No aclamado filme de Fernando Meirelles, “Dois Papas”, o Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) e o cardeal Jorge Mario Bergoglio (futuro Papa Francisco e interpretado por Jonathan Pryce) se encontram em Roma, em algum momento do ano de 2012. Os dois travam uma discussão bem interessante, com visões antagônicas, sobre a situação da Igreja Católica.
– Acha que a Igreja está falhando? – pergunta Bento XVI.
– Estamos perdendo fiéis – responde Bergoglio preocupado.
– E isso é culpa da Igreja… e não do relativismo e da permissividade!? Como dizem? Do “vale tudo”!? Pois é. Você disse que a Igreja é narcisista, ou será que foi mal interpretado!? – questiona o Papa, provocando o cardeal.
– Não… eu disse isso – confirmou resignado Bergoglio.
E continuou: – Parece que sua Igreja…
– Minha Igreja!? – retrucou Bento XVI.
– Nossa Igreja… está indo por um caminho com o qual não consigo compactuar. Ou não está indo para lugar algum… num momento que pede mudanças. Parece que não fazemos parte desse mundo, não pertencemos a ele, não estamos conectados – insistiu Bergoglio.
Nesse momento, Bento XVI relembra de um antigo adágio eclesial inglês: – “Uma Igreja que se casa com uma era…”
– “…ficará viúva na próxima era”. Eu sei! – completou impaciente Bergoglio.
Inconformado e irritado com o caminho da discussão, Bento XVI a encerra de forma ríspida:
– Mudança é concessão!
Independentemente se esta discussão aconteceu ou não, o fato é que Meirelles captou muito bem as questões que estão em jogo a partir das diferentes compreensões (uma vinda do centro do poder eclesiástico e outra da periferia) acerca do papel que a Igreja deveria exercer no mundo: quanto de mudança e quanto de continuidade a Igreja, esta instituição bimilenar, deve reter para que seja minimamente reconhecida em nossa sociedade hiper complexa?
A questão não é nova, pois foi também diante deste dilema que o Papa João XXIII (1958-1963) provocou uma verdadeira “revolução copernicana” na Igreja ao convocar o chamado Concílio Vaticano II (1962-1965). E a palavra de ordem era “aggiornamento”: a atualização da Igreja.
O Concílio Vaticano II
O Papa João XXIII (1958-1963) anunciou no dia 25 de janeiro de 1959 a decisão de convocar um novo Concílio, há menos de 90 dias de sua eleição para sucessor de Pio XII (1939-1958).
Um Concílio é uma série de reuniões de autoridades eclesiásticas com o objetivo de examinar e decidir sobre questões que envolvem a fé e os dogmas da Igreja Católica. Um Concílio pode demorar anos. Um dos mais importantes na história da Igreja foi o Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563, quando a Igreja se reuniu para reafirmar os dogmas de fé questionados pelos protestantes. Este Concílio marca a entrada da Igreja na Era Moderna.
João XXIII anunciou a intenção de convocar o novo Concílio durante o discurso a um pequeno grupo de cardeais da Cúria Romana, reunidos para a celebração do encerramento da semana de orações pela unidade das igrejas, em Roma, na basílica de “São Paulo Fora dos Muros”.
Seguramente, ninguém esperava de um Papa conservador uma surpresa tão clamorosa, muito menos de um Papa quase octogenário. O anúncio chegou inesperado, imprevisto e surpreendente em quase todos os ambientes (especialmente na Cúria Romana), dominados pelo clima da Guerra Fria e satisfeitos com o catolicismo estacionado em suas certezas.
Naquela mesma reunião, o Papa falou de “tempos de renovação” (“aggiornamento”). Conforme ele explicou aos presentes, a Igreja estava de fato às portas de uma conjuntura histórica de densidade excepcional, na qual era necessário saber distinguir “os sinais dos tempos”. Queria um Concílio de “transição de época”, que pudesse passar a Igreja da época “pós tridentina” (posterior ao Concílio de Trento) para uma fase nova de diálogo com a sociedade moderna.
Após o anúncio, deu-se uma primeira etapa: a fase antepreparatória (1959-1960) do Concílio. O Papa fez um convite a cada um dos bispos para indicar os problemas e os temas que o Concílio deveria enfrentar. Nos meses seguintes chegaram ao Vaticano cerca de 2.000 pareceres do mundo inteiro. A maioria desses escritos testemunhava surpresa e desorientação.
