Nenhum outro evento foi tão determinante para a história dos Estados Unidos quanto a Guerra Civil (1861-1865), nem mesmo sua Independência (1776). Quando a poeira dos campos de batalha baixou, o país que emergia do maior conflito de sua existência era substancialmente diferente do que fora até então: não só a escravidão jazia ferida de morte, como a elite escravocrata do Sul, que havia controlado os desígnios da República por várias décadas, agora estava militar e economicamente derrotada. Além disso, a vitória da União sedimentou a hegemonia econômica do Norte industrializado em relação às outras regiões e, finalmente, encerrou (pela força) o debate sobre as possibilidades de secessão de qualquer uma das unidades da federação, inaugurando uma duradoura era de estabilidade política. Com tudo isso, os Estados Unidos, ainda no século XIX, puderam se alçar à condição de potência hemisférica inconteste e, mais tarde, de poder global, rivalizando em ambição e cobiça com os impérios europeus. Nunca, portanto, um acontecimento fora tão decisivo para os rumos da nação.
Por que a guerra?
O flagelo da guerra, lamentado por Abraham Lincoln, o 16º presidente dos Estados Unidos (1861-1865), tornou-se possível por uma série de fatores, dos quais, sem dúvida alguma, o principal foi a escravização de seres humanos. Na primeira metade do século XIX, ela se convertera no motor econômico do Sul, sobretudo pela importância internacional de sua produção de algodão – o King Cotton fazia (e desfazia) fortunas rapidamente. Como demonstram os historiadores Edward Baptist e Walter Johnson, entre 1800 e 1850, a economia sulista cresceu exponencialmente, graças à expansão da área dedicada ao cultivo algodoeiro e, principalmente, pela reprodução acelerada da servidão humana nos estados do Sul, resultante de um enorme tráfico interno de pessoas e da formação de plantations semelhantes a indústrias em sua organização e controle do trabalho escravizado. Para Baptist, a violência inerente a esse sistema fora fundamental para seu êxito: sem o chicote, nada disso teria sido concebível.
Sabendo disso, o baronato escravista usou de todos os recursos para assegurar tanto a preservação da escravidão, sua “instituição peculiar”, quanto a sua extensão continente afora. Graças ao seu poderio político, essa oligarquia conseguiu arrancar diversos compromissos do Norte, como, por exemplo, o Compromisso do Missouri (1820), que estabelecia um equilíbrio de poder entre estados escravistas e livres.
No entanto, em linhas gerais, a escravocracia controlava a República, impondo, dentre outras coisas, restrições à propaganda abolicionista no Sul, repelindo programas econômicos que ameaçassem seu livre-comércio com os países europeus, garantindo uma super-representação no Congresso e assegurando os territórios conquistados após a Guerra Mexicano-Americana (1846-1848) para a expansão da escravidão (com exceção da Califórnia). O Slave Power, segundo Eric Foner, era insaciável.
Concomitantemente, porém, crescia no Norte a convicção de que, para citarmos Lincoln uma vez mais, o país não poderia ser “metade livre, metade escravo” por muito mais tempo. Os eventos dramáticos da década de 1850 demonstraram a correção destas apreensões. No ano de 1850, outro acordo fora desenhado no Congresso, que incluía tanto a admissão da Califórnia como um estado livre quanto uma Lei de Fuga de Escravos muito mais repressiva, que exigia que escravizados capturados em qualquer lugar do país deveriam ser retornados aos seus senhores com a colaboração das autoridades. Se, antes da lei, os fugitivos poderiam encontrar abrigo no Norte e terem (mais ou menos) sua liberdade assegurada, agora isso era impossível: na prática, a legislação elaborada pela escravocracia estendia a servidão humana por todo o território nacional. Em 1854, a Lei Kansas-Nebraska radicalizou essa situação ao romper o Compromisso de 1820, estipulando que, nos novos territórios do Oeste, caberia à população escolher se seriam estados livres ou escravistas. Não surpreendentemente, milhares de pessoas do Sul e Norte rapidamente migraram para o Kansas para garantir o triunfo de um ou outro lado; o resultado foi uma pequena guerra civil local que antecipou a Guerra Civil nacional em alguns anos e aumentou as já acerbas divisões regionais (o Kansas só seria integrado à União como estado livre em 1861). Em resposta a esse descalabro, abolicionistas moderados e liberais reformistas fundaram o Partido Republicano em 1854, o primeiro com uma plataforma abertamente antiescravista, ainda que suave.
