De acordo com Michel Gherman, um dos coordenadores do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ (NIEJ), a historiografia sobre o Oriente Médio, especialmente a historiografia sobre o conflito palestino-israelense, vem enfrentando um grande problema: o poder das agendas políticas, sobretudo as agendas políticas comunitárias. De acordo com o pesquisador, alguns historiadores têm submetido seus trabalhos à lógica da agenda política e não da pesquisa acadêmica. E são esses historiadores que, quase sempre, são traduzidos para o português. “Isso é uma tragédia”, afirma Gherman.
Michel, a Editora Sundermann acaba de publicar no Brasil o livro “A Limpeza Étnica da Palestina”, do historiador Ilan Pappé. Nesta obra, o autor defende a tese de que criação do Estado de Israel envolveu a expulsão compulsória de milhares palestinos de suas casas e a destruição de centenas vilarejos, eventos que ficaram conhecidos com “Nakba”. Ele sublinha ainda que parte da historiografia israelense não tratou bem o tema. Sobre Benny Morris, por exemplo, Pappé diz que este chegou a um quadro “muito parcial” sobre a expulsão dos palestinos porque “tomou os relatórios militares encontrados nos arquivos por seu valor de face e até mesmo como verdade absoluta”. O que você acha desta tese e qual a sua leitura deste momento fundacional do Estado do Israel?
Eu acho que o momento que nós estamos vivendo na política tem muito a ver com o momento que nós estamos vivendo na historiografia. Alguns historiadores perderam a capacidade de construir tese e hipótese de acordo com a pesquisa e passaram a construir tese e hipótese com base em agenda política. Eu acho que é basicamente esse o caso do Ilan Pappé. Ele é um historiador extremamente comprometido com uma agenda política e que busca, a partir da sua pesquisa, justificar essa agenda. O que não interessa para ele, fica de fora. E me surpreende quando o Pappé faz esse tipo de coisa, pois ele critica e acusa os outros historiadores de fazerem exatamente isso. O que eu não duvido. Há historiadores da direita sionista que fazem exatamente isso. A tragédia é que o diálogo na historiografia sobre o sionismo está dividido entre comprometidos com a esquerda e comprometidos com a direita; entre comprometidos com os palestinos e comprometidos com Israel. Isso é a morte da história. E veja, eu estou aqui me referindo a pessoas que estudam sionismo e não gente que é sionista – depois precisamos falar com mais calma sobre esse termo, que virou palavrão.
Eu acho complicado o que Pappé diz sobre a historiografia israelense. Avi Shlaim não é um historiador sério? Benny Morris – o antigo, não o atual Benny Morris – não era um historiador sério? Você não tem uma historiografia comprometida com fontes em nenhum momento? Você não tem um Baruch Kimmerling? Você não tem um Zeev Sternhell? Essa historiografia israelense não é séria? Então, qual é a historiografia séria? É aquela historiografia que chega às teses que você quer provar? Ou é a historiografia que trabalha com pesquisa, efetivamente? Eu acho complicado, arrogante e excludente. A pergunta é: que fontes ele, então, aceita? É claro que você pode trabalhar e fazer uma leitura absolutamente interessante de uma fonte militar, pois não é a fonte que vai te dizer aquilo que ela tem para dizer nas suas linhas. A fonte militar pode ter uma leitura absolutamente revolucionária. Então, depende de como você lida com a fonte.
Eu acho que o Pappé, em algum sentido, me lembra os historiadores positivistas, trazendo fontes para provar as argumentações dele como se aquelas fontes pudessem falar sozinhas. Nenhuma fonte fala sozinha. A memória do palestino expulso não fala sozinha; a documentação do exército não fala sozinha. A grande questão é quem está do outro lado da mesa, quem lê aquilo, quem vai examinar e interpretar aquilo. E este é o lugar do historiador; este é o lugar do historiador bom e do historiador ruim. Eu já vi historiadores transformando fontes extremamente limitadas em algo muito interessante. A perspectiva das linhas e das entrelinhas das fontes é fundamental.
Eu acho complicado, por exemplo, Pappé, em nenhum momento, citar Zeev Sternhell. Complicadíssimo. Baruch Kimmerling não é historiador, mas acho complicado Pappé não o levar em conta. Eu acho complicado ele transformar toda a historiografia israelense em Anita Shapiro e no atual Benny Morris. Foi o Benny Morris, aliás, aquele da década de 1980, que trouxe um debate importantíssimo para a historiografia israelense. É esse debate que abriu as portas para discussão se foi limpeza étnica ou não.
