Diante da crise mundial catalisada pela epidemia do novo coronavírus, temos visto renomados economistas liberais defendendo abertamente a intervenção estatal, seja para salvar empresas privadas, seja para garantir renda aos milhões de trabalhadores desempregados. Como ocorrera também nas crises de 1929 e 2008, setores ligados à esquerda apontaram a suposta “falência do modelo liberal”; em resposta, não foram poucos os que defenderam não existir contradição entre uma posição liberal e a defesa de uma intervenção estatal contundente em um momento como o atual.
Na política, poucas alcunhas são tão utilizadas quanto liberal e liberalismo; e poucas são tão mal compreendidas. Para o socialista Harold Laski, trata-se da “mais importante doutrina da Civilização Ocidental”[1]. Já para o liberal Pierre Manent, o liberalismo é o pilar da política “desde há cerca de três séculos”[2]. O liberalismo (e suas variáveis, como o assim chamado neoliberalismo) é ainda muitas vezes definido por seus adversários, que buscam enquadrá-lo em determinadas generalizações a fim de atacá-lo com maior facilidade.
A diversidade do pensamento liberal é impressionante, e resiste aos reducionismos: se no século XIX existiram liberais escravocratas ou pouco sensíveis ao problema da escravidão, a atuação de abolicionistas como Thomas Paine, Harriet Taylor ou Stuart Mill impede qualquer generalização sobre tema; se no século XX houve liberais que, a pretexto do combate contra o comunismo, foram complacentes em relação a ascensão do fascismo (basta ver a maneira como Ludwig Von Mises trata o tema em seu livro O que é Liberalismo, de 1927, embora ele tenha reavaliado suas posições pouco depois), são incontáveis os liberais que foram notórios antifascistas (caso de Benedetto Croce, autor de um Manifesto dos Intelectuais Antifascistas, e de Giovanni Amendola, líder da oposição liberal ao fascismo); se há liberais contrários a qualquer atuação do Estado a fim de mitigar a pobreza (como descobrimos em algumas passagens de Burke ou Tocqueville), alguns pensadores vistos como ultraliberais, tais como Milton Friedman (Escola de Chicago) ou Fredrich August von Hayek (Escola Austríaca), eram defensores de uma renda mínima garantida pelo Estado e outras formas de seguridade social. Pautas hoje associadas à esquerda foram defendidas por liberais clássicos: Adam Smith, em A Riqueza das Nações, defendeu o imposto progressivo[3]; seu colega Marquês de Condorcet, em Sobre as assembleias provinciais, defendia a possibilidade de o Estado fechar uma indústria ou obriga-la a mudar de lugar para manutenção da qualidade do ar e da limpeza dos rios. Tendo em vista todas essas definições, sujeitos e casos, seria possível encontrarmos alguma definição minimamente precisa do que é ser liberal e do que é o liberalismo? Neste artigo, iremos nos concentrar na história do pensamento liberal”.
A “tentação normativa”
Antes de iniciarmos nossa discussão, é preciso nos afastarmos da maneira normativa e dogmática de entendermos a história intelectual, presente em muitos manuais escolares. Em tais livros, a palavra “liberalismo” é apresentada aos estudantes como uma espécie de entidade a-histórica, associada a predicados genéricos como “não intervenção do Estado na economia” ou “defender a propriedade privada”. O estudante, então, conclui que o liberalismo é uma espécie de doutrina, de forma que basta aderir ou rejeitar esses princípios gerais para ser ou liberal ou antiliberal.
Contudo, diversos problemas advêm dessa abordagem. Primeiro, a expressão genérica e imprecisa “Estado não intervir na economia” pode ter os mais variados significados conforme o período, o lugar e o autor – afinal, que tipo de Estado, que formas de intervenção e qual concepção de economia estamos falando? Segundo, se apresentado dessa forma, parece que existiu algo como um liberalismo “puro” ou “original”, definido por John Locke ou Adam Smith, dois dos maiores nomes do liberalismo. Contudo, isso nunca ocorreu, e esses dois autores desconheciam a palavra “liberalismo”.
