Em abril de 2015, milhares de pessoas saíram às ruas de Erivan, capital da Armênia, em função do centenário do Genocídio Armênio de 1915, quando cerca de um milhão de armênios cristãos 1 foram brutalmente assassinados e muitos outros deportados pelas autoridades centrais do Império Otomano. Os manifestantes não só lembraram do sofrimento de seus ancestrais, como também exigiram que o governo turco reconhecesse o genocídio – o governo de Ancara diz que não houve um plano de extermínio da população armênia, mas um conflito civil onde teriam morreram tanto turcos quanto armênios.
A “causa armênia” – que conta com o apoio de governos de vários países e até mesmo de alguns turcos – se tornou bastante conhecida nos últimos anos, energizada especialmente por um debate bastante onipresente sobre o Holocausto na esfera pública ocidental. O que tem escapado de boa parte dos debates, porém, especialmente no meio público, é que já no imediato pós-guerra houve uma primeira tentativa para se fazer justiça. Entre 1919 e 1922, cortes marciais militares estabelecidas em Istambul processaram 200 indivíduos considerados responsáveis pelos massacres ocorridos durante a Primeira Guerra Mundial. Foram os chamados “Julgamentos de Istambul”. O problema é que tais julgamentos foram obstruídos por uma série de interesses, sobretudo políticos. Este artigo discute o que foram esses julgamentos realizados em Istambul e o que fez com que eles tivessem um fim frustrante para os sobreviventes do massacre e seus descendentes.
Da tolerância ao genocídio
Formado no início do século XIV, o Império Otomano englobava o que hoje é a Turquia, parte do Oriente Médio, do sudeste da Europa e do norte da África, tendo assumido um papel central na difusão da religião muçulmana por regiões do antigo Império Bizantino. A tolerância, contudo, foi durante muito tempo uma de suas principais características. A Igreja Ortodoxa cristã, por exemplo, muito comum nas terras bizantinas, foi preservada, da mesma forma que muitos judeus que procuravam escapar de perseguições em regiões vizinhas, encontraram refúgio relativamente seguro em solo otomano. Sob a administração dos sultões – como eram conhecidos os líderes máximos do Império – viviam ainda uma diversidade de povos, dos albaneses aos sérvios, dos romenos aos gregos, dos curdos aos assírios, e não raro, com alguma autonomia.2
No início do século XX, no entanto, a histórica tolerância otomana já não era a mesma. Desde o século XVII, o Império vinha enfrentando uma dupla ameaça: externamente, pois o expansionismo russo ameaçava quebrá-lo de fora para dentro; e internamente, já que os nacionalismos ameaçavam quebrá-lo de dentro para fora. No final do século XIX, os sultões tentaram realizar uma série de amplas reformas (Tanzimat) visando a modernização do Império, mas que não foi tão bem-sucedida, o que permitiu o surgimento de grupos reformistas com propostas mais radicais e que desafiavam o poder do sultão, caso primeiramente dos chamados “Jovens Otomanos” e depois dos “Jovens Turcos”.
Estes últimos, em sua maioria jovens de classe média, muitos dos quais militares e educados nos moldes da Europa Central, realizaram uma revolução em 1908, a “Revolução dos Jovens Turcos”, responsável por derrubar o despotismo dos sultões e por inaugurar uma nova era constitucional, que visava garantir os direitos das várias minorias do império. Apesar da face inicial positiva do movimento, uma facção nacionalista e autoritária dos “Jovens Turcos”, a facção que se reuniu em torno do partido político “Comitê de União e Progresso” (CUP), assumiu as rédeas do movimento. Essa facção, “pan-turquista” e fixada na ideia de pureza racial, passou a imaginar o futuro da região sem as minorias não muçulmanas. É neste contexto – ainda que apenas brevemente apresentado – que devemos entender o massacre que acometeria a população armênia da região.3
