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O historiador como inimigo: entrevista com Antoon De Baets

O historiador como inimigo: entrevista com Antoon De Baets 1

Nikolai Kondratiev foi executado por um pelotão de fuzilamento em 17 de setembro de 1938. Jian Bozan cometeu suicídio para escapar da tortura no dia 18 de dezembro de 1968. Esses homens compartilharam muito mais do que uma morte trágica. Eles compartilharam uma profissão, uma habilidade específica e a coragem de defender ideias que desafiaram a versão oficial da história coletiva. O pano de fundo da morte do economista soviético e do historiador marxista chinês é o ponto de partida do livro mais recente publicado pelo professor Antoon De Baets. Crimes contra a história – Crimes Against History – é uma obra fascinante na qual o historiador aborda a censura da história.

A qualidade indiscutível da obra de Antoon De Baets remonta aos seus primeiros trabalhos, mais de três décadas atrás. O professor De Baets coordena a Network of Concerned Historians desde 1995, uma rede internacional que visa discutir e denunciar historiadores que sofrem algum tipo de ameaça. Antes e após o lançamento dessa iniciativa, Antoon De Baets trabalhou em questões como o poder subversivo dos paralelos históricos, o quadro jurídico da escrita histórica e a complexa e fascinante relação entre a escrita histórica e a democracia.

Professor de História, Ética e Direitos Humanos da Universidade de Groningen (Holanda), Antoon De Baets apresentou ao público um livro cativante sobre as variantes do que ele denuncia como “crimes contra a história”. Seu trabalho adota uma abordagem global quando disseca as formas que a censura tende a assumir contra a história. Em suas próprias palavras, seu livro “olha por trás das cortinas, onde os censores cortam histórias apenas para pintar uma versão refinada do passado”.

Nesta entrevista, o professor Antoon analisa alguns dos aspectos mais relevantes de seu livro. Ele explica a origem de seu trabalho com a Network of Concerned Historians ​​e seu relacionamento com organizações de direitos humanos. Depois de apresentar conceitos como “crimes contra a história” e “censura à história”, o professor comenta iniciativas como o programa Escola “sem” Partido. Há também um debate controverso sobre a natureza da visão de mundo comunista e as razões que explicam um número maior de vítimas entre os produtores de história que viveram sob regimes dessa natureza.

Como argumenta o professor Antoon, “expor a censura da história é o começo de seu fim”.

No seu livro mais recente – Crimes Contra a História (Crimes Against History) – você trabalha com o tema da censura à História. Em particular, o livro examina as medidas mais drásticas que os censores usam para controlar a produção historiográfica. Os casos apresentados nesse trabalho foram registrados e analisados em um projeto de longo prazo que você desenvolve há muitos anos – Network of Concerned Historians. Você gostaria de iniciar essa conversa falando sobre esse projeto e sobre como nasceu a ideia de escrever esse livro?

Criei o Network of Concerned Historians em 1995 com um objetivo simples em mente: construir uma ponte entre o mundo das organizações internacionais de direitos humanos e o mundo dos historiadores. Como sou historiador acadêmico e, desde 1970, membro da Anistia Internacional, ocorreu-me que embora as organizações internacionais de direitos humanos, de tempos e tempos, fizessem campanhas em nome de historiadores perseguidos, a maioria dos historiadores não tinha consciência desses esforços.

Eu comecei a publicar essas campanhas em um site (http://www.concernedhistorians.org) toda vez que  elas eram lançadas e as enviava a colegas interessados relatórios anuais sobre a perseguição contra historiadores e sobre a censura da História ao redor do mundo ​​(25 relatórios dessa natureza já foram publicados e hoje temos uma rede que alcança 3.300 colegas). O site também contém algumas coleções exclusivas, como documentos temáticos de organizações internacionais relevantes para os historiadores, casos legais nos quais a história e os historiadores estão envolvidos e códigos de ética não apenas para historiadores, mas também para profissões relacionadas.