Não devemos, portanto, tornar o “liberalismo” uma entidade abstrata dotada de vida própria: não existe um “liberalismo genuíno e essencial” pairando no ar ou estabelecido em algum livro sagrado e imutável (como já provou Ludwig Wittgenstein nas Investigações Filosóficas, §65-71). Pelo contrário, existiram e existem diversos pensadores, de épocas e linhas distintas, respondendo à problemas de sua própria época com o vocabulário que lhes é disponível. Cabe perguntar se é justo ou não abarcá-los pela expressão genérica “liberalismo”? Eles possuiriam algum grau de parentesco? Assim como um único martelo pode ser utilizado para variadas funcionalidades, a palavra “liberdade” não aponta para qualquer finalidade a priori; ela já foi (e ainda é) utilizada para os mais contraditórios propósitos. É por isso que o cientista político brasileiro José Guilherme Alves Merquior sustentou que é mais sensato “descrever o liberalismo do que tentar defini-lo de maneira curta”.[4] O liberalismo possui uma história, e é apenas por meio dela que poderemos obter alguma respostas a pergunta feita no início desse texto.
Liberal e Liberalismo: o problema das origens
Inicialmente, a palavra liberal referia-se a uma educação específica praticada, sobretudo, nas universidades medievais. As chamadas “artes liberais” (na Idade Média, retórica, dialética, gramática, música, aritmética, geometria e astronomia) eram consideradas dignas de um homem livre, e, por isso, contrapunham-se às “artes mecânicas”. Alias, até a modernidade, a palavra “artista” referia-se àquele que estudava as artes liberais, de modo que o pintor ou o escultor praticavam as “artes mecânicas”.
Na segunda metade do século XVIII, nota-se uma clara inflexão: as expressões em inglês “liberal policy” (“política liberal”), “liberal plan” (“plano liberal”), “liberal system” (“sistema liberal”) “liberal views” (“visões liberais”), “liberal ideas” (“ideias liberais”) e “liberal principles” (“princípios liberais”) passam a ser muito utilizadas, sobretudo pelos Iluministas britânicos (sobretudo, escoceses), como Jeremy Bentham e Adam Smith. O uso da palavra liberal neste contexto histórico refere-se a uma ideia vaga de não interferência do Estado. Por exemplo, Adam Smith, em A Riqueza das Nações (1776), passa a falar em um “sistema liberal de livre exportação e importação.”
Coube aos espanhóis[5] acrescentar o sufixo “-ismo”. Isso aconteceu no contexto das revoluções de 1776-1848. Durante as invasões napoleônicas, os grupos chamados de liberales (“liberais”) taxaram de serviles (“servis”)àqueles que eram contrários ao governo representativo e às instituições constitucionais. Em carta ao político e jurista espanhol Gaspar Melchor de Jovellanos, de 1809, o general francês Horace Sebastiani refere-se a “vuestras ideas liberales” (“vossas ideias liberais”) para referir-se às ideias de tolerância e igualdade que deveriam fazer os espanhóis aliarem-se a Napoleão; em resposta, Jovellanos diz que “los humanos principios” (“os princípios humanos”) serão devidamente respeitados apenas se a França ausentar-se do território espanhol[6]. Nesse momento, diante do avanço dos francesas, um grupo de espanhóis resistentes, na cidade de Cádiz, promulgou, em 1812, uma Constituição baseada nos princípios da soberania popular, reconhecendo Fernando VII de Espanha como rei com poderes limitados. Em 1813, no Diario Militar, Politico y Mercantil da cidade de Tarragona, tem-se o primeiro registro da palavra liberalismo, representando o conjunto de ideias dos inimigos do Antigo Regime: “el liberalismo/ consiste em agenciar/ como descatolizar/ a um pueblo justo y leal”(“o liberalismo consiste em agenciar como descatolizar a um povo justo e ideal”)[7]. O Oxford English Dictionary, de 1816, Southey utiliza o termo em seu novo sentido, mas mantém a grafia espanhola: “British liberales” (“britânicos liberais”)[8]. Em 1816, o mesmo dicionário passa a utilizar a grafia inglesa: liberal. Desde então, o termo liberalismo torna-se corrente no discurso político.
Portanto, na passagem do século XIX ao século XX, o uso do termo liberal, ao que tudo indica, refere-se cada vez mais a ideias como o constitucionalismo, a soberania popular e a liberdade comercial, isto é relaciona-se ao impacto do Iluminismo e das Revoluções do século XVIII na Europa, como lembra Jean-Baptiste Busaalle.
