Da atuação do cientista e sanitarista brasileiro Oswaldo Cruz (1872-1917) no combate às epidemias que assolavam o Rio de Janeiro no início do século XX, quando a cidade era capital da República, à pandemia do novo coronavírus, decorre mais de um século.
No passado, diversas doenças culminaram na morte de milhares de pessoas na capital federal, centro político e vitrine do país para o mundo. A fim de defender não só a saúde de seus habitantes, mas também de atrair investimentos, o governo federal executou duras medidas sanitárias impostas a uma sociedade recém-saída da escravidão.
Documentos sob a guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz disponíveis online (links ao final do artigo) revelam, em parte, a complexidade dos desafios sanitários colocados aos cientistas no combate à febre amarela, varíola e peste bubônica e outras enfermidades. Ontem, como hoje, as doenças – fenômenos biológicos e também sociais – acentuam inquietações sobre os limites de atuação do Estado, o financiamento da saúde pública e da pesquisa científica e os interesses do capital. Veja como foi o combate a essas doenças no início da República.
Os desafios de Oswaldo
“A Fiocruz está completando 120 anos em maio e esse aniversário vai ser marcado pela resposta à essa pandemia, assim como o início da instituição foi uma resposta sanitária às epidemias no Rio de Janeiro”, afirmou recentemente a socióloga Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, a maior instituição de pesquisa científica do país.
Nísia refere-se, pontualmente, ao desafio colocado ao jovem Oswaldo Cruz, em 1900. Recém-especializado em bacteriologia no Instituto Pasteur de Paris, o médico assumiu naquele ano a direção técnica do Instituto Soroterápico Federal (hoje Fiocruz), responsável pela produção de soro antipestoso e vacina para o combate à peste bubônica.
Em 1903, Cruz foi convidado pelo então presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves, para o cargo de chefia da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP, órgão semelhante ao atual Ministério da Saúde). Sua missão: debelar as epidemias que assolavam o Rio de Janeiro, capital do país e local do 3º maior porto das Américas.
Peste bubônica, varíola e febre amarela, principalmente, cunharam na bela cidade o estigma de “túmulo do estrangeiro”. Somente a febre amarela, entre 1897 e 1906 causou a morte de quatro mil imigrantes, além de ter matado outros tantos milhares de brasileiros. Em período de intenso fluxo migratório e comércio exterior em função da economia cafeeira, o sinistro rótulo era visto como fatal para os negócios.
A gestão de Cruz na DGSP
À DGSP cabia a execução de medidas sanitárias de enfrentamento de tais doenças. No combate à febre amarela, Oswaldo Cruz adotou uma série de ações pautadas na medicina microbiana – segundo a qual a doença era provocada por um vetor específico, no caso o mosquito Aedes aegypti, o mesmo que hoje ainda assola o país. Tais ações incluíam o isolamento domiciliar do doente e a desinfecção das habitações por brigadas de mata-mosquitos, que empregavam táticas militares de combate aos vetores [1].
Durante sua gestão (1903-1909), Oswaldo Cruz ampliou a competência da diretoria da DGSP, incorporando por decreto (nº 1.151, de 5 de janeiro de 1904) [2] a polícia sanitária, a profilaxia geral e a higiene domiciliar. Foram criados o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela e o Regulamento Processual da Justiça Sanitária [3], este último o órgão responsável pelos processos judiciais decorrentes da demolição de prédios e habitações considerados insalubres. Os cortiços, pequenas e humildes habitações alugadas a indivíduos ou famílias pobres foram os mais afetados pela política do governo.
Os pobres sofrem com as demolições
Grande parte das demolições ocorridas na cidade foi uma exigência da Prefeitura do Rio de Janeiro, outra importante força de transformação sanitária da cidade. Na época, estava em curso um grande processo de urbanização da capital conduzido pelo então prefeito Pereira Passos. As “picaretas regeneradoras” de Passos, expressão cunhada pelo escritor Olavo Bilac, deveriam expurgar, principalmente das áreas centrais, o que restava das construções coloniais. Centenas de famílias foram afetadas por esse projeto de remodelação urbana. Foi neste momento, por exemplo, que vários candomblés estabelecidos no centro da cidade foram obrigados a se transferir para os subúrbios.
