Ícone do site Café História

O poder dos mapas: a complexa política por trás do novo mapa chinês

O poder dos mapas: a complexa política por trás do novo mapa chinês 3

O geógrafo e historiador de mapas Matthew Edney chama esse fenômeno de base ontológica da cartografia. Foto: Canva.

Os mapas, muitas vezes vistos como representações objetivas da geografia, são, na realidade, instrumentos poderosos em disputas políticas e territoriais complexas. A publicação da edição de 2023 do mapa padrão da China é um exemplo notável desse fenômeno: o seu desenho enfureceu os países vizinhos e gerou um debate fervoroso no cenário internacional.

Desde seu lançamento oficial em 28 de agosto pelo Ministério de Recursos Naturais, o novo mapa chinês tem estado no centro das atenções. As reivindicações territoriais da China não são novas, mas esta edição estende sua jurisdição sobre áreas disputadas ao longo das fronteiras com a Índia e a Rússia, bem como sobre o conturbado Mar do Sul da China.

O que torna este episódio particularmente notável é a reação contundente de países do Sul e do Sudeste Asiático. Índia, Filipinas, Malásia, Vietnã, Taiwan e Indonésia não hesitaram em fazer declarações públicas contra as reivindicações chinesas. Os representantes desses países tomam o mapa como uma representação fidedigna da realidade, logo, algo que deve ser levado a sério como uma ameaça aos seus territórios. Como lembra, afinal de contas, John Harley, “os mapas podem produzir uma imagem verdadeiramente científica do mundo, em que a informação concreta se representa de maneira objetiva, é uma ideia muito arraigada na nossa cultura mítica.”

O geógrafo e historiador de mapas Matthew Edney chama esse fenômeno de base ontológica da cartografia. Conforme ele explica, cada mapa está necessária e diretamente vinculado a um território, pois sua construção é baseada na organização de dados espaciais. Dessa forma, os mapas apresentam categorias da realidade. “Os mapas são o ‘teatro’ do mundo, uma versão reduzida do mundo em que a história se desenrola.” Mas Edney apresenta essa característica para problematizá-la. Afinal, os mapas não devem ser vistos como objetos neutros – eles são sempre construídos em determinados contextos, e cabe justamente ao historiador desvelar estas histórias para compreender as intenções e objetivos ligados a construção de determinado mapa. Vejamos como isso se aplica ao mapa chinês.

Fronteiras Disputadas e Territórios Contestados

O novo mapa produzido pelo governo chinês não apenas reafirma as alegações anteriores da China sobre o Mar do Sul, mas também abrange duas áreas disputadas: Arunachal Pradesh e Aksai Chin. As duas estão localizadas ao longo da fronteira sino-indiana. Além disso, o mapa coloca metade da Ilha Bolshoy Ussuriysky, que pertence à Rússia, dentro das fronteiras chinesas.

Em resposta aos protestos diplomáticos de países vizinhos, a China adotou uma postura de apaziguamento, argumentando que não houve mudanças substanciais em seus mapas anteriores, e que seu objetivo é usar o material para o público interno. No entanto, o contexto geopolítico atual, com a crescente beligerância entre China e EUA, potencializou o debate em torno do mapa.

Mapa que circulou no Twitter com o intuito de contestar o domínio territorial chinês. Imagem: Acervo pessoal.

O novo mapa chinês mantém ainda a polêmica linha de nove traços que cobre todo o Mar do Sul, assim como em edições anteriores. Porém, introduziu um “décimo traço” a leste de Taiwan, incluindo a ilha dentro do território chinês. Esse acréscimo suscita ainda mais controvérsias e demonstra como os mapas podem ser utilizados como instrumentos políticos para afirmar territórios, moldar narrativas, reivindicar territórios e influenciar a percepção pública.

Outra camada de complexidade nesse contexto é a decisão do governo chinês de padronizar os nomes de 11 lugares em Arunachal Pradesh, incluindo a cidade próxima à capital, Itanagar. Esta foi a terceira lista desse tipo, isto é, que visava renomear lugares nesta região fronteiriça.