Por isso, os historiadores divergem quanto ao uso do termo “liberalismo” antes do século XIX, isto é, antes do surgimento da própria palavra. O maior representante da história intelectual na segunda metade do século XX, J. G. A. Pocock, rejeita a ideia: para o historiador de Cambdrige, os problemas enfrentados por Smith e Locke nos séculos XVII e XVIII eram tão distintos daqueles que Mill e Alexis de Tocqueville deparam-se no século XIX que agrupá-los numa mesma denominação resultaria em incompreensão e essencialismo. Afinal, quem, além dos historiadores, lembra-se que a reflexão anglo-escocesa sobre o papel do comércio na sociedade e na história começou por um protesto contra a instituição de um exército profissional, uma reflexão propriamente humanista e republicana? Para Pocock, o liberalismo seria um fenômeno do século XIX em diante e Adam Smith não poderia ser considerado um “liberal”.
Em artigo recente (ainda não publicado), sugeri que, na história do pensamento, o advento da palavra “liberalismo” não pode ser entendido como um ato de criação, mas como uma tomada de consciência de uma linguagem política que já possuía algum grau de parentesco (fato importante para lembrarmos as ligações entre liberalismo e Ilustração). Partindo desse pressuposto, sustentei que podemos falar, no século XVIII, em um “protoliberalismo” ou um “liberalismo clássico” na medida em que mapeamos elementos dispersos que, por serem de alguma maneira aparentados, serão posteriormente agrupados sob a denominação de “liberalismo”. Como estavam dispersos, nesse sentido, não poderemos cobrar a coerência que receberiam a posteriori, nem deixar de notar o quanto eram sensíveis a outras linhagens do pensamento político, como o republicanismo. O caminho de construção desse pensamento, da dispersão aos agrupamentos por semelhanças (sem buscar, contudo, qualquer essência), seria, precisamente, o trabalho do historiador.
Os períodos do Liberalismo
Tendo em vista essas questões, podemos pensar em algumas “fases” do pensamento liberal. Merquior dividiu o liberalismo em quatro períodos: o liberalismo clássico, o liberalismo conservador, o liberalismo social e o renascimento do liberalismo.
É importante que o leitor entenda que, em história, quase toda periodização é artificial, ou seja, é uma criação a posteriori, um artifício que objetiva a deixar o passado mais inteligível. Por isso, embora a periodização seja indispensável ao trabalho do historiador, ela nunca consegue dar conta de toda a diversidade existente e não raro peca em suas generalizações e esquematismos. A periodização de Merquior, embora útil, não está isenta de falhas – por exemplo, em minha perspectiva, é um equívoco ele chamar os pensadores franceses Jules Michelet e Edgar Quinet de liberais “conservadores”. Ela é satisfatória, contudo, em nos aclarar algumas questões.
Para Merquior, o liberalismo clássico (ou “protoliberalismo”) ganhou contornos como linguagem política entre a segunda metade do século XVII e meados do século XIX. Tal linguagem englobaria os direitos naturais (entendidos, a partir dos juristas Hugo Grotius e Samuel Pufendorf, como individuais, em contraposição ao direito natural escolástico), o individualismo (contra noções políticas organicistas, nas quais a sociedade precede o indivíduo), a separação entre estado e sociedade, o contrato social, o consentimento dos governados (embora, quase sempre, nem toda a população seja considerada nesse consenso), o Estado constitucional (isto é, com poderes limitados), as etapas históricas (a teoria dos four stages, isto é, de que a história humana passava por quatro etapas, nomadismo, pastoreio, agricultura e etapa comercial), a defesa da liberdade de expressão, da propriedade privada, do livre cambismo e a noção do comércio como promotor da concórdia entre os povos e da civilização. Esta linguagem, que ainda não se reconhece como liberal, é sensível ao discurso do humanismo cívico, e não rejeita a importância dos afetos e do bom senso, como se observa em Adam Smith ou Adam Ferguson. Com notáveis exceções, como Thomas Paine, o marquês de Condorcet ou a protofeminista Mary Wollstonecraft, os partidários dos direitos naturais rejeitavam o voto das mulheres ou dos mais pobres, e preferiam uma representação restrita aos cidadãos prósperos.