Nada disso, no entanto, foi capaz de parar o evento. Logo depois da fase antepreparatória, seguiu-se a chamada preparação oficial (1960-1962). Uma Comissão Central (dominado por membros da Cúria Romana) foi colocada à frente de dez comissões que deveriam, por sua vez, preparar vários documentos temáticos. No decurso de pouco mais de dois anos de trabalho, a máquina preparatória produziu, a partir das sugestões enviadas, mais de 70 projetos de textos (“Esquemas”), dedicados a temas dos mais diversificados possíveis, coberto por espesso segredo e “embrulhado” na língua latina. Foi nesta fase também que ocorreu a convocação oficial do Concílio, no dia 25 de dezembro de 1961, através da bula Papal “Humanae salutis”.
Em outubro de 1962, deu-se início às Aulas Conciliares, nome oficial dado às sessões de debates/discussões entre os bispos participantes. Essas sessões se repetiram sempre entre os meses de outubro e dezembro dos outros três anos (1963-1965).
No dia 11 de outubro de 1962 João XXIII deu início ao Concílio em si. Ele seria realizado em 4 sessões, só terminando no dia 8 de dezembro de 1965. Como era a segunda vez que um Concílio era realizado no Vaticano, ele ficou conhecido como Concílio Vaticano II.
O total de participantes no evento conciliar foi de 3.060 membros com voz e voto, sendo: dois Papas; 1.059 da Europa; 408 da Ásia; 352 da África; 74 da Oceania; 416 da América do Norte; 89 da América Central; 531 da América do Sul (311 só do Brasil); e 129 Superiores Gerais religiosos.
O Papa João XXIII veio a falecer entre a 1ª e 2ª sessões do Concílio (junho de 1963). Mas isso não afetou o andamento do evento. Para seu lugar foi eleito Papa o arcebispo de Milão, cardeal Giovanni Battista Montini, que tomou o nome de Paulo VI (1963-1978) e deu sequência ao Concílio convocado por seu antecessor.
Isso não quer dizer que Paulo VI nada tenha feito. Ele procurou, por exemplo, ajustar o regulamento da assembleia conciliar. O novo líder da Igreja também procurou fazer uma intervenção para que os documentos fossem aprovados quase por unanimidade para que o Concílio, assim, não passasse uma imagem à opinião pública de uma Igreja dividida. Para conseguir esta grande maioria, teve-se que aceitar numerosas emendas (modi) aos textos conciliares por parte de uma minoria de bispos que tinha dificuldades em aceitar um documento sem correções, por achá-lo excessivamente “progressista”.
O Concílio Vaticano II pode ser definido, portanto, como uma série de reuniões de bispos com o intuito de alinhar a Igreja Católica com os “novos tempos”. A ideia central desse Concílio era modernizar a Igreja, reconectá-la com os seus féis, que vinham, pouco a pouco, se afastando. Por isso, diferentemente dos Concílios anteriores, marcados por anátemas e condenações em matérias de fé e moral, o Vaticano II foi chamado de “Concílio pastoral”, pois visava a construção de um diálogo mais aberto com a sociedade.
Os debates nas assembleias conciliares não foram fáceis, porque tocaram em temas sensíveis do catolicismo. Discutiu-se, por exemplo, a relação com outras religiões, inclusive com outras Igrejas Cristãs, hierarquias, novas formas de se pensar a fé e a relação com os fiéis. Mas os debates não foram difíceis somente por isso. Eles provocaram tensões porque também havia diferentes formas de interpretar palavras como “atualização” e “modernização”.
Do Concílio Vaticano II surgiam várias novidades. Uma delas diz respeito a descentralização do poder Papal. Os Papas dividiram dali em diante mais do seu poder com os bispos. Além disso, as missas deixariam de ser rezadas em latim e passariam a ser rezadas nas línguas de cada país. Passou-se ainda aceitar que seria possível conhecer Deus e a salvação em outras religiões. Outra novidade diz respeito a posição da Igreja em relação aos meios de comunicação de massa. A Igreja deixa de julgá-los para a entendê-los como ferramenta a favor da evangelização. Por outro lado, algumas coisas não mudaram. A Igreja, por exemplo, continuou condenando o aborto e o sexo antes do casamento, mesmo em meio aos debates sobre liberdade sexual. Ela também continuou refratária tanto ao capitalismo quanto ao comunismo.
Os documentos aprovados, ao longo das quatro sessões do Vaticano II, foram: quatro Constituições – sobre a Liturgia (Sacrosanctum Concilium), sobre a Palavra de Deus (Dei Verbum), sobre a Igreja (Lumem Gentium) e sobre as relações da Igreja com a sociedade (Gaudium et Spes) –, nove Decretos (sobre o ecumenismo, sobre os bispos, sobre os leigos, por exemplo) e três Declarações (sobre a liberdade religiosa, sobre a educação e sobre as religiões não-cristãs). Esses documentos deveriam, a partir de então, orientar a Igreja em todo o mundo, das maiores e mais importantes basílicas e catedrais até as mais simples e recônditas igrejas.