No fim da década, os embates se radicalizaram. No plano legislativo, a decisão Dred Scott, da Suprema Corte, em 1857, estipulava que norte-americanos negros, livres ou não, “não possuíam direitos a serem respeitados pelos homens brancos”, instaurando a condição de sub-cidadania para todos eles – algo veementemente denunciado por Frederick Douglass, Sojourner Truth e outros abolicionistas.
Em resposta ao que percebia como o sequestro da República pelo Slave Power, John Brown, militante antiescravista, tentou tomar, em 1859, o arsenal do Exército em Harpers Ferry, Virgínia, e distribuir suas armas aos escravizados do Sul, para que derrubassem seus senhores. O plano foi infrutífero e Brown acabou sendo executado, não sem antes afirmar que os crimes da escravidão só seriam purgados com sangue; sua figura martirizada tornou-se símbolo da luta antiescravista. Enquanto isso, a escravocracia intensificava suas tentativas de expandir sua “peculiar instituição” legalmente por todo o país e de reabrir o tráfico internacional abolido em 1808, sabendo que as mudanças sociais e econômicas do Norte (urbanização, imigração europeia e industrialização) ameaçavam seu controle sobre as instituições.
A eleição de Lincoln, em 1860, fora o estopim que faltava para que os estados do Sul, que viam a vitória do republicano como uma calamidade, se retirassem da União: entre dezembro daquele e junho de 1861, onze estados sulistas votaram por abandonar os Estados Unidos, mais tarde formando os Estados Confederados da América, uma república dedicada, lembra James McPherson, à escravização perpétua de seres humanos. Para seu presidente, Jefferson Davis, a secessão fora um “ato de autodefesa” contra a futura administração republicana, enquanto que, para seu vice Alexander Stephens, a Confederação havia sido fundada na “grande verdade moral, filosófica e física” da dominação de uma “raça inferior” por uma “superior”.
Ambos não poderiam ter sido mais explícitos sobre a significância histórica da separação, isto é, o desejo de preservação da servidão humana, nem que pela força das armas. Quando tropas da União se recusaram a entregar o Forte Sumter, na Carolina do Sul, ao novo exército confederado, em abril de 1861, a guerra, que custaria a vida de mais de 600 mil norte-americanos e mobilizaria cerca de três milhões de soldados, teve início.
Começa a guerra
No primeiro ano do confronto, a Confederação, cuja liderança militar estava nas mãos de oficiais respeitados como Robert E. Lee, Stonewall Jackson, James Longstreet e P. G. T. Beauregard, teve sucessos inesperados contra as forças unionistas, compostas principalmente por milícias voluntárias. Esse quadro durou pouco: à medida em que o embate se ampliava, a adoção da conscrição pela União e a Proclamação da Emancipação (1863), que libertava os escravizados do Sul[1] e os aceitava nos quadros militares nortistas, gerou um desequilíbrio de números que afetou significativamente a capacidade confederada.
Igualmente, a preponderância econômica nortista, cujo parque industrial fornecia armamentos e suprimentos à União de forma contínua, e a sua infraestrutura de comunicação e transportes, que permitiam o rápido deslocamento das tropas, garantiram um poder bélico muito superior ao Norte; independente da qualidade de seus oficiais, o Sul agrário e pobre, com altíssimos índices de deserção e sem seu principal porto, Nova Orleans (perdido em 1862), não poderia competir econômica e militarmente contra os “garotos de azul” – algo exacerbado por uma dificuldade óbvia: enquanto a União podia usar seus recursos humanos ao máximo, a Confederação escravocrata não podia nem sequer sonhar em armar um terço de sua população, os escravizados: os riscos disso ultrapassavam quaisquer cálculos estratégicos feitos por suas lideranças políticas e militares.