Dentro do pensamento liberal clássico há discordâncias quanto à extensão do sufrágio, às funções do Estado ou à origem da propriedade privada. Por isso, as Revoluções Norte-Americana e Francesa são um ponto para o debate e refinamento das ideias liberais. Nesse sentido, no século XIX, na Inglaterra, o discurso dos direitos naturais desloca-se para o discurso do utilitarismo ao passo que, na França, os chamados liberais doutrinários, à luz da experiência jacobina e bonapartista, se debruçam por sobre o problema da “tirania da maioria” (é o que o historiador Pierre Rosanvallon chamou de “O Momento Guizot”). O pensamento liberal (cada vez mais conhecido por tal nome) apesar de, até então, enfrentar os privilégios aristocráticos, ainda não estava preparado para aceitar as amplas consequências da democracia, o que se reflete, por exemplo, na reflexão magistral de Alexis de Tocqueville sobre a democracia norte-americana e o Antigo Regime francês, no livro “Da Democracia na América”, publicado pela primeira vez em 1835.
Assim, na segunda metade do século XIX, ganhou espaço um liberalismo distintamente conservador, o qual, fiel ao individualismo e à liberdade de consciência, era avesso ao pensamento democrático. Edmund Burke (1729-1797), exilado pela Revolução Francesa,tornou-se herói dessa geração. No contexto do Imperialismo nas últimas décadas do século XIX, alguns liberais chegaram ao extremo de adotar linguagem evolucionista e racista do darwinismo social. De acordo com Merquior, na Inglaterra, são expoentes do liberalismo conservador Hebert Spencer (1820-1903), Thomas Macaulay (1800-1859), Lord Acton (1834-1902) e Walter Bagehot (1826-1877). Na França, René-Chateaubriand (1768-1848), Rémusat (1797-1875) e Renan (1823-1892). O liberalismo conservador compreendeu a maior parte dos liberais germânicos da época e impactou latinos como Benedetto Croce (1866-1952), na Itália, Ortega y Gasset (1883-1955), na Espanha, e Alberto Sarmiento (1811-1888), na Argentina[9].
Contudo, os últimos anos do século XIX, testemunharam mais um desvio do paradigma liberal, inaugurado por Thomas Hill Green (1836-1882), John Hobson (1854-1940) e Leonard Hobhouse (1864-1929). Trata-se do liberalismo social, que agrega à defesa dos direitos individuais a ideia da igualdade de oportunidades. Nesse sentido, a ação pública se daria no sentido de mitigar os excessos de pobreza e de desigualdade. Tendo John Maynard Keynes como principal teórico, e Franklin Delano Roosevelt como principal estadista, o liberal-socialismo (associado a expressões como “Estado de bem estar” ou “democracia social”), ganharia força após a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Merquior enquadrou nessa categoria alguns dos idiomas do liberalismo no pós-guerra: a crítica do historicismo de Karl Popper (1902-1994), o protesto anti totalitário de George Orwell (1903-1950) e a ética do pluralismo de Isaiah Berlin (1909-1997). A propósito, ao longo do século XX, a maior parte dos pensadores liberais passou a enxergar a democracia representativa como desejável.
Na política norte-americana, sob impacto do New Deal, o termo “liberal” associou-se à essa variação do social liberalismo, como explica Arthur M. Schlesinger. Na Europa, o chamado liberal socialismo envolveu importantes historiadores como R.H. Tawney e o jovem Franco Venturi, partidários de uma leitura específica de John Stuart Mill. Na Itália, o “socialismo liberal”, como chamou Carlos Rosseli, teve um papel importante na luta contra o fascismo[10].
No fim do século XX, uma outra foram do liberalismo conheceu um novo vigor, alimentado pela estagnação da União Soviética e pelas crises do Estado Keynesiano. Nesse sentido, tornam-se mais conhecidas as ideias da chamada Escola Austríaca de Carl Menger (1840-1921), Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914) e Ludwig von Mises (1881-1973), as quais, na primeira metade do século XX, buscaram uma alternativa aos paradigmas da economia “clássica” dos economistas David Ricardo e Jean Baptiste Say. São bastante célebres nesse ínterim as ideias de Friedrich Hayek (1899-1992) e seu debate com Keynes. Na segunda metade do século XX, a grande estrela do liberalismo econômico foi Milton Friedman (1912-1996) e seus congêneres da Escola de Chicago, cujas ideias foram determinantes na política econômica do ditador Augusto Pinochet, do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, e da primeira ministra britânica, Margareth Thatcher.
