No dia 11 de abril de 1961, mais de 500 jornalistas do mundo inteiro reuniram-se em Jerusalém, Israel, para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, burocrata nazista responsável pela deportação de centenas de milhares de judeus para campos de concentração. Um desses jornalistas era o brasileiro Zevi Ghivelder, então com 27 anos, repórter da Manchete. Em uma de suas primeiras correspondências enviadas à redação da extinta revista, Ghivelder diz: “O que mando aqui é apenas um resumo do que se passa neste julgamento. É um punhado de impressões. E ainda estamos longe do fim”.
A feeling do jornalista estava correto. O julgamento de Eichmann, capturado um ano antes por agentes do serviço secreto Israelense, o Mossad, na Argentina, iria desdobrar-se até agosto, e sua sentença – morte por enforcamento – só seria proferida em dezembro daquele ano, dando matéria-prima de sobra para os repórteres.
Para conversar sobre este que é considerado hoje um dos julgamentos mais importantes do século passado, entrevistamos Zevi Ghivelder, com 86 anos completados no final de abril. A entrevista foi feita por e-mail, respeitando o distanciamento social. Na conversa, o jornalista falou sobre os preparativos para a viagem, o clima do tribunal e também da cidade de Jerusalém naqueles dias.
Zevi Ghivelder nasceu no Rio de Janeiro, em 28 de abril de 1934. Apesar de formado em Direito, dedicou sua vida ao jornalismo. Em 1959, antes de cobrir o julgamento de Eichmann, em parceria com Arnaldo Niskier e Arnaldo Cherzman, Ghivelder inaugurou o primeiro programa de TV judaico, chamado “Israel em foco”, na TV Rio. Foi redator de programas de televisão, produziu várias atrações no campo da teledramaturgia, diretor do grupo Manchete e diretor dos telejornais da Rede Manchete de Televisão. É autor dos livros “As Seis Pontas da Estrela”, “Missões em Israel” e “Sonetos Atentos”.
Em que circunstâncias se deu a escolha da Manchete de enviar um correspondente a Jerusalém? O fundador da revista, Adolpho Bloch, era judeu. Imagino que episódio o marcou bastante pessoalmente, não?
A decisão da revista Manchete de cobrir em Jerusalém o julgamento do nazista Eichmann se deu por atrevida insistência minha. Eu tinha apenas dois anos de jornalismo e trabalhava como repórter e redator. Tanto insisti, tanto insisti, com o decidido apoio do Justino Martins, diretor da revista, que o Adolpho Bloch acabou concordando. Claro que, assim como todos os judeus do mundo, ele estava mobilizado em função do julgamento.
Como foi a viagem? Você foi sozinho ou teve mais alguém da revista te acompanhando? A revista arcou com todos os custos da operação?
Viajei sozinho e a revista arcou com todas as despesas da cobertura, tais como passagem e hospedagem, tendo sido dispendioso porque fiquei seis semanas em Jerusalém. No dia 7 de abril de 1961 embarquei no Rio, pela antiga Panair, rumo a Roma, onde fiz conexão para Israel. Do aeroporto de Tel Aviv segui direto para Jerusalém. Era madrugada e eu não tinha reserva de hotel. Junto com um jornalista escocês, que havia conhecido no voo, e cujo nome esqueci, rodamos num táxi pela cidade mal iluminada até conseguirmos dividir um quarto num três estrelas chamado President. No dia seguinte, com a ajuda de um amigo brasileiro, o arquiteto David Reznik, encontrei um agradável hotel, bem em conta, perto do prédio onde aconteceria o julgamento. O David tinha trabalhado no Rio como assistente do Oscar Niemeyer e mantinha em Israel um bem sucedido escritório profissional.
Em Israel, como foi a sua recepção pelas autoridades responsáveis pelo tribunal? Você já saiu do Brasil credenciado?