Mais de duas mil habitações e prédios comerciais vieram abaixo, sendo os seus habitantes mais pobres despejados sem destino e endereço pré-estabelecidos. O propósito não foi apenas estético e nem simplesmente em prol das condições de higiene; foi também econômico, pois era preciso facilitar o tráfego de mercadorias no entorno do porto, na Praça Mauá. De acordo com o historiador Nicolau Sevcenko,
“O antigo cais não permitia que atracassem os navios de maior calado que predominavam então, obrigando a um sistema lento e dispendioso de transbordo. As ruelas estreitas, recurvas e em declive, típicas de uma cidade colonial, dificultavam a conexão entre o terminal portuário, os troncos ferroviários e a rede de armazéns e estabelecimentos do comércio de atacado e varejo da cidade. As áreas pantanosas faziam da febre tifoide, impaludismo, varíola e febre amarela, endemias inextirpáveis” [4].
Ao mesmo tempo em que aconteciam as obras de Pereira Passos, as brigadas sanitárias de Oswaldo Cruz agiam contra o mosquito transmissor da febre amarela. Elas preparavam o isolamento dos ambientes domiciliares ou removiam o doente para hospitais, dentre eles o Hospital de Isolamento São Sebastião, quando não era possível isolá-lo no domicílio. À polícia sanitária cabia o monitoramento e a desinfecção de áreas públicas. Como ações médicas e interesses econômicos corriam em paralelo, empregava-se arbítrio e força policial para a execução das grandes obras de remodelação da cidade e também para a aplicação das medidas profiláticas.
De acordo com o historiador José Murilo de Carvalho, “só no segundo semestre de 1904 foram visitadas 153 ruas; foram feitas, no primeiro semestre, 110.224 visitas domiciliares, 12.971 intimações e 626 interditos”.[5] Tamanha intervenção do Estado acabou provocando enormes reverberações na vida prática das pessoas, que de uma hora para a outra tiveram suas rotinas mudadas e seus estilos de vida ameaçados por uma força que vinha verticalmente, de cima para baixo.
Segundo Carvalho, essa perturbação afetou vendedores ambulantes, mendigos e “em especial os proprietários das casas desapropriadas para demolição, os proprietários de casas de cômodos e cortiços anti-higiênicos, obrigados a reformá-los ou demoli-los, e inquilinos forçados a receber os empregados da saúde pública, a sair das casas para desinfecções, ou mesmo a abandonar a habitação quando condenada à demolição”. [6]
Conselhos ao povo
Segundo pesquisa do historiador Bruno Cury, doenças como febre amarela, varíola, peste bubônica e tuberculose levavam a muitos óbitos na cidade, mas, para os investidores da época, as mortes eram preocupantes sobretudo porque inibiam novos negócios na cidade.
“As autoridades governamentais se esforçavam em construir a cidade do Rio de Janeiro como um cartão de visitas do Brasil, seguindo os moldes parisienses e corroborando o país como uma república moderna. Este quadro se agrava ao constatarmos que a pobreza atingia a maior parte da população, que buscava formas de sobrevivência na cidade ficando à margem na participação de um modelo de modernização tão em voga no período” [7].
A fim de avançar ainda mais com as medidas sanitárias, Oswaldo Cruz procurou mobilizar a população. Ele mandava publicar “Conselhos ao Povo” na imprensa e distribuía “advertências”, que falavam principalmente sobre a moléstia transmitida pelo Aedes aegypti, o mesmo vetor de vírus como os da dengue, zika e chikungunya. Uma dessas advertências dizia:
“ Está hoje provado que os mosquitos transmitem a febre amarela. O mosquito pica o doente de febre amarela e, depois de alguns dias, picando outra pessoa, transmite a ela a moléstia. Há muitas qualidades de mosquitos, mas nem todos transmitem a febre amarela; o que transmite facilmente se reconhece, porque é inteiramente rajado; ele tem na parte superior do corpo duas listras prateadas em forma de meia lua, e as pernas e a barriga também são riscados de listras brancas. Esta qualidade de mosquito é muito abundante no Rio de Janeiro, voa pouco e gosta de viver dentro de casa…” [8]
Em outra dessas orientações, a população era advertida quanto aos cuidados a serem tomados:
“Desde que são os mosquitos que passam a febre amarela dos doentes para as pessoas sãs, é da obrigação e do interesse de todos: I – Destruir os mosquitos e suas larvas; II – Evitar que os mosquitos piquem as pessoas, porque pode acontecer que alguns deles tenham picado um doente de febre amarela. III – Evitar que os mosquitos piquem os doentes de febre amarela, porque desse modo impede-se que eles fiquem carregados dos germes da moléstia”. [9]
Modernização, saúde e sociedade
A modernização da capital federal era um projeto defendido por muitas pessoas no início do século, que reconheciam os benefícios econômicos que poderiam surgir desse novo desenho urbanístico. Porém, essa modernização tinha um contorno contraditório: se, por um lado, favorecia o país no plano econômico, tornando-o mais atrativo para investimentos, por outro se desenvolveu de forma autoritária, produzindo exclusão social. Em uma época em que a cidadania não era um direito assegurado, foram os pobres os que mais sentiram esse processo transformador excludente. Sem serem consultados, tiveram que se adaptar às novas circunstâncias da nova cidade.