Embora frequentemente associado ao campo econômico, esse Renascimento do Liberalismo conheceu também, na sociologia, a figura de Raymond Aron (1905-1983) e Ralf Dahrendorf (1929-2009), além dos neocontratualistas John Rawls (1921-2002), Robert Nozick (1938-2002) e Norberto Bobbio (1909-2004)[11].
É preciso ficar claro, portanto, que, na ausência de um livro único que defina o que é e o que não é um liberalismo, não se pode pensar o liberalismo como uma doutrina, isto é, como uma série de dogmas fixos a serem transmitidos. Em artigo já referido propus, por conseguinte[12], pensar o liberalismo como um campo, ou seja, um enorme espaço de pensamentos dentro do qual há lugar para criação e proposição das mais variadas posições. Como é um pensamento que pode ser espacializado, o liberalismo possui limites, fora dos quais não se é liberal. Tais limites seriam a igualdade jurídico-política, a liberdade de expressão, a defesa da propriedade privada, e, por fim, a simultânea necessidade de o Estado existir (como garantidor desses direitos) e possuir limites claros em sua atuação (uma proteção contra seus excessos). Fora desses limites, entramos em outros campos de pensamento político, como o fascismo ou o anarquismo.
O Liberalismo como visão de mundo
Diversos autores do século XX e XXI foram além das proposições meramente econômicas ou político-jurídicas do liberalismo e apresentaram esse campo de ideias também como uma visão específica do mundo, da ciência e da história (a meu ver, tais visões foram bem sintetizadas por Dario Antiseri em seu pequeno artigo O que significa ser racional?). Segundo um desses autores, Isaiah Berlin, esse é o principal ensinamento do pensamento liberal para o século XXI.
Apoiando-se em Maquiavel, Isaiah Berlin enxergava uma incompatibilidade entre os valores que regem a vida humana, social e individualmente. A sociedade, nesse sentido, é composta por seres humanos que são guiados por valores muitas vezes incoerentes e incompatíveis entre si (por isso a política, essa terra dos acordos e compromissos, sempre será necessária). Não existiria qualquer princípio unificador de nossas existências ou solução única que torne nossa existência coerente e harmônica – o que significa admitir, para a tristeza dos mais jovens, que a hipocrisia sempre será um fato da existência humana.
Mais do que isso, a busca por esse princípio unificador poderia abrir caminho para as mais diversas tiranias, que ambicionam impor uma forma de existência “correta” a despeito das vontades individuais: soluções totais, para Berlin, são irmanadas das soluções totalitárias e, portanto, irracionais e violentas, sendo o germe totalitário das utopias. Admitir a impotência de nosso intelecto para encontrar uma solução única e definitiva para todos os problemas humanos não é apenas uma posição razoável, mas ética; é a modéstia epistemológica de um intelecto que não propõe a própria soberania.
Nesse sentido, dentro de uma visão de mundo liberal, é preciso admitir, como Hayek, que a razão, embora importante, não é onipotente na história, que é cheia de imponderáveis e consequências imprevistas. Como observou Carl Menger, muitas das nossas mais importantes instituições (moeda, cidades, direito, linguagem) não foram premeditadas, mas fruto de uma lógica histórica que transcende todas as intenções.
Na mesma linha de pensamento, Karl Popper mostrou a falibilidade do conhecimento humano como próprio princípio do progresso e da ciência. A ciência, afinal, só cresce por meio da discórdia e todas as teorias científicas, por princípio, são desmentíveis (o que não é a mesma coisa que dizer que elas serão desmentidas). Isso não significa, evidentemente, tolerar a tudo, de forma que a sociedade liberal também admite seus limites e, em última instância, algum grau de violência contra os dissidentes.