Ao coletar centenas de casos ao longo dos anos, percebi que o assédio e a perseguição aos historiadores não terminavam com as ferramentas usuais (censura ao trabalho, demissão de emprego, litígio com acusações espúrias). De fato, em circunstâncias extremas, os historiadores também foram mortos por razões políticas – entre elas, por produzir obras históricas que foram consideradas perigosas e desafiaram verdades históricas oficiais. Quando me concentrei nessa minoria brutalmente perseguida de historiadores, notei que havia uma história muito dramática dentre esses casos que merecia ser contado. Esse foi o começo do meu livro Crimes contra a História (Crimes Against History), lançado este ano (2019).

Na introdução do livro, você chama a atenção para o fato de que, se queremos tratar o tema da censura da História, é preciso reconhecer que há várias abordagens igualmente justas para alcançar esse propósito. Uma delas é examinar o que você chama de “medidas extremas”: maneiras draconianas de controlar a História usando ferramentas que resultam na destruição dos “Produtores de História” e do trabalho que eles produziram. Como podemos definir o conceito de “Crimes contra a história”?

Primeiramente, eu optei por não limitar meu horizonte aos historiadores profissionais. Ao invés disso, estendi o escopo do conceito ao que chamo de “produtores de História”, isto é, todos os envolvidos, profissionalmente ou não, na coleta, criação ou transmissão da História. Eu me inspirei, para propor a minha definição de “crimes contra a História”, na formulação de “crimes contra a Humanidade”, conforme usado pelo Tribunal Penal Internacional. Tomei “crimes contra a História” como qualquer um dos seguintes atos quando cometido como parte de um ataque generalizado ou sistemático – de acordo com uma política estadual ou não estatal ou em conformidade com ela: o assassinato e desaparecimento de produtores de história; ataques pessoais públicos a esse produtores por meio de discursos de ódio, difamação e processo malicioso; destruição intencional do patrimônio cultural e desinformação, incluindo negação de genocídio e censura da história.

Em essência, esses crimes contra a História são abusos da história que constituem violações dos direitos humanos. Em particular, eles violam os direitos à vida, a um julgamento justo, à liberdade de expressão, à igualdade, à cultura e à ciência desses produtores de História (e geralmente de seus públicos).

“Censura” ou “Liberdade de expressão” são termos, de forma geral, associados ao trabalho de jornalistas, artistas e outras profissões relacionadas à mídia tradicional. De fato, podemos dizer que raramente ouvimos falar de “censura à História”. O que é a “censura da História”? Por que os historiadores são censurados?

Pode-se dizer que a definição legal de censura da História geralmente abrange restrições às opiniões sobre o passado. Não apenas através de restrições às opiniões – antes de que elas alcancem o público (“pré-censura”) – mas também restrições às opiniões sobre o passado depois que elas foram expressas (“pós-censura”). A caracterização que uso no meu livro parte dessa definição legal, mas, via de regra, vai além. Nesse sentido mais amplo, a “censura da História” é o controle sistemático sobre fatos ou opiniões históricas e sua manipulação imposta pelo governo ou por outras potências, ou com seu conluio. A forma típica de controle é a supressão. O conceito gêmeo da censura da história é a propaganda histórica, um termo que, portanto, defini simetricamente, isto é, a manipulação sistemática de fatos ou opiniões históricas pelo governo ou outras potências, ou com sua conivência.

Os historiadores são censurados por uma ampla variedade de razões. Uma das tabelas do meu livro, que eu amo especialmente, oferece uma visão geral de nada menos que 300 tipos de acusações dirigidas a historiadores em processos contra eles após 1945. Somente alguns desses processos e encargos legais são compatíveis com direitos humanos, mas a maioria não o é. Mesmo que algumas vezes sejam compatíveis com os direitos humanos (acusações como invasão de privacidade, difamação e discurso de ódio, por exemplo), geralmente são formulados de maneira muito ampla, são aplicados arbitrariamente e, dessa forma, são propensos a abusos. E nem é preciso dizer que as acusações comumente não correspondem às reais razões pelas quais os produtores de história são processados. Diferentemente dos processos judiciais, as acusações geralmente não encontram base na legislação atual e muito menos nos padrões de direitos humanos. Em resumo, embora algumas demandas sejam justificadas, muitas têm motivações políticas ou são totalmente falsas e inventadas para a ocasião. Elas se adaptam às necessidades do poder e não servem à justiça, mas à repressão; e, podem levar a processos maliciosos, que são um dos tipos de crime contra a História. Entre as muitas razões para a censura da história – uma das mais importantes – é que o trabalho dos historiadores pode desafiar verdades históricas oficiais e, consequentemente, minar a legitimidade do poder e da visão oficial da memória coletiva de uma nação. Como tal, a história dissidente é subversiva e perigosa.