Bom, não sei se vocês já perceberam: eu não sou exatamente simpático a agendas militantes da História (risos). Mas vamos agora ao tema! Se você parte do pressuposto de que nós estamos falando de um movimento colonialista e excludente e que percebe aquele território como sendo de apenas um grupo étnico, você vai ter limpeza étnica. Mas mais do que isso: você só vai ter limpeza étnica. Vai se fechar numa percepção de que aquele Estado e que aquele território têm que ser limpos etnicamente. Então, o que o historiador vai fazer é buscar onde houve limpeza étnica, onde ele já sabe que houve. E aí, esse historiador vai pesquisar a partir de duas fontes fundamentais: documentos e entrevistas. O problema das entrevistas é que elas também são documentos. Elas não podem ser lidas como verdade absoluta – a Memória interrompe a História quando ela passa a ser lida como uma verdade absoluta. O que eu acho é que a formação do Estado de Israel é uma formação que foi produzida por um movimento sionista complexo e diverso. Não dá para você entender, por exemplo, que o massacre de Deir Yassin foi um massacre produzido pelo governo sionista como um todo. Mas também não dá para entender que o governo sionista não produziu Deir Yassin. E aí, a pergunta para o historiador é a seguinte: você está disposto a produzir um texto complexo? Ou você quer produzir um texto de propaganda? Se você quer produzir um texto complexo, você vai precisar falar sobre Deir Yassin e também vai ter que falar sobre Haifa, onde houve a argumentação de que não haveria expulsão de palestinos e onde efetivamente não houve expulsão. O problema é se o historiador está disposto a produzir um texto que seja complexo, diverso e que não seja de agenda.
Parece-me que aquilo que o Ilan Pappé faz – à esquerda – é o mesmo que a Anita Shapiro e o atual Benny Morris também fazem, mas à direita. Ele está querendo provar, com uma tese muito objetiva, a sua verdade a priori. E aí, nós deixamos de ter História; nós temos propaganda. E poucos temas, tal qual o conflito palestino-israelense, são tão comprometidos com propaganda. Da esquerda e da direita. Claro que não estou falando da boa historiografia de esquerda e de direita, mas a historiografia ruim da esquerda e da direita. Mas é fundamental saber que direita e esquerda produzem propaganda pra caramba. Logo, produzem a mesma coisa – e não é um bom trabalho historiográfico. O que me preocupa, portanto, não é historiografia de direita e de esquerda. É a boa e a mal historiografia. E uma outra coisa é o seguinte: quantos textos nós temos publicados em português sobre esse tema? Do Baruch Kimmerling? Do Hillel Cohen, outro historiador muito importante de Israel? Quantos textos publicados em português brasileiro temos do Zeev Sternhell, que é uma referência fundamental? Nenhum. O que temos publicado, infelizmente, é propaganda: Ilan Pappé, Schlomo Sand, Benny Morris em sua produção atual. Então, acabamos por ter o seguinte: são as propagandas pró-palestina e pró-sionista – que são iguais – que determinam a historiografia sobre o tema no Brasil.
E porque você acha que são esses trabalhos que são publicados e não outros?
Nós não temos uma agenda editorial comprometida com a Academia no que diz respeito ao conflito; mas comprometidas com perspectivas políticas imediatas. Eu acho que quem está determinando a produção sobre o tema é gente que tem vínculo político com a agenda política. O que é uma tragédia. Não é à toa que temos traduções de historiadores de segundo plano. Schlomo Sand não é exatamente uma referência fundamental na historiografia israelense. E quando me refiro a autores de maior destaque que mereciam ser publicados, não estou falando apenas sobre a historiografia israelense não. Eu estou falando de pesquisadores, por exemplo, como Rashid Khalidi, que é um historiador palestino importantíssimo, e que pesquisa a questão palestina, entende suas origens e desenvolvimentos a partir de referências e análises de fontes. Khalidi não foi traduzido para o português. O que vai ser traduzido é Ilan Pappé, que escreve aquilo que todo mundo fica com um sorriso na cara quando lê; ou o Benny Morris, que agrada o “outro lado”. Quem está publicando aqui são as comunidades, não só judaicas e palestinas, mas também pessoas comprometidas politicamente com esse tema, mas “comprometidas” no pior sentido da palavra.
A Guerra do Yom Kippur, em 1973, abalou consideravelmente a confiança que Israel tinha no sistema de segurança, ao mesmo tempo que fortaleceu vários setores do chamado “mundo árabe”. Dentro de Israel, a guerra também acabou impactando fortemente nos movimentos pacifistas. Isso parece ter feito com que Israel prestasse mais atenção aos países árabes e deixasse a questão palestina para “mais tarde”. Você concorda? Isso pode ter agravado o problema?
