O Café História conversou com o historiador Renato Drummond, mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e que, em 2011, fundou o blog “Rainhas Trágicas”. Seis anos depois, pode-se dizer que o projeto é um sucesso. A página recebe atualmente entre 180 e 200 mil visitas por mês e virou livro publicado em Portugal.
O Rainhas Trágicas tem uma proposta bastante interessante: contar a trajetória de mulheres monarcas do Antigo Regime a partir de pesquisas no campo da História, buscando, assim, desconstruir uma série de representações misóginas e preconceituosas que tanto marcam diversas representações do passado, da literatura ao cinema – e, segundo Drummond nos contou, os estereótipos e os sensos comuns são muitos e ainda fortes. É o caso de Maria Antonieta, explica o historiador: “a famosa rainha gastadeira que, segundo dizem, teria levado a França à miséria e que, num de seus muitos momentos de descaso para com a população, teria dito que, se o povo não tinha pão, que comessem brioches”. Essas imagens, contudo, não correspondem a atuação das soberanas no período.
O Rainhas Trágicas é divido em diversas colunas. “Au Cours de La Renaissance”, por exemplo, abrange assuntos referentes ao período de renascimento cultural, indo do século XV ao XVII “Palácios, Falácias e História” aborda de forma dinâmica e envolvente a vida de seres ilustres que ainda fazem ferver o imaginário popular. “Mulheres do Império”, por sua vez, dedicado à corte imperial brasileira, apenas para citar algumas.
Renato Drummond é graduado em História (licenciatura) pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC (2014) e mestre em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB (2017). É autor do livro “Rainhas Trágicas: quinze mulheres que moldaram o destino da Europa” (2016), publicado pela Vogais Editora, em Portugal. Possui experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura, Inglaterra Tudoriana, Brasil Império, História das Mulheres e José de Alencar.
Renato, obrigado por conversar conosco. E parabéns pelo blog. Explique para os nossos leitores como começou o projeto e qual o seu principal objetivo.
Eu que agradeço pela oportunidade de poder falar um pouco sobre o meu trabalho para o portal Café História. Comecei a escrever sobre a história das mulheres coroadas em 2011, quando era aluno do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Santa Cruz. Eu e alguns colegas havíamos criado um site voltado para a área de História e afins. Infelizmente, o projeto não foi para frente. Então, um ano depois, criei o “Rainhas Trágicas”, um espaço onde poderia escrever sobre a vida de mulheres que, por vários motivos, foram alvo de misoginia ao longo dos séculos, tais como Ana Bolena (tema da minha monografia de conclusão de curso), Mary Stuart e Maria Antonieta. Aos poucos, fui expandindo o foco da pesquisa, graças ao feedback que recebia dos leitores que fui conquistando nesse percurso. Hoje, considero o “Rainhas Trágicas” um lugar onde posso discutir sobre diversificados temas, estejam eles relacionados à história das mulheres ou não.
De onde vem o nome do blog?
Na época, eu estava lendo um romance da escritora francesa Juliette Benzoni, Reines Tragiques, que narra a vida de 18 soberanas, da antiguidade aos tempos modernos. Na visão romantizada da autora, rainhas trágicas eram mulheres que tiveram um final infeliz, especialmente marcado por uma morte violenta. Após a leitura do romance, percebi que aquelas mulheres eram consideradas trágicas não apenas por causa de seu desfecho, mas principalmente por causa dos estereótipos que as acompanhavam. Me preocupei não em contar uma história sobre traições e mortes, mas sim em desconstruir historiograficamente esses mesmos estereótipos que pouco contribuem para a análise da vida dessas mulheres.
Sua proposta de desconstruir certas imagens sobre as figuras femininas, sobretudo aqueles pertencentes ao Antigo Regime, é muito interessante. Que estereótipos ainda persistem em nosso tempo quanto ao tema?