O mapa como instrumento de poder do Estado

Por trás da superfície de papel ou da tela do computador, os mapas desempenham um papel muito mais profundo e intrigante na política e na cultura de uma nação. O lançamento do mapa chinês não foi apenas um ato de mapeamento, mas um exercício de poder estatal em várias dimensões. Como afirma Thales Castro “a governança do poder, no poder e pelo poder representava e representa meio e fim da política internacional que, muitas vezes, não se diferencia muito do contexto futuro nas primeiras décadas do século XXI.”

O novo mapa da China foi lançado como parte do que a mídia estatal chinesa chamou de “Semana Nacional de Conscientização sobre Mapeamento.” Este evento não é apenas um gesto simbólico; ele representa o compromisso da China em destacar a importância dos mapas na construção da identidade nacional e na promoção de seus interesses. E pode ser apenas o começo. Além dele, o Ministério de Recursos Naturais da China planeja lançar mapas digitais de navegação e posicionamento destinados a diversas áreas, como serviços baseados em localização, agricultura de precisão e veículos inteligentes conectados. Esses mapas, desta forma, funcionariam como impulsionadores essenciais da inovação tecnológica e do desenvolvimento econômico na China.

O ano de 2023 foi pensado sob medida para o lançamento. Ele marca o 30º aniversário da promulgação da Lei de Topografia e Mapeamento da República Popular da China. Essa lei foi aprovada para fortalecer a administração da topografia e do mapeamento, promover seu desenvolvimento e garantir que eles contribuam para o desenvolvimento econômico, a segurança nacional e o progresso da sociedade.

Além disso, sob a liderança do Presidente Xi Jinping, a China tem reforçado a gestão de suas áreas de fronteira. A aprovação de uma nova lei de fronteira em 2022 estabeleceu várias responsabilidades para as autoridades civis e militares chinesas, incluindo a obrigação de salvaguardar a soberania nacional. A emissão de novos nomes em lugares contestados, como vimos em Arunachal Pradesh, está relacionada às disposições dessa nova lei de fronteira. O artigo 7 da lei, por exemplo, exige a promoção da educação nas fronteiras em todos os níveis do governo, enquanto o artigo 22 exige que as forças armadas chinesas realizem exercícios nas fronteiras.

Histórico das disputas territoriais da China

A atual controvérsia em torno do mapa chinês não é um incidente isolado na longa história das disputas territoriais da China. Ao longo dos anos, a China se envolveu em várias disputas fronteiriças que moldaram sua posição geopolítica e suas relações com seus vizinhos.

A Índia tem sido um dos principais atores nas disputas territoriais com a China. Em abril de 2023, a China já havia renomeado 11 locais em Arunachal Pradesh, incluindo montanhas, rios e áreas residenciais. E antes mesmo desse episódio, episódios semelhantes já tinham acontecido. Em 2017 e 2021, por exemplo, o Ministério de Assuntos Civis da China mudou o nome de localidades sob soberania indiana, gerando tensões políticas e acusações de planos expansionistas.

Em resposta às críticas e protestos internacionais relacionados ao mapa, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, enfatizou que a China rotineiramente publica mapas padrão para aumentar a conscientização pública sobre o uso padronizado de mapas e pediu uma visão objetiva e racional das ações do país. Essas declarações refletem a tentativa da China de acalmar as tensões e evitar interpretações exageradas das questões em jogo.

Mapa publicado pelo jornal indiano The Shillong Times. Imagem: acervo da autora.

A China já se envolveu em pelo menos 17 disputas territoriais em diferentes regiões, incluindo sua fronteira terrestre e os mares do leste e do sul da China. É importante observar que o país compartilha fronteiras com 14 países. Ao norte, compartilha fronteiras com a Rússia, a Mongólia e a Coreia do Norte. Na fronteira oeste, seus vizinhos incluem Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão e Paquistão. Ao sul, com a Índia, Butão, Birmânia, Nepal, Laos, Vietnã e tem uma fronteira interna com Macau. Essa diversidade geográfica contribui para a complexidade das disputas territoriais chinesas.

Por que a cartografia é importante?

A cartografia traduz o nosso mundo complexo para representações em papel ou telas digitais, e ao fazer isso desempenha um papel fundamental na sociedade e na cultura humanas. Desde o início do século XIX, a cartografia adquiriu uma ressonância cultural especial, impulsionada pela intensificação do imperialismo europeu e do discurso científico na elaboração dos mapas.