Poderíamos falar um pouco sobre o conceito de “autocensura”? Você escreveu que a autocensura “é o objetivo final de qualquer aparato de censura: onde é estabelecida com sucesso, a intimidação e o medo se estendem tão efetivamente que o controle externo se torna supérfluo”. Eu gostaria de lhe perguntar se você está familiarizado com o programa Escola “sem” Partido, que visa modificar a Lei Nacional de Educação do Brasil. De acordo com esse movimento, os professores não devem educar, mas apenas instruir. Em outras palavras, os professores devem transmitir apenas os “tópicos específicos das disciplinas escolares” sem discutir os valores ou a realidade dos alunos. É possível ensinar história sem levar em conta a realidade dos alunos? Poderíamos considerar esse movimento como uma forma de censura da História?

Desconheço o programa Escola “sem” Partido ou como ele afeta o ensino de História. Portanto, não posso julgar se esse programa constituiria uma censura à História. Deve-se coletar exemplos das consequências que esse programa tem no campo da educação em História para diagnosticar esse movimento. Gostaria de ver como o Supremo (ou um tribunal comparável) julgará uma ação contra o Escola “sem” Partido. À primeira vista, alguns aspectos do programa parecem contrariar o direito à educação (artigo 13 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), conforme explicado pelo Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR) em seus Comentários Gerais n° 13 do ano de 1999 sobre o direito à educação. Em especial, o padrão de “aceitabilidade”: a forma e o conteúdo da educação, incluindo o currículo e os métodos de ensino, devem ser aceitáveis ​​(por exemplo, relevantes, culturalmente apropriados e de boa qualidade) para os alunos e, nos casos apropriados, para os pais – que parecem estar sob forte pressão. O Comitê possui um mecanismo de reclamações e o poder de emitir as chamadas Observações Finais sobre o Brasil. Parece-me que o Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à educação também poderia ser convidado a emitir um apelo urgente ou uma carta de reclamação a esse respeito.

No livro, você defende a tese de que o conceito de “História como fenômeno predeterminado por leis” explica porque “matar produtores de história por razões relacionadas à História teve um papel mais notável na China e na antiga URSS do que em outros lugares “. Você poderia explicar por que a visão de mundo comunista causou um número maior de baixas entre os produtores de História?

Minha tese não é a de que todo regime comunista tenha tendido a matar seus historiadores dissidentes, nem que os regimes não comunistas raramente matem seus historiadores dissidentes; é a de que a ideologia comunista oferece incentivos especiais, particularmente na URSS stalinista e na China maoísta. Embora a História seja uma fonte importante para a legitimação do poder na maioria das ditaduras, quanto mais central o papel da história na ideologia ditatorial, mais devastador será o impacto da censura na escrita histórica.

Em princípio, os regimes totalitários eram mais perigosos que os autoritários, pois não apenas tentavam silenciar, mas também converter seus cidadãos. Entre os regimes totalitários, os comunistas ocupam um lugar especial porque, mais do que em outros regimes totalitários, a história desempenha um papel central em sua visão de mundo. A visão do mundo comunista, de fato, é governada pela teoria do materialismo histórico. Os regimes comunistas concebem a história como um desenvolvimento impulsionado por leis e, não menos importante, essas leis são interpretadas de acordo com a lógica do governante. Essas leis negam a contingência de eventos que ocorrem; um grande plano histórico deve determiná-los. Tal teoria da história impulsionada pela lei precisa de uma redação histórica elaborada para apoiá-la, o que, por sua vez, aumenta o número de produtores de história envolvidos, daí a probabilidade de desvio e erro e, portanto, a urgência de suprimir esse desvio e esse erro. Quando o escritor Maxim Gorki pediu clemência ao grão-duque Nicholas Mikhailovich Romanov, historiador e membro da família czarista, Lenin respondeu: “A Revolução não precisa de historiadores”. O Grão-Duque foi morto em 1919.