Existem muitos estereótipos que ainda continuam fortes, principalmente os que estão ligados a nomes como o de Ana Bolena, chamada por alguns de prostituta, adúltera e incestuosa. Há também Maria Antonieta, a famosa rainha gastadeira que, segundo dizem, teria levado a França à miséria e que, num de seus muitos momentos de descaso para com a população, teria dito que, se o povo não tinha pão, que comessem brioches. Esses são os estereótipos que eu poderia chamar de casos mais sérios. Outros exemplos são Catarina de Médici, assassina de protestantes, assim como Maria I da Inglaterra, conhecida como “a sanguinária”. Joana I de Castela e Maria I de Portugal, chamadas de loucas. Penso que poderia citar aqui uma constelação de estereótipos. Felizmente, a recente pesquisa na área de História das Mulheres tem contribuído muito para desconstruir essas visões e apresentar uma outra versão dos fatos ligados à vida dessas rainhas, menos conhecidos do grande público, porém mais indicativos de suas personalidades.
Como você enxerga a influência política das monarcas em um cenário europeu tão marcado pela figura masculina? Que mecanismos elas lançavam mão e em que medida foram bem-sucedidas?
Primeiro precisamos avaliar a tipologia de soberana com a qual estamos lidando. As rainhas consortes, que deviam sua posição graças ao casamento, tinham uma margem de poder bastante limitada, embora algumas delas tenham encontrado brechas para exercer o poder através dos seus maridos, primeiro em assuntos menores, para depois se imiscuir nas questões de natureza maior. Sobre as rainhas regentes, ou seja, aquelas que governavam na ausência de um rei adulto, sua esfera de ação era um pouco maior. Quanto ao primeiro caso, mulheres como Ana da Áustria, mãe de Luís XIV da França, ou mesmo a imperatriz Dona Leopoldina do Brasil se saíram muito bem nesse papel. No último caso, o das rainhas reinantes, aquelas que tinham direito hereditário ao trono, observamos a mulher governar plenamente, exercendo um cargo previamente concebido por e para homens.
Por muito tempo, o sexo feminino e o exercício do poder foram tratados pelos principais pensadores clássicos e medievais como dois elementos incompatíveis. Na França, por exemplo, a lei sálica impedia as mulheres de herdarem a coroa. Esse quadro sofreu uma mudança significativa a partir do século XV, com Isabel I de Castela, a primeira grande rainha do cristianismo. Ela abriu o precedente moderno para que outras mulheres viessem a assumir o poder. No século seguinte, o cenário europeu foi praticamente dominado pelo governo feminino, com nomes como Margarida da Áustria, regente dos Países Baixos, Maria I e Elizabeth I da Inglaterra, Marie de Guise e sua filha, Mary I Stuart da Escócia, Catarina de Médici, rainha regente da França, e Catarina da Áustria, rainha regente de Portugal. Uma mulher que também era rei precisava ser duplamente cautelosa, pois seus erros poderiam ser facilmente associados a uma suposta fraqueza do sexo, o que prejudicaria o que podemos chamar de monarquia de gênero. Algumas delas, como Elizabeth I da Inglaterra, aprenderam a jogar com essa situação e foram muito bem-sucedidas nisso. Nos séculos XVII e XVIII, o governo das mulheres continuou forte, com nomes como Cristina da Suécia, Ana I do Reino Unido, Isabel I e Catarina II da Rússia, Maria Teresa da Áustria, entre outras. Atualmente, o melhor exemplo de rainha reinante de que dispomos é Elizabeth II do Reino Unido, que em 2015 se tornou a monarca que por mais tempo governou na história da Grã-Bretanha.
Como funciona a dinâmica do “Rainhas Trágicas”? Em outras palavras, que temas você costuma abordar no blog, qual a sua política editorial, periodicidade, que seções o blog possui, etc.?
Eu costumo abordar uma série variada de temas, dentro da área da História das Mulheres. Costumo publicar geralmente uma ou duas vezes por semana, a depender da minha disponibilidade de tempo para escrever as matérias. Ano passado, passei a aceitar também colaborações de leitores, com textos voltados para os temas abarcados pelo blog. Podem ser resenhas de livros, filmes, matérias fotográficas ou mesmo contos. A ficção também pode ser uma porta de entrada para o reino da História.