Olha, concordando com alguns historiadores, eu considero que a Guerra dos Seis Dias (que completa 50 anos em 2017) só terminou em 1973. Isso, porque eu levo em conta um conceito da cultura política que essa guerra produziu. A cultura política da ocupação (ou cultura política da vitória), levou israelenses a pensarem que eram invencíveis. Quem produziu o Israel arrogante, referência de vitória absoluta, o ocupante, foi a vitória de 1967. E, pensando a posteriori, 1973 serve como um diminuidor dessa percepção. Na verdade, a questão palestina é uma questão mais complexa ainda. A questão palestina não surge exatamente em 1948 e nem em 1967, não pelo menos nas narrativas israelenses da História. Em 1967, a questão palestina é ainda uma questão absolutamente periférica. Eu não estou dizendo que ela não existia, mas que ela surge como elemento mobilizador da sociedade israelense e como referência nesse debate somente na década de 1980. Em 1987, com a Segunda Intifada, ou talvez um pouco antes, em 1982, com o Massacre de Sabra e Chatila, é quando quando se vai perceber soldados reprimindo crianças e mulheres, é quando a percepção do mundo do palestino surge como uma referência fundamental. Isso marca a sociedade israelense profundamente e faz com que ela comece a perceber o conflito palestino-israelense. A partir daí que movimentos como “Paz Agora” e outros movimentos de esquerda israelense vão surgir – em 1982, mais do que em 1973.
O que eu acho é o seguinte: o sionismo é um movimento nacionalista. E eu acho que houve uma tendência política do Estado de Israel em perceber seus parceiros de negociação como outros Estados Nacionais – isso até 1973 ou até 1982. Estados-Nação quando se relacionam com Estados-Nação estão em categorias iguais. Eu acho que essa é a questão. Um grupo nacional, um Estado-Nação, no caso Israel, percebe outro Estado-Nação como parceiro e acha que este Estado-Nação vai resolver a Questão Palestina. O problema é que Síria, Líbano, Jordânia e, principalmente, Egito e Arábia Saudita, não tinham interesse em resolver a Questão Palestina. Eles tinham interesse em resolver as suas questões com Israel. Eu acho que, na verdade, seria estranho se um Estado-Nação como Israel tivesse a preocupação de resolver a Questão Palestina. Nada mais compreensível do que um Estado-Nação perceber outro Estado-Nação e postergar a questão que não é nacional, pelo menos que não é exclusivamente nacional. O Estado-Nação com exército e fronteiras, mesmo que não sejam fronteiras bem delimitadas, tem uma certa dificuldade em lidar com a população civil ou com grupos não nacionalizados ou grupos nacionais sem Estado-Nação. O que vai acontecer é que a bomba da Questão Palestina estoura na cara de Israel em 1982 e volta a estourar em 1987.
Quando nós nos referimos à historiografia israelense sobre o conflito, falamos muito em um “grupo dos novos historiadores israelenses”, que incluiria pessoas como o Ilan Pappé, o Benny Morris, Tom Segev, entre outros. O que seria esse grupo? É possível falar em uma linha comum entre os historiadores deste grupo?
O que eu acho que acontece com essa historiografia que nós chamamos dos “novos historiadores israelenses” é que os historiadores começam a usar documentos. E os documentos são a “arma da historiografia”. A grande referência desses novos historiadores é o próprio Benny Morris, que vai buscar documentos que não estavam disponíveis até a década de 1980. São documentos que falam sobre 1948. E quando você tem documentos, você tem uma nova historiografia. Ou seja, uma historiografia “de verdade”. Antes, você tinha uma historiografia judaica, uma historiografia que apenas lidava com a memória. A tragédia é que essa nova historiografia israelense está virando uma pós-historiografia, voltando à questão da agenda. Não só uma agenda pró-sionista, mas também a agendas que são pseudo-palestinas. Agendas que sequer são pró-palestinas. Ou ainda, o caso da agenda do Benny Morris, que passou a ser a agenda da transformação do palestino no bárbaro. Alguns desses novos historiadores israelenses estão fazendo aquilo que os antigos historiadores faziam.
Você acha que nos próximos anos, a percepção que nós temos hoje do conflito árabe-israelense, do conflito palestino-israelense, sobre o Estado de Israel, da identidade judaica (seja lá o que se quer dizer com isso), da política do governo israelense, enfim, a percepção da nossa visão mais geral sobre o Oriente Médio pode ser modificada mediante a liberação de novos arquivos e novos documentos?