O traço fundamental de um liberal, portanto, seria defender a liberdade. Mas qual liberdade? A liberdade defendida pelos pelos liberais mais contemporâneos é a liberdade como “indeterminação”[13], em frontal oposição a ideia de que toda a ação humana se condicionaria à salvação extraterrena ou ao progresso econômica. A visão liberal de mundo busca as condições, e não a finalidade ou qualquer espécie de thelos para a liberdade. Foi Alexis de Tocqueville quem sintetizou, de forma lapidar, essa ideia: “quem procura na liberdade outra coisa que não ela mesma é feito para servir”.[14] Essa concepção livra a humanidade da possibilidade de uma pessoa ou um grupo de pessoas utilizar da opressão para “ensinar” ou “mostrar” aos homens os seus “verdadeiros” e “puros” desejos e aspirações, afim de fazê-lo “coincidir consigo próprios”.
Conclusão: liberalismo, pluralismo, conservadorismo e cristianismo
Partindo desses pressupostos, penso que hoje o campo liberal enfrenta quatro desafios primordiais. Primeiro, hoje admitimos que ideias como os direitos humanos e a liberdade comercial só podem ser aceitas se pensadas escala global; caso contrário, temos alguma forma de imperialismo ou etnocentrismo. Com conciliar essas proposições cosmopolitas com todas as formas de diversidade que reconhecemos hoje como legítimas? O liberalismo e a defesa dos direitos individuais pode sobreviver à erosão de uma concepção demasiado unitária de ser humano?
Em segundo lugar, na esteira das reflexões dos filósofos John Rawls e Michael Walzer, como podem ser evitados os excessos de desigualdade social, a fim de preservar a vida e a liberdade, sem com isso prejudicarmos a democracia e a liberdade? A questão do liberalismo social deve ser permanente enquanto vivermos no sistema capitalista. Vale lembrar que, pouco após a morte de Adam Smith, Douglas Stewart foi em sua defesa alegando que o “verdadeiro Adam Smith” era o sóbrio homem público, e não o homem privado que falava sobre Voltaire e a loucura das guerras modernas. Essa tentativa de tornar Adam Smith o conservador que ele nunca foi pode ser entendida como uma das primeiras tentativas de dissociar a defesa da liberdade econômica dos direitos políticos mais radicais ou democráticos. Até hoje, como sabemos, há quem busque dissociar os assim chamados liberalismos econômico e político.
Em terceiro lugar, permanecem em discussão as relações entre liberalismo, conservadorismo e cristianismo (ou a religião, como um todo). Se esses três campos de pensamento não são incompatíveis, é inegável que eles apresentaram ao longo da história tantas afinidades quanto tensões. Lembremos que a noção iluminista dos direitos humanos foi plenamente aceita pela Igreja Católica apenas na década de 1960, Concílio do Vaticano II. Cotidianamente, vemos membros de várias religiões, em nome de uma verdade única, terem dificuldades em aceitar o fato de pluralismo típico de uma sociedade liberal democrática. O problema, no fundo, é: como a religião irá entender-se como uma parte do todo social, quando seu objetivo último é ser a própria sociedade? Como uma Igreja, que considera a heresia um pecado que nos leva ao inferno, pode ser indiferente às diferenças, como queria Locke em sua Carta sobre a Tolerância? Como aceitar a existência de uma pluralidade de éticas quando se acredita em uma fonte única e sagrada do Bem?
A mesma discussão existe no que concerne ao conservadorismo. Para o conservador, o indivíduo só existe dentro de uma sociedade e de uma história que não foram por ele escolhidas – e, por isso, o indivíduo possui obrigações em relação a uma ordem social e uma tradição, mesmo que não queira. O homem, nesse sentido não é uma máquina de desejos e interesses, mas necessita de uma noção de lar e pertencimento. É truísmo lembrar que as transformações econômico-sociais produzidas desde a ascensão do capitalismo foram fundamentais para destruir as antigas tradições, valores e formas de existência social. Se admitirmos que esse progresso (ou seja lá como quisermos chamar) deve muito a liberdade econômica e de consciência, o liberalismo seria um inimigo das tradições muito maior (porque mais efetivo) que o socialismo ou o comunismo. Nesse sentido, como, no século XXI, conciliar liberalismo e conservadorismo?
Por fim, há uma questão que, pouco trabalhada nas últimas décadas, não deve escapar aos liberais do século em que vivemos: como uma sociedade liberal lidará com a catástrofe? Se, durante uma pandemia, mecanismos de regulação sociais e econômicas podem ser necessários, como não converter a gestão provisória da catástrofe em despotismo permanente? Embora o liberalismo seja fruto de conflitos e revoluções, não existe ainda uma teoria do “liberalismo de guerra”. E poderá existir?