Gettysburg
Porém, um momento selou o destino sulista: a sua derrota na famosa Batalha de Gettysburg, na da Pensilvânia, em julho de 1863. Com o intuito de levar à guerra ao Norte, já que ela se concentrava majoritariamente no Sul, e forçar a União a aceitar uma trégua, Lee tentou invadir a Pensilvânia. Após três dias de escaramuças, as tropas confederadas se viram obrigadas a recuar, sofrendo duras perdas: quase 30 mil de seus soldados pereceram, um grave revés para um exército com poucos recursos à sua disposição.
Lee, já sem seu braço direito Jackson, morto em batalha no início de 1863, foi obrigado a recuar à Virgínia pelas forças de George Meade, general unionista. Até então, a Confederação tinha esperanças de obter uma elusiva intervenção britânica a seu favor e de arrancar da União uma paz benéfica aos seus interesses, caso conseguisse derrotar seus exércitos de forma decisiva ou causar um impacto negativo em suas forças produtivas.
Com a ruína em Gettysburg, isso se tornou impossível, pois seu fracasso militar se converteu em fracasso político e isolamento internacional. Para a União, todavia, Gettysburg marcaria, nas palavras de Lincoln, quando de sua visita ao local em novembro de 1863, a garantia de que “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, confrontado com a escravocracia sulista, não sumiria da face da Terra.[2]
A partir daí, os confederados nunca recuperariam suas forças. A “guerra total” declarada pelo general William Sherman em fins de 1864 contra o Sul, que previa o arrasamento de toda a infraestrutura econômica regional, devastou a região, culminou com a captura da cidade porteira de Savannah, na Geórgia, e a destruição das linhas de suprimento confederadas. Além disso, a “Marcha ao Mar” de Sherman desestruturaria de vez o sistema de plantations, acabando com sua espinha dorsal ao libertar milhares de escravizados (por quem, aliás, o general não possuía maiores simpatias). Aniquilada, a Confederação ainda duraria mais alguns meses, rendendo-se em abril de 1865, quando Lee entregou seu sabre ao Comandante-Geral da União, Ulysses Grant, em Appomattox.
Pós-Guerra
O encerramento das hostilidades, contudo, não significou pacificação. Lincoln, reeleito em 1864, acabou assassinado por John Wilkes Booth dias após a capitulação do Sul. Seu vice, Andrew Johnson, um unionista do Tennessee sem grandes afetos pela causa antiescravista, tentou suavizar os termos da reintegração da Confederação à União, no que foi oposto pelos republicanos radicais, para quem seus planos de uma anistia geral aos confederados, e a subsequente entrega dos governos sulistas a eles, era ato equivalente a uma traição. O desenlace seria o impeachment do presidente, em 1868, e a tomada do controle da Reconstrução pelos republicanos radicais, que imporiam condições muito mais severas à reincorporação dos secessionistas aos Estados Unidos.
O resultado foi promissor, embora fugaz: durante alguns anos, apesar da violenta oposição aos seus esforços (simbolizada pela aparição dos terroristas da primeira Ku Klux Klan), uma democracia mínima existiu no Sul, com a participação ativa dos libertos (que constituíram maiorias eleitorais em diversos distritos) e a reorganização da vida política na região.[3] No entanto, a ausência de uma reforma agrária efetiva e a reorganização de outras formas de usurpação de mão-de-obra, disfarçada de “trabalho livre”, combinadas com a progressiva desmoralização da Reconstrução por uma opinião pública interessada numa reconciliação nacional sem justiça social, levaram, no entendimento de W. E B. DuBois, à “Redenção” do Sul em 1877 e o retorno da escravocracia em novas vestes. No entendimento do notório intelectual e ativista, o “salário psicológico” advindo da branquitude impediu uma coalização entre brancos pobres e libertos e acabou por permitir a volta dos ex-confederados ao poder, com consequências devastadoras para as comunidades negras (segregação racial brutal, precarização da vida, retirada de direitos políticos, etc.). O “novo nascimento em liberdade” preconizado por Lincoln em 1863 teria que esperar.