Sim, eu sempre acho isso. Eu acabei de voltar de Ramallaha agora. Eu participei de uma reunião com alguns membros do Fatah e a gente falou sobre História. E um dos assuntos que eu quis tratar com eles foi a necessidade de se estudar a questão do Holocausto, a postura dos palestinos durante a Segunda Guerra Mundial nos anos do Holocausto. Eu digo isso apenas para citar um exemplo. O que me surpreendeu é que existe uma abertura dos palestinos em relação à pesquisa em documentos palestinos que estão na Jordânia, que estão em alguns acervos universitários, etc. Eu acho fundamental que isso possa acontecer. Isso pode mudar a perspectiva que nós temos hoje do conflito palestino-israelense. Não só a perspectiva do lado israelense, mas do lado palestino também.
Outro risco que historiografia corre é o de se tornar uma historiografia patronal. É aquela historiografia que acredita que o palestino não tem agência, que o palestino é expulso e volta ao bel prazer do colonizador. Isso não é verdade. Eu acho, por exemplo, que a grande rebelião palestina de 1936 a 1939 é um excelente tema e ainda pouquíssimo pesquisado. Agora, para entender isso, você precisa entrar no campo percebendo palestinos e israelenses (grupos israelenses, grupos palestinos) como diversos e não fundamentando uma espécie de atitude e de uma relação de eternos algozes e de eternas vítimas. Isso seria uma tragédia para a memória palestina e para a história palestina. E aqui eu acho o seguinte: não só a abertura de documentos pode ser interessante, como cada vez mais, o debate entre historiadores palestinos e israelenses comprometidos com a pesquisa é fundamental. Nesse sentido, qualquer tipo de boicote a historiadores palestinos e israelenses por serem palestinos ou israelenses é uma tragédia para a História. Quem gosta disso é quem quer manter a História presa àquela referência que eu mencionei, da agenda política como fundamento.
Você está sempre entre Rio de Janeiro e TelAviv, entre Rio de Janeiro e Jerusalém. Além disso, você transita bastante pelas universidades brasileiras e israelenses. Você tem visto esse debate entre historiadores palestinos e israelenses acontecer?
Eu acabei de voltar de uma conferência em Jerusalém onde apareceram israelenses e palestinos discutindo História, Sociologia, etc. Eu acho que existe ou está se formando numa dimensão transacional. Às vezes, isso acontece em Jerusalém e TelAviv, mas às vezes acontece fora também. Eu também estive há pouco tempo na Brown University, nos EUA, onde houve uma conferência sobre os usos políticos da Nakba e da Shoah. E ali também, palestinos e israelenses estavam discutindo isso de maneira aberta.
É importantíssimo discutir o uso político de tragédias. Nós estamos vendo isso no Brasil de hoje, isto é, o debate da tragédia econômica como uma justificativa para qualquer coisa. Imagina isso sobre Holocausto e a Nakba. Quem vai discutir isso? Israelenses e palestinos. Aí, chega um árbitro absolutamente comprometido dizendo “não, o boicote é a melhor solução”. Você impede o debate e transforma esse debate em pessoas que concordam, em algo asséptico, bonitinho, fofo, entre pessoas comprometidas com agenda. Eu acho que é preciso esse debate entre palestinos e israelenses de maneira aberta e franca.
Nós falamos bastante sobre como a questão do conflito palestino-israelense aqui no Brasil está comprometida, pelo menos em parte, com agendas políticas. Será que em Israel não ocorre o mesmo?
A direita está comprometida com a agenda da exclusão e do boicote; a direita está comprometida com a não percepção do outro; a direita está comprometida com a agenda que quer transformar o outro em vilão. Essa direita, neste sentido, se compromete com a mesma agenda que esta esquerda meio caolha está se comprometendo no mundo com essa questão do boicote. Você tem uma rede de heróis, uma rede de gente de esquerda muito comprometida com o diálogo, com trocas, com percepção, onde eu vejo o diálogo acontecer.
Adentrando o campo da ciência política e da busca por soluções, alguns autores acreditam que um Estado binacional poderia ser a solução para o conflito israelense-palestino; outros, que essa solução passa pela criação de dois Estados. Você se identifica com alguma dessas duas soluções?