A cartografia, como se convencionou chamar essa atividade, tornou-se uma atividade de destaque devido à sua capacidade de mapear o mundo em constante mudança, sob aparente alegação de neutralidade. Desse movimento, o “ideal da cartografia” prevaleceu, impondo uma visão restrita e irrealista de como os mapas devem ser criados. Essa visão uniforme da cartografia contrasta com a diversidade real das práticas cartográficas em todo o mundo, como pontua Edney Esse ideal foi estabelecido com a adoção generalizada de levantamentos territoriais sistemáticos pelos estados europeus a partir de 1790, prometendo uma metodologia única para a elaboração de mapas.

A partir da década de 1960, acadêmicos e historiadores da cartografia começaram a questionar a natureza de seu campo, levando a avaliações críticas e reflexões sobre a natureza dos mapas. Isso coincidiu com movimentos intelectuais mais amplos, como o pós-modernismo e a história social da cultura. Desse movimento nasceu uma história da cartografia critica, que busca interpelar os mapas como objetos históricos, problematizando sua construção, reprodução e recepção.

Cada conjunto de mapas reflete uma concepção específica do mundo e é produzido com técnicas e estratégias variadas para atender a funções distintas. A cartografia, portanto, não se encaixa em uma única categoria coesa, mas abrange uma gama difusa e conceitualmente vasta de artefatos. O caso do mapa chinês serve como um exemplo marcante desse fenômeno. Enquanto muitos interpretaram esse mapa como uma afirmação agressiva das reivindicações territoriais da China, uma análise mais profunda revela a complexidade por trás de sua mensagem.

À medida que exploramos o mundo dos mapas, é vital compreender que eles não são meros reflexos da realidade, mas sim produtos intencionais, construídos em contextos específicos com objetivos particulares. A cartografia é um campo intrincado e fascinante para historiadores, permitindo-nos não apenas examinar os mapas antigos que moldaram as civilizações passadas, mas também analisar os mapas contemporâneos que desempenham um papel crucial na política global atual.

Portanto, a cartografia é muito mais do que uma representação geográfica; é um instrumento poderoso para a compreensão da história, da cultura e da política. Através do estudo meticuloso dos mapas, os historiadores podem decifrar narrativas ocultas, explorar agendas políticas e revelar as complexidades das relações globais. Como tal, a cartografia permanece como uma ferramenta vital para a investigação histórica, ajudando-nos a navegar não apenas pelas paisagens físicas, mas também pelos intrincados labirintos da mente humana e das sociedades ao longo do tempo.

Em última análise, a cartografia é uma ferramenta de poder, cultura e conhecimento. Ela nos permite explorar, reivindicar territórios, comunicar informações complexas e moldar nossa compreensão do mundo. No entanto, devemos estar cientes de suas complexidades, ambiguidades e potencialidades para gerar tensões geopolíticas. Através da cartografia, continuamos a mapear não apenas a geografia do nosso planeta, mas também as complexidades da nossa própria interação com ele.

Referências

CASTRO, Thales. Teoria das relações internacionais. Brasília: FUNAG, 2012.

China’s updated map and the undoing of diplomacy. Modern Diplomacy. 30 ago. 2023. East Asia. Disponível em: https://moderndiplomacy.eu/2023/08/30/chinas-updated-map-and-the-undoing-of-diplomacy/ Acesso em: 24 set. 2023.

China’s New ‘Standard Map’ Does Not Mean What You Think It Means. The Diplomat, 5 set. 2023. Security, East Asia. Disponível em: https://thediplomat.com/2023/09/chinas-new-standard-map-does-not-mean-what-you-think-it-means/ Acesso em: 24 set. 2023.

EDNEY, Matthew. Cartography. The ideal and its history. Chicago: University of Chicago Press, 2019.

HARLEY, John B. La nueva naturaleza de los mapas. Ensayos sobre la historia de la cartografia. México: Fondo de Cultura Economica, 2005.

Como citar este artigo

RODRIGUES, Carmem. O poder dos mapas: a complexa política por trás do novo mapa chinês.  (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-poder-dos-mapas-china/. Publicado em 20 nov. de 2023. ISSN: 2674-5917.

Sair da versão mobile