Notas
[1] Laski,1939, p. 165.
[2] Manent, 1990, p. 7.
[3] Dentro da tradição liberal, Adam Smith é, sem dúvida, um dos mais incompreendidos pensadores. É o caso de seu conceito de “mão invisível”, que ele usou apenas três vezes em todas as suas milhares de páginas, provavelmente de forma irônica, e nunca se referindo ao livre mercado. Sobre isso, ver ROTHSCHILD, 2014.
[4] MERQUIOR, 2011, p. 40.
[5] LLORÉNS, 1958, pp. 53-58; GRASES, 1961, pp. 539-541.
[6] JOVELLANOS, 1963, tomo I, pp. 590-591.
[7] LLORÉNS, op. cit., p. 58.
[8] BEYME, 1985, p. 31-32.
[9] É nesse contexto, em muitos casos, que se dará a discussão sobre liberalismo no Brasil do século XIX ou no conflito contra os caudilhos na Argentina (daí a célebre passagem de Alfredo Bosi: “o par, formalmente dissonante, escravismo-liberalismo, foi, no caso brasileiro pelo menos, apenas um paradoxo verbal”.) Não trataremos da dinâmica do liberalismo latino-americano nesse artigo pois o assunto, por sua relevância e complexidade, merece um texto específico. BOSI, Alfredo. A escravidão entre dois liberalismos. Estud. av., São Paulo , v. 2, n. 3, p. 4-39, Dec. 1988 Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340141988000300002&lng=en&nrm=iso>.access on 01 May 2020. https://doi.org/10.1590/S0103-40141988000300002.
[10] Sobre o chamado liberalismo social, gostaria de registrar a observação do historiador liberal Tony Judt (1948-2010): “Socialista? O epíteto revela mais uma vez a curiosa falta de familiaridade com o passado recente. Fora da Escandinávia – na Áustria, Alemanha, França, Itália, Holanda e em outros países – não foram os socialistas, mas os democratas cristãos que desempenharam o papel principal na instalação e administração das instituições fundamentais do Estado de bem estar social (…). O Estado previdenciário foi implementado, na maioria dos casos, por liberais ou conservadores que entraram para a vida pública bem antes de 1914, e para quem a oferta pública de serviços médicos universais, pensão aos idosos, seguro contra desemprego e doenças, educação gratuita, transporte público subsidiado e outros pré-requisitos para uma ordem civil estável não representava o primeiro estágio do socialismo do século XX, e sim a culminação do liberalismo reformista do final do século XIX. Uma perspectiva similar orientou o pensamento de muitos adeptos do New Deal, nos Estados Unidos”. JUDT, 2008, pp. 22-23.
[11] Alguns autores, nesse sentido preferem falar em “liberalismos.” Penso, contudo, que se trata de mero capricho acadêmico. Todos os grandes movimentos na história das ideias ou na história da arte, sem exceção, são em alguma medida plurais: por isso, só é possível falar de Renascimentos, Barrocos, Iluminismos, Socialismos e assim por diante. Mesmo o fascismo, por essência contrário à diversidade, conhece facetas distintas conforme a época ou o lugar. Nesse sentido, resta ao historiador das ideias duas opções: abolir o uso da forma singular ou apenas lembrar ao leitor desavisado que a pluralidade é um fato do pensamento humano. A expressão “Renascimento”, “Iluminismo” ou “Liberalismo”, no singular, não nega a pluralidade dentro desses movimentos, mas afirma, contudo, que, não obstante a diversidade, há algum grau de parentesco que nos permite qualifica-los como movimentos; se não houver nada em comum, o próprio conceito entra em erosão como categoria analítica e a forma plural é igualmente desnecessária.
[12] CARVALHO, Daniel Gomes de. Idem, no prelo.
[13] MANENT, Pierre, op. cit., p. 227.
[14] TOCQUEVILLE, 2016, p. 186.
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Como citar este artigo
CARVALHO, Daniel Gomes de. O que é o liberalismo? O que significa ser liberal? (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-que-e-o-liberalismo-o-que-significa-ser-liberal. Publicado em: 8 jun. 2020.