Olha, eu não sei. Esses são diagnósticos rápidos. Eu sempre desconfio deles. Qual a solução? Bom, primeiro, a questão binacional. E aí, vamos confundir um pouco quem está lendo a entrevista. A questão binacional, originalmente, é uma proposta que vem do movimento sionista. Grupos como a Hashomer Hatzair e o movimento Brit Shalom acreditavam em uma Federação Palestina-Israelense. Por quê? A ideia era nacionalizar o discurso judaico na diáspora transformando o discurso nacional (Sionista) em discurso binacional (ainda sionista). Então, a ideia de um Estado binacional não é, na sua origem, uma ideia antissionista; mas hoje ela é. Por quê? Porque ela não vem do mesmo lugar que ela vinha no início do século XX.
Eu vejo a solução do Estado binacional consensualmente construído, absolutamente legítima e positiva. A solução do Estado binacional como o que se fala por aí é uma outra tragédia. Eu acho arriscado falar sobre isso sem escutar o campo, sem escutar aquilo que está acontecendo no terreno. Na prática, ela vai contribuir, ao meu ver, para o fortalecimento de identidades locais, o que, sem um acordo prévio, vai fazer com que as identidades étnicas acabem se fortalecendo e grupos radicais, de cada lado, transformem a Palestina em uma nova Bósnia.
Eu ainda defendo a solução “dois povos, dois Estados”, mas esta solução está cada vez mais impossível por causa da construção de novas colônias israelenses nos territórios palestinos – construção ilegal, pouco pensada e que ameaça a própria existência do Estado de Israel democrático. É uma questão que vai em pouco tempo inviabilizar a vida democrática no Estado judeu. Eu acho que a construção das colônias agora por Netanyahu uma tragédia. Essa tragédia significa, em última instância, o fim da possibilidade de um Estado binacional. Mas há novas possibilidades criativas também: uma nova Federação, dois Estados e uma pátria, há arranjos que estão acontecendo no campo.
O que eu acho complicado é gente olhando daqui para lá e dando conselhos. Nós aprendemos tantas coisas no século XX sobre conselhos externos, nós temos tantas tragédias acontecendo de Ruanda a Bósnia, passando pela Armênia, que eu não sei se vale a pena a gente dar conselhos sobre como israelenses e palestinos devem resolver os seus problemas. Eu acho que, ao mesmo tempo, também não vale a pena boicotar os palestinos que conversam com israelenses. Eu acho que vale a pena deixar que eles conversem, deixando-os chegar a possibilidades que já estão acontecendo. Essa possibilidade de uma pátria para dois Estados, por exemplo, é absolutamente nova e que está se construindo agora.
Você mencionou que a palavra sionismo meio que virou um “palavrão”. Ano passado, por exemplo, a Universidade do ABC, em São Paulo – e você conhece bem essa história –, publicou um edital de concurso para docente e um dos pontos da prova escrita era: “conexões da branquidade e dos regimes racistas: apartheid, nazismo, sionismo”. Esse ponto gerou uma série de críticas na época. Por que o sionismo tem sido visto desta maneira? E uma provocação: muitos setores da esquerda, hoje, dizem que ser sionista e de esquerda, ao mesmo tempo, é algo impossível. Você concorda com essa impossibilidade?
A esquerda está dizendo muita coisa interessante, né? A esquerda está completamente perdida e ela funciona com a questão do conflito israelense-palestino da mesma maneira: perdida. E eu estou falando isso como alguém de esquerda. Nós temos que refundar perspectivas de esquerda, construir perspectivas que sejam menos excludentes, menos deterministas e menos julgadoras. Negar a possibilidade de ser de esquerda e ser sionista significaria negar a possibilidade de ser de esquerda e ser nacionalista. Agora, se você não nega a possibilidade de alguém ser um patriota francês e de esquerda, porque você vai negar que alguém seja sionista e de esquerda? É preciso um desconhecimento profundo da História para chegar e dizer isso. Então, você pode ser de esquerda e apoiar o fundamentalismo islâmico? É isso? É para aí que estamos caminhando?
Com relação especificamente ao concurso da Universidade Federal do ABC, eu tenho duas coisas para falar. A primeira, na verdade, eu já mencionei. Livros que são produzidos a partir da perspectiva da agenda e não da pesquisa acabam produzindo leitores vinculados à agenda e não à pesquisa. Nós estamos vivendo em um ambiente acadêmico sobre o conflito palestino-israelense que mostram saídas vinculadas a perspectivas políticas individualistas: a minha X a sua, o que eu acho X o que você acha, etc. E aí a gente produz traduções de livros que são lamentáveis. Eu acho que isso acaba produzindo intelectuais que nascem e crescem nesta cultura. Além disso, há intervenção sim – tanto intervenção pró-sionista quanto pró-palestina – de grupos de pressão que querem fazer com que concursos, matérias, etc., sejam vinculadas às suas perspectivas políticas.