É plausível supor que os regimes comunistas atacaram os fundamentos acadêmicos da profissão mais profundamente do que outros regimes totalitários para moldar a apresentação de eventos passados ​​às suas leis históricas, com persuasão, se possível, com violência, se necessário. Contrariamente, a ideologia tendia a ser mais essencialista (definida por características perenes) nos regimes totalitários da direita; portanto, a perspectiva dos regimes mais recentes era geralmente menos rigidamente histórica, embora a imprevisibilidade totalitária geralmente também tivesse um impacto profundamente intimidador.

Na segunda parte do livro, você discute de que formas a censura pode minar os próprios efeitos que produz. Um dos tópicos mais fascinantes a esse respeito é o que você chama de “efeito resistência”. Na realidade, esse capítulo pode ser lido como uma homenagem àqueles que se dedicaram a estratégias criativas e corajosas para superar regimes autoritários. O que pode ser aprendido com os exemplos de resistência aos crimes contra a História?

No último capítulo do meu livro, eu tentei delinear uma breve história da resistência aos crimes contra a História. Devo admitir que é difícil medir o impacto da resistência. Primeiro, porque não contei as histórias de todos os atos conhecidos de resistência. Tinha que ser seletivo. E estou convencido de que milhares ou pequenos atos de coragem permanecem desconhecidos para todos ou para a maioria. Portanto, ignoramos muitos atos de resistência. Segundo, os exemplos de resistência que ofereci eram mutuamente incomparáveis, uma vez que abrangem uma ampla gama de atividades: do simbólico ao clandestino e, também, o abertamente desafiador. Algumas ações exigiam bravura ou quixotismo, enquanto outras consistiam em pequenos gestos quase invisíveis, feitos sem alarde e frequentemente escondidos atrás de uma tela de ambiguidade ou silêncio. Alguns eram espontâneos, outros cuidadosamente planejados ou deliberadamente provocativos. Em terceiro lugar, nunca se deve esquecer que muitas pessoas, que não exercem a profissão de historiador, fizeram esforços em favor dos historiadores perseguidos. Romancistas, dramaturgos, jornalistas, contadores de histórias e cantores costumavam cuidar de interpretações históricas reprimidas, mantendo-as vivas quando a memória coletiva estava em risco de extinção, porque historiadores silenciados e silenciosos não podiam refutar as verdades anunciadas da propaganda histórica oficial. Eu chamei isso de “efeito de substituição”.

No entanto, existe algo como uma tradição de resistência a ser apreciada. Muito foi preservado, materialmente (arquivos, obras, monumentos, educação) e também simbolicamente (princípios e valores). Os ataques foram neutralizados, os segredos descobertos, as mentiras desmascaradas, as distorções denunciadas, a indiferença bloqueada, a esterilidade fertilizada, a desconfiança desarmada. Obviamente, muito foi destruído e arruinado por um poder implacável. Em muitos casos, levou anos, se não gerações, para reconstruir o que foi demolido. Frequentemente, a resistência não contrariava – ou simplesmente não podia contrariar a violência sistêmica. E muitas vezes as perdas e desaparecimentos eram irreparáveis.

Se o impacto da resistência a curto prazo é difícil de medir, isso se torna ainda mais complicado quando pensamos no longo-prazo. Mas aqui também há razões para esperança. Com o tempo, uma quantidade surpreendente de atitudes tornar-se-ia exemplo de coragem moral, porque os historiadores envolvidos não buscavam recompensas, mas fizeram o que pensavam ser o exercício responsável da sua atividade profissional, com um desrespeito imprudente por avisos e consequências. Se existe uma tradição enfim, é a tradição de valorizar os padrões de integridade acadêmica diante da ameaça de censura. Por serem intrinsecamente frágeis, os atos de coragem moral têm uma característica poderosa: podem inspirar muito depois que os eventos a que se referem desapareceram. Enquanto são contadas novamente, histórias de comprometimento e integridade inspiram esperança e orgulho. Isso pode ser chamado de efeito memória da luta contra crimes contra a História.

Como citar esta entrevista

DE BAETS, Antoon. O historiador como inimigo: entrevista com Antoon De Baets (Entrevista). Entrevista concedida a Pedro Teixeirense. In: Café História . Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-historiador-como-inimigo-antoon-de-baets/. Publicado em: 25 nov 2019. ISSN: 2674-5917.

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