Essa modernização é também contraditória do ponto de vista da saúde pública, uma das facetas do processo. A atuação de Oswaldo Cruz à frente da DGSP mostra bem isso. O médico sanitarista conseguiu extinguir a febre amarela; controlou a peste bubônica e a varíola. Os números confirmaram a eficácia das medidas. Se em 1902 ocorreram cerca de mil óbitos no Rio de Janeiro, apenas 48 foram registrados em 1904. Tudo isso salvou milhares de vidas, aumentou seu prestígio social (em 1908, o presidente Afonso Pena renomeou o Instituto de Manguinhos como Instituto Oswaldo Cruz”[10]) e fez com que os serviços sanitários federais, médicos e engenheiros sanitaristas ganhassem relevância e reconhecimento[11]. Porém, uma vez que as medidas sanitaristas estavam entrelaçadas com outras forças, como as de Pereira Passos, as populações foram submetidas a imposições semelhantes, sobretudo por meio da polícia e das brigadas sanitárias.
Nesses primeiros anos da República, foram vários os episódios de resistência e protesto contra as ações sanitaristas. Um dos mais famosos foi a chamada “Revolta da Vacina” – nome pelo qual ficou conhecida a reação de caráter popular contra a vacinação obrigatória contra a varíola. A ação do Estado provocou um distúrbio urbano bastante violento no Rio de Janeiro, levando a mortes, prisões e deportações. Houve tiroteios, queima de bondes e de lampiões, barricadas foram construídas e delegacias atacadas.[12]
Documentos para compreender o passado
Para melhor compreender esta história, o Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz disponibiliza na Base Arch documentos e informações sobre personagens e os principais fatos do período: há Caricaturas e charges sobre a atuação de Oswaldo Cruz à frente do DNSP, registros fotográficos da Gripe Espanhola, da luta contra a Febre Amarela, um registro, em vídeo, de uma esquete sobre a Revolta da Vacina, e um registro audiovisual do histórico Cinematógrafo Brasileiro em Dresden.
Notas
[1] As brigadas eram formadas por agentes sanitários munidos de larvicida e instrumentos para a eliminação dos focos. Eles percorriam a cidade lavando caixas d’água, desinfetando ralos e bueiros, limpando telhados e calhas e eliminando depósitos de larvas do inseto. Disponível em http://www.projetomemoria.art.br/OswaldoCruz/biografia/02_brigadas.html
[2] Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1151-5-janeiro-1904-583460-publicacaooriginal-106278-pl.html
[3] HOCHMAN apud CPDOC, 2010.
[4] SEVCENKO, 1983, p. 28.
[5] CARAVLHO, 1987, p.94.
[6] CARAVLHO, 1987, p.94.
[7] CURY, 2012, p.65.
[8] FRAGA (2005, 53-57), apud CURY, 2012, pp.154-157.
[9] FRAGA (2005, 53-57), apud CURY, 2012, pp.154-157.
[10] SCHATZMAYR; CABRAL, 2012, p.48
[11] HOCHMAN apud CPDOC 2010.
[12] CARVALHO, 1987, p.104.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós? Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
CURY, Bruno da Silva Mussa. “Combatendo ratos, mosquitos e pessoas: Oswaldo Cruz e a saúde pública na reforma da capital do Brasil (1902-1904)”. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História, Rio de Janeiro, 2012.
DIAS, Julia. “Presidente da Fiocruz fala dos desafios da chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil”. Entrevista de Nísia Trindade Lima à Agência Fiocruz de Notícias. 25 Mar.2020.
GADELHA, Carlos. “Como o Brasil desmontou sua indústria de equipamentos e quase desmonta a de vacinas”. Entrevista à TV GGN. 28 Mar.2020.
HOCHMAN, Gilberto. Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). In: ABREU, Alzira Alves de et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010.
QUEIROZ, Eneida Quadros. Justiça Sanitária. Cidadãos e Judiciários nas reformas urbana e sanitária – Rio de Janeiro (1904-1914). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2008.
SCHATZMAYR, Hermann G.; CABRAL, Maulori C. A virologia no Estado do Rio de Janeiro: uma visão global. 2a Edição – Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2012.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Como citar este artigo
D’AVILA, Cristiane. Oswaldo Cruz contra as epidemias: saúde pública e questão social no início da República (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Publicado em 27 mar. de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/oswaldo-cruz-conta-as-epidemias/. ISSN: 2674-59