Há um segundo ponto. Eu estive na Universidade Federal do ABC, conversei com os professores de lá, disse que essa comparação entre nazismo, sionismo e apartheid é, no mínimo, pouco cuidadosa. Surpreendentemente, eles apoiaram, entenderam, perceberam que ali houve uma tentativa de grupos colocarem essa questão. Agora, ao mesmo tempo que eu acho isso trágico, eu acho trágica também a maneira como a Confederação das Entidades Israelitas do Brasil entraram no episódio do concurso; o concurso precisa ter temas para acadêmicos e não para a confederação israelita, não para a polícia. Isso se resolve de outro jeito. Eu acho que o ponto do concurso foi uma tragédia, mas acho que a intervenção que vimos da confederação também foi. Nós estamos em uma situação que, ou se cria uma agenda política que tem a ver com a Academia que estuda o conflito palestino-israelense, ou fechamos a Academia e deixamos as federações atuarem. Como é claro que eu estou do primeiro lado e não deste segundo, acho que nós não temos opção. Temos que saber criar diálogos. Fui à Universidade Federal do ABC na época e fui absolutamente bem recebido. O debate foi muito interessante e nós estamos tentando organizar agora um seminário internacional na universidade.
Falando sobre o cenário internacional atual. Você acha que Donald Trump na Casa Branca pode afetar as relações entre Estados Unidos e Israel?
Olha, a menor das preocupações que eu tenho com Donald Trump é a relação Estados-Unidos-Israel. Trump é uma tragédia em todos os sentidos, em todos os níveis. Eu acho que se eu fosse um historiador do Holocausto eu estaria mais preocupado do que sendo historiador do Oriente Médio. Eu acho que Donald Trump trouxe para o debate o que há de pior na sociedade americana. Acho que Stephen Bannon é quem está dando as cartas na administração Trump. O conflito palestino-israelense está dentro deste bojo: a perseguição a estrangeiro imigrantes, especificamente de origem muçulmana. A percepção do conflito palestino-israelense vai se dar para Trump a partir desta lógica.
Que isso fique gravado: a ocupação dos territórios palestinos (e de suas populações civis) por tropas militares israelenses é uma tragédia para ambos os povos. Eu não vejo nenhuma intenção do Trump em viabilizar possibilidades para a criação de um Estado palestino. O Trump, que deve agir de maneira belicosa com o Irã e ameaçadora com a Europa e com a China, pode ameaçar as relações históricas que os EUA tinham com México e Canadá; pois bem, a meu ver, há riscos de a política de Trump levar palestinos e israelenses de novo para o campo de batalha e não para o campo de negociação.
Ano passado, a Parada do Orgulho Gay colocou milhares de pessoas nas ruas de TelAviv. E isso tem acontecido todos os anos em Israel. Além disso, muitos são também os movimentos sociais e grupos políticos que são contra as atuais políticas de assentamentos. Isso parece colocar à prova uma imagem estereotipada de Israel, um Israel unidimensional e homogêneo, formado apenas por pessoas e setores conservadores e de direita. No Brasil, essa imagem ainda é muito poderosa, sobretudo entre certos setores da esquerda. Você pode falar um pouco sobre esse Israel multicultural que nem sempre as pessoas são capazes de enxergar?
Primeiro, eu acho que a questão gay é uma questão bastante complicada. Pois há gays que são a favor da ocupação. O exército de Israel, por exemplo, consegue, fazer isso de uma maneira muito eficiente. É um exército cuja tolerância com a questão gay é maior do que em outros lugares do mundo, mas muito menor com a questão feminista. Então, nós precisamos tomar cuidado. É possível, por exemplo, que soldados religiosos ou que o rabinato impeça atividades de mulheres e homens conjuntamente, mas que vejam como menos problemática uma atividade envolvendo gays. Temos que relativizar para que Israel não se torne o “país gay, livre, etc.”. Não é exatamente isso. Em Jerusalém é muito mais difícil ser gay do que no Rio de Janeiro. Em Tel Aviv, não; mas em Jerusalém, sim. Israel é diverso, complexo e etc.