O tribunal foi instalado no prédio de um centro social chamado Beit Haam (Casa do Povo), onde já havia um grande auditório com plateia e balcão. No mesmo edifício funcionava o centro de imprensa do tribunal e meu credenciamento foi efetivado com um mínimo de burocracia. Foi-me designado o assento número 18 da fila H. Era um bom lugar porque ficava à esquerda de quem entrava, a pouca distância da jaula de vidro que abrigava o Eichmann. O diretor do centro de imprensa era um cidadão de origem britânica, sempre elegante, cabelos brancos, que tratava os jornalistas do mundo inteiro com extrema afabilidade.
Como era o cotidiano da cobertura em Jerusalém?
O cotidiano naturalmente consistia em assistir ao julgamento, que não me recordo se começava às nove ou às dez da manhã. Havia uma pausa para o almoço e os trabalhos recomeçavam às duas da tarde e terminavam por volta das cinco. Naquele tempo não havia gravadores portáteis e eu fazia as anotações pertinentes durante todo o tempo e só depois começava a escrever um longo texto porque o meu prazo de entrega era semanal. Antes da entrada dos juízes, um funcionário com uniforme policial gritava em alta voz para todos se levantarem. Certa ocasião, num dos intervalos, conversei com ele, que falava um razoável português: na juventude, havia morado alguns anos em Belo Horizonte.
Como era a área de trabalho da imprensa? Você transmitia textos e informações diariamente para o Brasil?
A área de imprensa se situava num grande salão com dezenas de mesas que eram ocupadas de forma aleatória. No mesmo recinto havia uma lanchonete sempre muito concorrida. Como já disse, minha obrigação era no sentido de cumprir apenas prazos semanais, mas a remessa era complicada. Primeiro, ia ao centro fotográfico onde eram disponibilizadas para compra dezenas fotografias. Escolhia as que me serviam e as colocava junto com o texto num envelope. No mesmo dia, viajava de Jerusalém para o aeroporto de Tel Aviv, onde começava a procurar tripulantes da Air France. Ao ser bem acolhido por um comandante ou uma comissária, confiava o material e pedia que fosse entregue no balcão da Varig no aeroporto de Orly. De lá, o envelope seguia para a loja no Champs-Elysées, no centro de Paris, onde uma amiga do Justino mandava-o para o Rio de Janeiro. A revista fechava às segundas-feiras, no fim da tarde. Soube depois, que minha primeira reportagem só chegou à redação da Manchete pouco antes da hora do fechamento. Foi um sufoco.
Como era a convivência com os repórteres de outros países? Haviam outros brasileiros? Você teve algum contato com Hannah Arendt, que cobria o evento para a revista New Yorker?
Todos os jornalistas da imprensa diária de dezenas de países do mundo tiveram uma grande frustração no dia 12 de abril, seguinte ao do início do julgamento. O assunto Eichmann, que era para estar nas primeiras páginas, foi para a segunda página por causa de outros dois acontecimentos: o voo espacial pioneiro de Gagarin e a invasão americana na Baía dos Porcos. Eu mantinha com todos relações de cordialidade, tendo o inglês como idioma corrente. Dentre os 400 jornalistas credenciados, eu era o mais jovem.
A Hanna Arendt só vi uma vez, de longe, enquanto ela tomava café na lanchonete. No recinto do tribunal o assento ao meu lado foi ocupado por um francês, com quem troquei ideias, mas cujo nome não gravei. Ele foi embora depois da primeira semana e só então soube que se tratava do escritor Joseph Kessel, de quem já tinha lido o livro “L’Equipage”, que ganhou grande fama quando seu romance, “Belle de Jour”, foi adaptado para o cinema. Amizade, mesmo, só fiz com o consagrado jornalista americano Robert St. John que antes do julgamento já tinha escrito consistentes biografias de David Ben Gurion e de Gamal Abdel Nasser.