Da “primavera” ao “inverno” eclesial
A primeira época do pós-Concílio (1965-1978) despertou entusiasmo na Igreja. Para alguns analistas, foi uma autêntica “primavera”, como havia desejado João”: a renovação da liturgia, um novo impulso no diálogo com as Igrejas cristãs e com as religiões não-cristãs, a renovação da vida religiosa, uma nova consciência do laicato, o fortalecimento das Conferências Episcopais e a criação dos Sínodos em Roma, um grande aprofundamento e difusão da Bíblia etc. O adjetivo “conciliar” representava toda esta novidade, diante do “pré-conciliar”.
Mas o Concílio logo acabaria por suscitar críticas de setores mais conservadores, preocupados com a maior liberdade no campo da interpretação bíblica e com a ambiguidade de alguns dos documentos originados do Concílio. Essas críticas proliferaram também porque não se conseguiu uma síntese acabada entre a continuidade das tradições antigas e as novidades do Vaticano II. De fato, houve uma justaposição de teologias, o que permite duas interpretações diferentes do Vaticano II.
Os críticos apontam que foram cometidos abusos em liturgia, moral e ecumenismo. Alguns religiosos chegaram a abandonar a Igreja. Esta situação provocou, em muitos setores da Igreja, uma reação anticonciliar cujo símbolo foi o “cisma” conduzido pelo bispo francês Monsenhor Marcel Lefebvre (1905-1991), que acusou o Vaticano II de “protestante”, “modernista” e “pró-comunista”.
Mesmo sem chegar, porém, ao extremo de deixar a Igreja, muitos creram que o Vaticano II tinha ido longe demais, que se tinha que frear a recepção do Concílio, promover uma restauração, uma leitura do Vaticano II a partir da tradição do Vaticano I. Tal reação começou já no tempo do Papa Paulo VI, mas não ficou por aí, aprofundando e se consolidando nos pontificados de João Paulo II (1978-2005) e de Bento XVI (2005-2013).
Lentamente, passou-se da “primavera” ao “inverno” eclesial. E as críticas foram surtindo efeito. Assistiu-se a uma nova centralização eclesial, claramente nas mãos da Congregação para a Doutrina da Fé (dirigida pelo cardeal Ratzinger e futuro Papa Bento XVI); freou-se o ecumenismo, a liturgia e o papel dos leigos. A minoria, que no Vaticano II havia ficado de certo modo marginalizada, voltou a hastear as bandeiras da tradição pré-conciliar.
Vaticano II retomado
Com a chegada de um novo pontífice, oriundo da Argentina, uma nova etapa da recepção do Concílio Vaticano II se abriu. O pontificado do Papa Francisco (2013) deixa claro a contribuição chave das inovações do Vaticano II para a transição de um catolicismo centrado na Europa para um catolicismo global. Mais progressista que seu antecessor, Francisco afirmou que agora seria necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Vaticano II: seus fundamentos, seu horizonte teológico e pastoral, seus argumentos e o método usado. Especialistas dizem que a oposição ao Papa Francisco está enraizada na oposição ao Vaticano II.
Talvez estejamos assistindo o Vaticano II encontrar uma nova vida no combate que Francisco vem travando contra todas as formas tradicionais de “poder clerical”, a começar pela recente reforma da Cúria Romana, e no projeto de uma “Igreja sinodal”, mais participativa e horizontal, que Francisco deseja implantar nos próximos anos (2021-2023).
Talvez a mudança não seja uma concessão, mas sim uma necessidade.
Foto de capa: Os Padres conciliares sentados durante o Concílio Vaticano II. Foto: Lothar Wolleh (1930-1979).
Referências
ALBERIGO, Giuseppe (org.). História do Concílio Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1996 (vol. I), 1999 (vol. II).
___________. History of Vatican II. New York: Orbis Books, 2000 (vol. III), 2004 (vol. IV), 2006 (vol. V).
___________. Breve história do Concílio Vaticano II (1959-1962). Aparecida: Ed. Santuário, 2006.
BEOZZO, José Oscar (org.). A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965). SP: Paulinas, 2005.
Como citar este artigo
COUTINHO, Sérgio Ricardo. O que foi o Concílio Vaticano II? In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-que-foi-o-concilio-vaticano-ii/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 11 Abr. 2022.
[…] Sérgio Ricardo. O que foi o Concílio Vaticano II? In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-que-foi-o-concilio-vaticano-ii/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 11 Abr. […]