A perspectiva da esquerda brasileira sobre Israel é a de um clube. Esse clube tem sócio e esses sócios tem carteirinhas. É uma perspectiva muito pouco complexa e diversa. Mais do que isso: para mim, a questão mais grave aqui é que se trata de uma perspectiva vinculada a uma ideia de conspiração, como se houvesse alguém que determinasse de maneira objetiva o que acontece em Israel. É como se a esquerda de lá não fosse de esquerda. É como se eu, falando sobre a ocupação, estivesse fazendo propaganda a favor de Israel. Isso tem a ver com o tema da teoria da conspiração que é utilizada pela esquerda brasileira para se falar de Israel. Ontem mesmo, eu fui acusado de ser parceiro de Crivella e Bolsonaro porque levamos gente de esquerda para conversar com palestinos e israelense contra a ocupação. Porque na perspectiva dessas pessoas isso é parte de um “mesmo jogo”. Eu acho isso de um perigo enorme. A dimensão conspirativa da história pode levar a gente a lugares tão complicados, que eu não vejo nenhuma solução a não ser que a esquerda abra mão dessa perspectiva e passe a perceber Israel como um lugar complexo como vários lugares do mundo são. É uma dimensão quase orientalista de Israel, mas que utiliza as referências do Pós-Colonialismo para justificar esse orientalismo. É perigosíssimo.
Agora, vamos ao antissemitismo. Antissemitismo é um termo complicado e complexo, até porque a direita sionista utiliza esse termo para atacar qualquer pessoa que critique Israel. Isso é terrível. Agora, não tenha você dúvida alguma que alguns elementos da esquerda, quando utilizam as referências conspirativas para tratar de Israel, estão falando de conspiração judaica. E conspiração judaica é um elemento constitutivo do antissemitismo. Então, tem antissemitismo aí. O problema é que nós perdemos o direito de falar sobre isso, porque a direita sionista utiliza esse termo para qualquer coisa. Se alguém falar mal do Netanyahu vira antissemita; falar mal das ocupações vira antissemita. Assim, eu seria um antissemita nesta perspectiva. Essa esquerda e essa direita estão no mesmo lugar, você está entendendo? Eu não tenho dúvida de que essa dimensão homogeneizadora da sociedade israelense está vinculada a essa percepção conspirativa.
Acabamos de falar de generalizações políticas. Quando penso neste tema, sempre acho que as obras de Edward Said podem nos ajudar a desmistificar esse tipo de leitura. Que você acha?
Totalmente. O método de análise dele é muito importante. Said é uma pessoa importante para se entender o conflito palestino-israelense a partir do que ele chama de “encontro de civilizações” e não de “choque de civilizações”. É fundamental ler Edward Said assim como é fundamental ler Mahmoud Darwish, ler Ibrahim Abu Lughod e aquilo que vem às mãos e que não é agenda política. O problema da chave do orientalismo é quando ela só funciona para um lado. O Said deixou um grande legado, mas não só para falar da diáspora e do exílio palestino; ele nos deu um método de análise para se entender a sociedade israelense quando ele fala de orientalismo. Ele pode ser usado para esses dois lados.
Michel, chegamos ao final de nossa entrevista. Para encerrar, você pode falar um pouquinho sobre o que está acontecendo neste momento importante na historiografia israelense. Que tema está provocando grandes debates nas universidades?
Olha, não só nas universidades, mas na sociedade israelense de um modo geral, o tema palestino-israelense continua sendo uma referência importante. O tema dos judeus orientais, os Mizrachim, também é fundamental – há muitos pesquisadores que defendem a ideia de que há uma espécie de colonização cultural de judeus orientais, que nos primeiros anos do Estado de Israel teriam sido propagados valores seculares e ocidentais a populações tradicionalistas e orientais. Pois bem, hoje o debate mudou, há sociólogos que denunciam justamente o contrário: que hoje são impostos a uma sociedade israelense asquenazi secular a ideia de uma perspectiva multiculturalista, na qual o espaço da secularização está restrito. Aqui é interessante perceber como se desenvolvem movimentos culturais e políticos contra a ideia de democracia racial, que em Israel se chama kuritur, na qual você mistura tudo, e isso acaba fazendo desaparecer e oprimindo referências a grupos socialmente minoritários, que se sentem discriminados pelo sionismo hegemônico. Hoje parece que o debate está se invertendo, se discute os limites do multiculturalismo israelense. Ou seja, para além dos palestinos, há outros grupos que também são temas de pesquisa em Israel atualmente. Esse tipo de debate, por sinal, ainda é muito pouco conhecido no Brasil, isto é, imigração de orientais e seus resultados políticos em Israel. Outro debate que também é interessante é a questão do debate universalista do Holocausto, muito importante hoje quando relacionado à educação, isto é, como se educar para uma perspectiva universalista do Holocausto.