Havia mais dois brasileiros cobrindo o tribunal. Uma moça chamada Mitsi, cujo sobrenome não lembro, que não era jornalista profissional, porém mandava notícias para o Estadão, e o Janos Lengyel, húngaro de nascimento, que já era meu amigo, excelente correspondente internacional do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.
O Eichmann que você conheceu em Jerusalém era diferente do Eichmann que você imaginava antes da viagem?
Não precisava imaginar o Eichmann porque sua fotografia, por quase um ano, já frequentava as páginas dos jornais. Ele foi capturado em Buenos Aires no dia 20 de maio de 1960. Quando o vi na jaula de vidro, pela primeira vez, sua figura não me causou impacto. Durante as seis semanas em que o observei, passou quase todo o tempo fazendo anotações. Quando o depoimento de alguma testemunha o perturbava, torcia o nariz para o lado direito.
Como era o clima nas ruas de Jerusalém naqueles dias de julgamento?
Jerusalém viveu de forma rigorosamente normal durante o julgamento. Foi emocionante o Dia da Memória, em homenagem às vítimas do Holocausto, quando ecoou uma sirene e todos, veículos e pedestres, ficaram parados por um minuto.
Em que momento você se deu conta da magnitude histórica do julgamento?
Eu já tinha me dado conta da magnitude histórica do julgamento do Eichmann quando insisti para que a Manchete me enviasse a Jerusalém.
Como foi a recepção dos textos que você publicou na época, na Manchete?
Acredito que a recepção tenha sido boa porque quando voltei ao Brasil fui convidado para fazer muitas palestras. As reportagens que escrevi sobre o julgamento estão no livro que publiquei, “Missões em Israel” (editora Imago, Rio de Janeiro, 1994).
O que você achou do resultado do julgamento?
Adolf Eichmann foi a única pessoa condenada à morte em Israel, desde que o país existe. Sou contra a pena de morte, mas tendo em vista todas as condenações à morte do Tribunal de Nuremberg, inclusive outras, como a do comandante do campo de concentração de Auschwitz, a sentença proferida em Jerusalém não poderia ter sido diferente.
Como citar esta entrevista
GHIVELDER, Zevi. Este jornalista brasileiro cobriu o julgamento do nazista Adolf Eichmann. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-reporter-brasileiro-que-cobriu-o-julgamento-de-eichmann/. Publicado em: 20 jul. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [informar a data].
Que pena que o Sr. Zevi não nos tenha dado detalhes mais claros do acontecimento, tais como os itens referentes à Sra. Arendt, que depois foram expressos em seus livros. Estes foram momentos importantes da conclusão, ao menos parcial, daqueles momentos escabrosos da Segunda Grande Guerra, em que muitas vidas foram destruídas sem razão nenhuma pelos nazistas e fascistas. A filosofia por detrás dessas mores é o que mais impressiona pela sua sordidez e banalidade. No pé em que a coisa ia, facilmente toda a população brasileira seria também arrasada, já que não somos arianos, como queria Hitler de seu lado. Creio que isso possa resolver o problema dos mulatos nazistas, no presente momento de nossa História.
Obrigado pelo comentário, Geraldo.
Infelizmente, não é o que vemos. ?
Eu tinha 15 anos na época, e ouvia pelo radio um programa transmitido de Jerusalem por um jornalista brasileiro. Se bem me lembro era gaucho. Na TV passavam apenas os video-tapes, que vinham de aviao, levava varios dias. E nos jornais, as materias vinham pelo telex, e as fotos via radio. Hoje com o progresso tecnologico, a ideologia equivocada dos nazistas acabou sendo realimentada e nao extinta. Lamentavel.
Interessante esta observação de que foi a única pena de morte executada pelo governo de Israel,esquecendo que,fora da área jurídica oficial,este mesmo governo matou milhares por bombardeio proposital em áreas civis em Gaza,na Cisjordânia,no Líbano e através de assassinatos ditos “seletivos” contra palestinos mundo afora.