Memória e História
Ironicamente, com o tempo, o que fora central à secessão, a escravidão, foi minimizado em sua importância por uma série de historiadores e memorialistas. Entre primeiros, com a exceção de uma tradição radical negra marginalizada academicamente, prevaleceram, até os anos 1960 e a consolidação de uma historiografia crítica da Guerra, interpretações que enfatizavam as “rivalidades seccionais” ou as ações de “agitadores radicais” para a eclosão da Guerra Civil, como atestam os influentes trabalhos de Charles Beard, Frederick J. Turner e da Escola Dunning.
Já entre os memorialistas, especialmente a partir do início do século XX, predominou a “Causa Perdida” do Sul, refletida na inauguração de centenas de monumentos confederados entre 1890 e 1950, contra o que David Blight chamou de “memória emancipacionista” da guerra. Nessas perspectivas, a Guerra Civil havia sido um confronto fratricida, felizmente encerrado pela reunião dos irmãos brancos depois de anos de animosidades desnecessárias, e não o que realmente foi: uma guerra contra uma oligarquia escravocrata disposta a ir até as últimas consequências em nome da preservação perene da servidão humana.
A hegemonia destas visões, só ameaçada nos últimos quarentas anos, contribuiu para, na análise de Ira Berlin, marginalizar a importância da escravidão para a história norte-americana e consigná-la a um lugar secundário na consciência nacional (ainda que não na historiografia disciplinada), inversamente proporcional à importância da Guerra Civil na memória estadunidense. Por outro lado, a emergência dos movimentos antirracistas massivos dos últimos anos e a retirada dos símbolos confederados do espaço público indicam que esse processo está finalmente sendo desfeito e que aquela “revolução inacabada” que foi a guerra, para usar a expressão do historiador Robin Blackburn, continua animando espíritos nos Estados Unidos contemporâneos. A última batalha da Guerra Civil está por ser lutada.
Notas
[1] Maryland e Kentucky, dois estados escravistas, permaneceram (a contragosto) na União. Neles, a libertação só viria com a 13ª emenda de 1865.
[2] Com a ausência dos representantes sulistas nas duas casas do Congresso, os republicanos e democratas do Norte conseguiram aprovar legislações reformistas por muito tempo bloqueadas pelo Sul. Dentre outras coisas, aprovou-se o Homestead Act de 1862, garantindo o Oeste à colonização livre; a construção de uma ferrovia ligando o Atlântico ao Pacífico, sem passar pelo Sul; a criação de um sistema bancário nacional; impostos de proteção à indústria norte-americana; e, finalmente, o fortalecimento da capacidade arrecadatória pelo governo federal.
[3] Dentre outras coisas, o Congresso radical aprovou, entre 1865 e 1870, três emendas constitucionais: a 13ª, que acabava com a escravidão nos Estados Unidos, salvo como punição a algum crime; a 14ª, que estabelecia a cidadania com base no jus solis e a proteção igualitária perante a Lei; e a 15ª, que proibia a negação do direito ao voto baseada na cor, raça ou condição de servidão prévia. Com o tempo, contudo, os estados sulistas encontrariam diversas brechas legais para não fazer valer o poder destas emendas.
Bibliografia
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Como citar este artigo
AVILA, Arthur Lima de. O que foi a Guerra Civil Norte-americana (1861-1865)? (Artigo). In: Café História. Publicado em 03 nov de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-que-foi-a-guerra-civil-dos-eua/. ISSN: 2674-59.