mais intrigado do que realmente impactado, até que é obrigado a agir e, aos poucos, endurecer e amadurecer, abandonando o comportamento de menino mimado de outrora. Mesmo seguindo essa trajetória do herói, o Bonnet caracterizado por Jenkins está mais para um chefe no estilo Michael Scott (The Office), do que um líder de uma tripulação em constante ameaça de motim nos mares do Caribe. Para tornar o material ainda mais transgressor, Jenkins cria um romance entre Bonnet e Blackbeard, como uma das justificativas plausíveis para a criação de tal aliança estapafúrdia entre piratas tão diferentes. Assim como abre espaço para personagens de diversas nacionalidades, povos, ideologias e orientação sexual.

Our Flag Means Death é esteticamente primoroso nos cenários, figurinos, maquiagem e até mesmo nos créditos de entrada, onde o título aparece sempre representado de forma bastante criativa e diferenciada. A trilha sonora é primorosa e no ponto, valendo, inclusive, a busca pela playlist oficial em aplicativos de streaming. O humor não é de forma alguma sofisticado, é acido e por vezes pastelão, mas combina perfeitamente com as intenções do roteiro e amarra de forma interessante as passagens mais sangrentas que se dissolvem em romance e fantasia. Tudo isso, unido, nos oferece uma forma divertida de aprender um pouco sobre essa etapa da história da América latina, pela qual, talvez, como ocorreu comigo, nunca tivéssemos profundo interesse. Confesso que pausei várias vezes a exibição para procurar os piratas em questão e fazer um fact check de suas proezas ou aprender sobre suas histórias pessoais. No final acabei acumulando um conhecimento quase involuntário sobre embarcações dos séculos XVll e XVIII e adquiri alguns livros para aprender mais sobre os personagens da época. Talvez agora a febre pelos piratas do caribe tenha me pegado também, mesmo sem apelar para a representação conhecida dos filmes da Disney.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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