Em abril de 1915, já durante a Primeira Guerra Mundial, após vexaminosas derrotas para forças estrangeiras no campo de batalha e de levantes nacionalistas revolucionários armênios, o governo central do Império Otomano deu início a um coordenado plano de limpeza étnica em seu território. Centenas de milhares de armênios foram presos e /ou deportados. Muitos foram torturados e tiveram os seus bens confiscados. Além disso, seguindo uma diretiva da CUP, as forças otomanas deveriam exterminar todo homem abaixo de 50 anos, deixando mulheres e crianças para serem islamizadas. Tal plano foi seguido e o genocídio dos armênios – termo usado hoje, mas que, no entanto, só seria cunhado em 1944 por Raphael Lemkin – teve início no seio do Império Otomano. De acordo com o historiador Daniel Bloxham, aproximadamente um milhão de cristãos armênios foram mortos entre 1915 e 1916.4 “As prisões e as execuções dilaceraram de fato as lideranças da nação armênia, pressagiando um dos maiores crimes contra a humanidade do século”, sublinha Armen T. Marsoobian.5
Os Julgamentos de Istambul
Em 1918, ao final da guerra, o Império Otomano foi derrotado e ocupado pelas forças aliadas, passando os sultões e os seus primeiros-ministros, sediados em Istambul, a governar sob os auspícios dos ocupantes. Segundo o historiador Alan Kramer, logo no início da ocupação, os aliados pressionaram as lideranças de Istambul a processar os suspeitos pelos massacres.6 O empreendimento, no entanto, não seria fácil. O governo do Primeiro Ministro Ahmet Izzet (outubro de 1918 a novembro de 1918), continuava achando que a deportação dos armênios era uma necessidade naqueles tempos de guerra. Ainda muito influenciado por membros exilados do CUP, chegou a determinar que documentos oficiais relacionados ao genocídio fossem destruídos. A obstrução da justiça e o fato de ter permitido que diversos suspeitos escapassem para a Alemanha provocou uma enorme pressão política que culminou com a renúncia de Izzet em 8 de novembro de 1918.7
O governo seguinte, de Ahmet Tevfik (novembro de 1918 até março de 1919), tomou, sublinha Kramer, medidas mais incisivas no sentido de punir os criminosos de guerra otomanos. Por meio de um decreto estabelecido pelo sultão e pelo Conselho de Ministros, foram estabelecidas cortes marciais especiais para processar os perpetradores do genocídio. Além disso, uma Comissão Parlamentar produziu arquivos com evidências documentais sobre mais de 100 suspeitos. Os julgamentos começaram em maio de 1919, no governo seguinte, de Damat Ferid (março de 1919 até outubro de 1919). Este governo, de oposição a CUP, considerando-a responsável pela derrota na guerra, foi, segundo Kramer, o que mais se empenhou no esforço de punir os responsáveis, realizando para isso a prisões de vários suspeitos. Foi neste momento inclusive que Mehmet Kemal Bey, antigo deputado no distrito de Yozgat, foi sentenciado à morte por seu papel nos massacres durante a guerra, sendo executado em 10 de abril de 1919.
A morte de Kemal Bey teve um efeito político bastante importante para o futuro da região. Naquele momento, em Ancara, nacionalistas turcos liderados pelo carismático oficial turco Mustafa Kemal Atatürk, ex-CUP, líder do Movimento Nacional Turco e conhecido como “pai dos turcos”, estabeleciam uma espécie de “governo paralelo” cada vez mais forte, um governo de oposição à ocupação aliada e veementemente contrário a colaboração do governo de Istambul com esta ocupação. A notícia da execução de Bey, neste sentido, insuflou os nacionalistas liderados por Atatürk.8 No auge desta tensão, cidadãos britânicos foram tomados como reféns pelas forças de Ancara. Os termos de Atatürk eram: os britânicos só os veriam de volta e só teriam a cooperação nos julgamentos se colocassem em liberdade diversos acusados de crimes de guerra presos meses antes pelos britânicos. Londres, ainda que relutante, acabou aceitando o acordo, mas o governo de Ancara não. Segundo Kramer, Atatürk não só não seguiu com o processo contra os suspeitos de participar dos massacres contra os civis, como ainda lhes concedeu postos-chave no governo naquele que era o embrião da futura República da Turquia.9
Enquanto isso, o tribunal de Istambul continuou realizando seus julgamentos, não só suspeitos do genocídio, mas também de dezenas de líderes nacionalistas turcos, incluindo o próprio Atatürk, que foi sentenciado à morte, ainda que in absentia. Além de Mehmet Kemal Bey, executado em 1919, dois outros perpetradores foram condenados à morte e executados no ano seguinte. Mas seriam os últimos. A Conferência de Lausame (1922) pôs fim ao Império Otomano e concedeu uma anistia que inviabilizou o indiciamento dos perpetradores do genocídio. Significou, em outras palavras, o fim dos julgamentos.
