Por motivos que podem ser debatidos – seria uma supervalorização do estrangeiro, de Hollywood e Europa como detentores de uma chancela de qualidade? -, nós, brasileiros, sentimos um gigantesco orgulho quando algum artista nosso consegue fazer carreira internacional. Um dos mais recentes a filmar no exterior com elenco todo estrangeiro foi o cearense Karim Aïnouz. Sua obra diz muito sobre os apagamentos da História.
O próprio prólogo afirma que a História, essa oficial e com H maiúsculo, nos conta muito sobre homens e guerras. Sobre outros eventos e personagens, o que nos resta são especulações que podem muito bem alimentar a imaginação. E esta imaginação é responsável por filmes como “O Jogo da Rainha”.
Muito já foi dito e filmado sobre Ana Bolena, desde o primeiro longa-metragem em 1920 até hoje. Mas ela não foi a única esposa de Henrique VIII após a cisão deste com a Igreja Católica, e estas esposas subsequentes são ofuscadas – talvez você mesmo tenha até agora ignorado a existência delas. Por exemplo: a “sexta esposa de um rei vil e doente”, chamada Catarina Parr, por um tempo foi regente da Inglaterra enquanto Henrique estava em campanha militar na França!
Catarina Parr (Alicia Vikander) acredita que foi enviada por Deus para fazer Henrique VIII ver as coisas diferente e mudar suas ideias. Sentada à cabeceira de uma longa mesa ocupada apenas por homens, Catarina tenta legislar e tomar decisões, mas nada muito impactante pode ser decidido sem a presença do rei. À rainha é permitido um único capricho: a publicação de um livro de orações, mas uma segunda edição deste é criticada porque acreditam que a rainha já fez o que queria – publicá-lo – e agora chega.
Temos em “O Jogo da Rainha” um caso em que “o inimigo” está perto demais, na figura de uma velha amiga de Catarina. Conhecemos Anne Askew (Erin Doherty) quando está contando aos camponeses que o rei Henrique VIII libertou o povo da Igreja Católica ao romper com esta e fazer valer a Bíblia traduzida para o inglês, e não escrita em latim, o que dificultava o entendimento e interpretação de um povo em sua maioria analfabeto. A revogação dessa decisão, para ela, é absurdo e deve ser boicotada. Quando Anne é queimada na fogueira, Catarina se desestabiliza e vemos um paralelo entre as práticas da nova religião e as da velha e aparentemente superada Igreja Católica.
Os banquetes da Corte são eventos de abundância e divertimento, assim como as festas com bebedeira e dança. Mas tudo, por um ataque de ciúme, pode desmoronar. Nestes momentos, Henrique VIII é violento e abusivo, sem, contudo, agredir fisicamente Catarina. Seu terror é psicológico, enoja os espectadores e ajuda a pintar a figura patética que Henrique VIII foi.
No começo do filme acreditei que Henrique VIII seria apenas uma presença fantasmagórica pairando sobre a narrativa, e o foco seria realmente em Catarina e sua regência. Quando o rei apareceu, não consegui identificar o ator Jude Law em cena, tamanha foi sua transformação para o papel. Corpulento, barbado e com uma ferida na perna, Jude Law só é reconhecido, e ainda assim se fizermos um esforço, por causa de seus expressivos olhos.
“O Jogo da Rainha”: “anônimo” foi uma mulher
É interessante notar que todo o time responsável pelo roteiro é formado por mulheres. O livro no qual se baseia o filme foi escrito por Elizabeth Fremantle, e as duas roteiristas são Jessica e Henrietta Ashworth. A diretora de fotografia, cargo raramente ocupado por mulheres, é a parceira de longa data de Aïnouz, Hélène Louvart.
Existe uma frase de Virginia Woolf que é mais ou menos assim: “durante a maior parte da História, “anônimo” foi uma mulher”. Apesar de ter sido rainha e ter moldado a religião criada por seu marido, Catarina Parr quase caiu no anonimato. Felizmente, temos o cinema para resgatar essas mulheres.
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