Esses são dois pontos de vista que precisamos trazer para o Brasil: debate sobre judeus orientais e uma perspectiva universalista do genocídio – que não somente aquela perspectiva particularista, excludente, careta, clássica e essencialista sobre a ideia Holocausto. Isso poderia nos ajudar a entender melhor, no Brasil, a questão da escravidão negra, a questão do racismo, o debate sobre identidade, etc. A sociedade israelense passou muito tempo com esse desafio – o Holocausto seria uma questão judaica ou universal. Eu acho então que se nós, no Brasil, entendêssemos melhor o que aconteceu em Israel, poderíamos compreender melhor identidade negra, escravidão, etc.
Como citar esta entrevista
GHERMAN, Michel. Oriente Médio: entre historiografia e agendas políticas. Bruno Leal entrevista Michel Gherman. In: Café História. Publicado em 27 abr de 2017. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/oriente-medio-entre-historiografia-e-agendas-politicas/. ISSN: 2674-5917.
Excelente entrevista com o Michel Gherman. Ao ponto. Concordando ou não, o entrevistado toca em questões discutíveis, teses, situa sua posição em relação aos assuntos abordados, não poupa o lugar institucional do qual fala, não tergiversa e, tudo isso, surpreendentemente, com algum humor. Vida longa à equipe Café História!
Obrigado, Fred. Precisamos mesmo enfrentar temas difíceis.
O Café História é um espaço fantástico! A pesquisa histórica deve ser crítica, aberta, pulsante, viva, sem vetos ou interdições a nenhuma questão, autor, livros ou posicionamento. Gostei muito da franqueza do entrevistado. E coroada pela clareza, o resultado não poderia ter sido melhor. Parabéns ao entrevistador e ao entrevistado pela aula.
Amei a entrevista! Achei muito interessante o Michel apresentar a deficiência da historiografia em se separar de agendas políticas e saber usar, de fato, os documentos.
Conheci o Café História faz pouco tempo, mas já me apaixonei pelo espaço. Parabéns a todos os envolvidos.
Valeu, Vitória!
Diz o historiador Michel Gherman: “A tragédia é que o diálogo na historiografia sobre o sionismo está dividido entre comprometidos com a esquerda e comprometidos com a direita; entre comprometidos com os palestinos e comprometidos com Israel. Isso é a morte da história.” Concordo integralmente com essa observação. Na verdade, mudando o que deve ser mudado, penso que ela defina uma situação até mais ampla vivida pela produção acadêmica de história atual. Temos visto isso em relação a vários nichos de estudos. Em alguns casos, acompanhando a monografia, a dissertação e a tese de alguns pesquisadores se verifica nitidamente uma intenção, uma instrumentalização mesmo da pesquisa, realizada somente para embasar um entendimento que nada tem a ver com o que se conseguiria numa pesquisa rigorosa, conduzida sob outras motivações. Como diz o autor, “Alguns historiadores perderam a capacidade de construir tese e hipótese de acordo com a pesquisa e passaram a construir tese e hipótese com base em agenda política.” Mais uma vez eu concordo e considero isso um atentado contra a profissão de professor, pesquisador, historiador. E, mais que isso, vejo que alguns historiadores, sem cerimônia, não percebem ou não estão nem aí para o desdobramento de sua maneira de conduzir as conclusões de sua pesquisa: o apequenamento, a desimportância, a irrelevância a que pode condenar da História! Há casos “vistosos” sobre isso, mas poucos na área comentam ou criticam abertamente. Teses que começam com uma receita pré-determinada (a bandeira política do autor) e terminam com uma conclusão (tudo é isto ou é aquilo, um lado é do bem o outro é do mal, sempre uns nós e eles, etc.) cujo comportamento social do pesquisador já evidenciava. Isenção é uma quimera! No entanto o rigor e a honestidade intelectual de quem se propõe a uma pesquisa pode atenuar um pouco as injunções de gostos pessoais sobre o resultado de uma pesquisa. Pesquisar, procurar honestamente compreender um processo, não é fácil! É difícil alcançar o rigor, honestidade intelectual exige o sacrifício de alguns gostos pessoais (que na verdade sempre estarão presentes em alguma medida, claro), toda narrativa a qual dá sustentação uma documentação nem sempre caminha no sentido suspeitado previamente pelo pesquisador. Óbvio! Assim, penso que entrar numa pesquisa já tendo como certo que “a” é mau e “b” é bom, e levar isso até o final contra tudo que prove o contrário ou evidencie as inúmeras nuances, certamente não contribui para a produção de boa pesquisa histórica.