Na época, a Federação Revolucionária Armênia (Dashnaktsutyun), inconformada com a situação, fez justiça por contra própria, matando pessoalmente aqueles que tinham participado dos massacres. A ação ficou conhecida como “Operação Nemesis”. Os três paxás que comandaram o Império Otomano durante os massacres foram assassinados no início da década de 1920, sendo todas as três mortes reivindicadas por membros da Nemesis. 10
No total, 17 homens foram condenados à morte nos julgamentos realizados em Istambul, a maioria in absentia. Mas apenas três foram executados. Para Kramer, a baixa efetividade dos julgamentos naquele imediato pós-guerra devem ser entendidos por meio da confluência de diversos motivos: interferências políticas nos processos, sobretudo de forças ligadas à antiga CUP; ausência de um sistema jurídico internacional sólido, o que favoreceu as negativas turcas em cooperar; falta de preparo dos aliados em equacionar questões de soberania com processos legais; problemas internos do Reino Unido, dos financeiros aos militares; temores de uma guerra com a Turquia; falta de vontade política das forças aliadas e as diferentes agendas destas naquele imediato pós-guerra.11
Como aponta Gabrielle Simm, “por volta de 1919, o horror expressado pelas Forças Aliadas em 1915 quanto aos massacres dos armênios foi substituído por um pragmatismo político e pelo interesse em processar crimes de guerra conectados com os maus tratos dos seus próprios prisioneiros de guerra”.12
Isso, no entanto, não deve obscurecer a importância de tais julgamentos. Como pontuam os historiadores Vahakn N. Dadrian e Taner Akçam, embora o nacionalismo de Atatürk tenha comprometido cada vez mais o trabalho das cortes militares em Istambul, o trabalho desenvolvido por elas teve um papel muito importante, sendo capaz de reunir e classificar uma massa documental autenticada que ajudou a estabelecer fatos centrais para a organização do assassinato em massa por parte da CUP e de outras lideranças.13
Perspectivas historiográficas
O genocídio armênio e os julgamentos de Istambul praticamente desapareceram do debate público depois da proclamação da República da Turquia em 1923. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Hitler chegou a afirmar várias vezes: “quem, afinal de contas, fala hoje em dia da aniquilação dos armênios?”.14 A partir dos anos 1970, porém, a questão foi progressivamente se tornando mais discutida. Esse retorno aos holofotes deve ser visto como parte de um fenômeno cultural e político bastante amplo, o da emergência de novos discursos da memória, que, conforme apontou Andreas Huyssen, nasceram a partir da experiência da descolonização afro-asiática na década de 1960, e se aceleraram após o recrudescimento de um amplo debate público sobre o Holocausto na década de 1980, que teria permitido entender melhor ou falar mais sobre outros passados sensíveis semelhantes. Segundo Huyssen, “no movimento transacional dos discursos de memória, o Holocausto perde sua qualidade de índice do evento histórico específico e começa a funcionar como uma metáfora para outras histórias e memórias”.15
No plano historiográfico, o interesse pelo tema também tem sido bastante sentido com a publicação de estudos que abrem novas perspectivas de compreensão dos eventos ocorridos entre 1915 e 1922. Alguns já foram citados anteriormente, como Donald Bloxham, conhecido historiador do Holocausto, que escreveu The Great Game of Genocide: Imperialism, Nationalism and the Destruction of the Ottoman Armenians (2005), e dos trabalhos de Taner Akçam, primeiro historiador turco a discutir abertamente o genocídio. Akçam é autor de diversos trabalhos importantes na área, com destaque para From empire to republic: Turkish nationalism and the Armenian genocide (2004), um divisor de águas na historiografia do genocídio armênio, e Judgment at Istanbul: The Armenian Genocide Trials, escrito em parceria com o historiador Vahakn N. Dadrian, que vem desde os anos 1990 se dedicando ao assunto. Até mesmo o estudo pioneiro de Arnold Toynbee, The Treatment of Armenians in Ottoman Empire, 1915-1916, escrito em 1916, logo depois dos massacres, voltou à tona, sendo republicado em 2005 com uma versão crítica e não censurada. Todas essas referências e algumas outras, também importantes e publicadas mais recentemente, encontram-se nas referências ao final.
O cientista político Adam Jones, referência em estudos sobre genocídio, chama nossa atenção ainda para uma questão importante: para além dos armênios, outras minorias cristãs foram massacradas pelos otomanos durante a Primeira Guerra Mundial, caso dos Assírios e dos gregos pônticos.16 Jones, apoiando-se no historiador Hannibal Travis, cujo trabalho tem contribuído para trazer a catástrofe assíria para dentro dos estudos sobre genocídio, entende que talvez seja importante olhar para o projeto de limpeza étnica otomana pensando não exclusivamente como uma campanha otomana contra armênios, exclusivamente, mas contra as minorias cristãs de uma forma geral. Tal perspectiva seria bastante interessante não só, como indica Jones, para fazer justiça a essas minorias e melhor compreender o genocídio, mas também, eu diria, porque nos possibilita uma compreensão mais aprofundada dos Julgamentos de Istambul.