Qual é o perfil do seu público leitor? Quantas pessoas, em média, você tem atingido com o blog? Como tem sido, em geral, a interação das pessoas com o blog? No Café História, por exemplo, recebemos e-mails todos os dias e os mais diversos. Imagino que isso aconteça também com você, não?
Muitos dos leitores chegaram ao blog depois de terem assistido a algum filme ou novela, cujo enredo está ambientado em algum período passado. Eu mesmo me interessei pela vida de Ana Bolena após assistir ao filme A Outra, com Natalie Portman no papel da segunda esposa de Henrique VIII. É muito interessante observar as comparações que os leitores fazem entre o que é fato e o que é ficção nas diferentes formas de narrativas. Os feedbacks que recebo deles são muito importantes para determinar qual tipo de publicação é mais aceito. Por ser um espaço que debate, principalmente, a história das mulheres no regime monárquico, recebo também muitos seguidores que se consideram monarquistas, apesar de o blog e/ou página no Facebook não possuir qualquer vinculação com o movimento monarquista no Brasil ou outro tipo de ação partidária. Em 5 anos de atividade, construímos um público bem diversificado. Atualmente, o “Rainhas Trágicas” recebe cerca de 180 a 200 mil visualizações por mês, o que é um número muito bom, considerando que é um blog pessoal.
O “Rainhas Trágicas” pode ser considerado um ótimo caso de divulgação do conhecimento acadêmico de História para o grande público. Em que medida você tem pensado o seu blog como um blog de divulgação de história? E, aproveitando a deixa, o que, na sua opinião, é fundamental para um bom projeto de divulgação de história?
Na medida em que me proponho a contar uma outra história das mulheres no antigo regime, em mostrar que as personalidades sobre as quais eu costumo escrever foram indivíduos (em alguns casos) bastante diferentes do que geralmente se disse e se diz, acredito estar contribuindo para essa desconstrução de estereótipos que vem sendo empreendida desde o final do século XX, com a emergência das pesquisas feministas sobre as vidas dessas mulheres. Uma linguagem simples e direta, desprovida de neologismos e daqueles termos acadêmicos que tornam um texto tão denso, é o primeiro passo para se atingir o grande público, ainda mais um público de leitores como o do Brasil, que em sua maioria desconhece sua própria história. Esse é um dos maiores desafios para historiadores que possuem blogs, canais no YouTube, entre outras redes: tornar a História atrativa e acessível para um público pessoas que a desconhece.
O “Rainhas Trágicas” virou livro. Como isso aconteceu?
Foi tudo muito repentino. Em novembro de 2015, entrou em contato comigo o Guilherme Pires, à época editor na Vogais Editora, um selo da 20/20 Editora, de Portugal, com a proposta de transformar o conteúdo do blog em livro. Aparentemente, o “Rainhas Trágicas” havia conquistado o interesse do conselho editorial da Vogais. Depois de uma fase de negociação, passei a trabalhar no arquivo, compilando parte dos textos já publicados, reescrevendo-os quando necessário e acrescentando as devidas notas de rodapé. Em seguida, passei a trabalhar em alguns textos inéditos para a publicação. Esse processo durou cerca de 4 meses. Em julho de 2016, “Rainhas Trágicas: quinze mulheres que moldaram o destino da Europa” finalmente chegou às livrarias de Portugal. Para mim, foi uma experiência única. A ideia de publicar um livro, ainda mais fora do país, era algo que só me ocorria uma vez concluída minha formação acadêmica. Nem consigo descrever aqui a minha emoção ao receber a brochura em mãos e ver todo um trabalho executado com tanto cuidado e carinho, finalmente coroado na forma de um livro.
Como citar essa entrevista
DRUMMOND, Renato. O historiador das Rainhas Trágicas (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-historiador-das-rainhas-trágicas/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 8 out. 2017.