Notas
1 BLOXHAM, Donald. Rethinking the Armenian Genocide. History Today. Vol. 55, No. 6, jun. de 2005.
2 Sobre a tolerância do Império Otomano, conferir: STEARNS, Peter. Tolerance in World History. Taylor & Francis, 2017.
3 Donald Bloxham, op. cit., explica que para se entender plenamente o genocídio que viria a ocorrer em breve, devemos levar em consideração não somente o nacionalismo virulento da CUP e a eclosão da Primeira Guerra Mundial, mas também o nacionalismo armênio e os seus partidos, os interesses das grandes potências da época na “questão armênia” e suas questões demográficas – todos esses elementos antecedem e muito a “Revolução de 1908” promovida pelas “Jovens Turcos”.
4 Ibidem.
5 MARSIIBIAN, ARMEN T. The Armenian Genocide of 1915. History Today. Jul. 2015. pp..56-57.
6 KRAMER, Alan. The first wave of international war crimes trials: Istanbul and Leipzig. European Review, v. 14, n. 4, p. 441-455, 2006. Ainda nos primeiros anos da Primeira Guerra Mundial, Reino Unido, França e Rússia anunciaram publicamente a intenção de processar os turcos por “crimes contra a humanidade e a civilização” – era a primeira vez que a expressão era utilizada na história do Direito Internacional Público.
7 Ibidem.
8 Ibidem.
9] Ibidem.
10 MACCURDY, Marian Mesrobian. Sacred Justice: The Voices and Legacy of the Armenian Operation Nemesis. Transaction Publishers, 2015.
11 KRAMER, Op. cit.
12 SIMM, Gabrielle. The Paris Peoples’ Tribunal and the Istanbul Trials: Archives of the Armenian Genocide. Leiden Journal of International Law, v. 29, n. 1, 2016. p.256.
13 DADRIAN, Vahakn N.; AKÇAM, Taner. Judgment at Istanbul: the Armenian genocide trials. Berghahn Books, 2011. p.2.
14 JONES, Adam. Genocide: A comprehensive introduction. Routledge, 2010. p.200.
15 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
16 JONES, op. cit. p.201.
Referências
AKÇAM, Taner. From empire to republic: Turkish nationalism and the Armenian genocide. Zed Books, 2004.
___________. The Young Turks’ crime against humanity: The Armenian genocide and ethnic cleansing in the Ottoman Empire. Princeton University Press, 2012.
BLOXHAM, Donald. Rethinking the Armenian Genocide. History Today. Vol. 55, No. 6, jun. de 2005.
______________. The great game of genocide: imperialism, nationalism, and the destruction of the Ottoman Armenians. OUP Oxford, 2005.
DADRIAN, Vahakn N.; AKÇAM, Taner. Judgment at Istanbul: the Armenian genocide trials. Berghahn Books, 2011.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Aeroplano, 2004.
JONES, Adam. Genocide: A comprehensive introduction. Routledge, 2010.
KÉVORKIAN, Raymond. Le Génocide des Arméniens. Odile Jacob, 2006.
KRAMER, Alan. The first wave of international war crimes trials: Istanbul and Leipzig. European Review, v. 14, n. 4, p. 441-455, 2016.
MACCURDY, Marian Mesrobian. Sacred Justice: The Voices and Legacy of the Armenian Operation Nemesis. Transaction Publishers, 2015.
MARSIIBIAN, ARMEN T. The Armenian Genocide of 1915. History Today. Jul. 2015
SIMM, Gabrielle. The Paris Peoples’ Tribunal and the Istanbul Trials: Archives of the Armenian Genocide. Leiden Journal of International Law, v. 29, n. 1, p. 245-268, 2016.
STEARNS, Peter. Tolerance in World History. Taylor & Francis, 2017.
SUNY, Ronald Grigor et al. (Ed.). A question of genocide: Armenians and Turks at the end of the Ottoman Empire. Oxford University Press, 2011.
TOYNBEE, Arnold Joseph (Ed.). The Treatment of Armenians in the Ottoman Empire, 1915-1916. HM Stationery Office, 1916.
Como citar esse artigo
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Os Julgamentos de Istambul: crimes de guerra e justiça (Artigo). In: Café História Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/os-julgamentos-de-istambul. Publicado em: 14 ago 2017.