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O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro: abrindo a caixa de pandora

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro: abrindo a caixa de pandora 1

"O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro. Foto: reprodução Netflix.

Conhecido por obras marcantes como Pan’s Labyrinth(2006), Shape Of Water(2017) ou a mais recente Nightmare Alley (2021), o diretor acumula em seu currículo uma miríade de obras que abordam o horror e o suspense, quer seja ele psicológico ou fantástico. Guillermo sabe assustar e comover como quase nenhum outro artista, e sua conhecida admiração pelo gênero nos fez roer as unhas com altas expectativas para essa curadoria. O lançamento, que ocorreu pontualmente em outubro poucos dias antes do feriado norte-americano do Halloween, cobre em oito episódios as narrativas do Gabinete. É aberta uma caixa de pandora com a função de tirar nosso sono e nos maravilhar com a mistura do real com o mágico, sobrenatural e assustador.

Cada conto possui roteiristas e diretores com estilos distintos, porém todos compartilham de uma das maiores qualidades de Del Toro – o apuro visual, o cuidado com cada detalhe, as imagens marcantes e bem trabalhadas e a ambientação perfeita. Um lindo “doce” para o saquinho de guloseimas. Porém, também aqui, mesmo com todo esmero, não estamos a salvo de algumas travessuras. A qualidade dos roteiros e das adaptações, entre elas dois contos de H.P. Lovecraft, oscila bastante entre o excelente e o medíocre. Para quem esperava perfeição, em todos os aspectos, pode ser uma pequena decepção. Para quem caiu de gaiato, não conhece bem a obra do diretor ou está apenas testando as águas do horror, pode ser uma excelente surpresa. Já para quem, como eu, fica entre esses dois polos, o resultado mostrou ser bastante satisfatório. Del Toro, no melhor estilo Twilight Zone, ainda apresenta pessoalmente cada episódio.

Episódio 1: LOT 36

Dirigido por Guillermo Navarro (The Unforgivable) e escrito por Regina Corrado e Guillermo Del Toro, conta a história de Nick (Tim Blake Nelson), um veterano de guerra desiludido e amargurado que faz dinheiro para pagar suas dívidas de jogo comprando o conteúdo de garagens de depósito (storage lockers) que são abandonadas pelos seus locatários por motivos de morte ou não pagamento do aluguel. Um dia ele parece acertar na loteria ao encontrar uma coleção de livros antigos e valiosos. Aqui temos um sobrenatural clássico, as atuações são muito boas, e a riqueza de detalhes contribui muito para o suspense como a luz do corredor que sempre se apaga nos momentos mais inoportunos. A única coisa que parece limitadora aqui é a duração de apenas uma hora para um enredo que oferece elementos demais para serem devidamente explorados nesse formato.

Episódio 2: GRAVEYARD RATS

Dirigido e escrito por Vincenzo Natali (Come True) o episódio nos apresenta uma adaptação de um conto de Henry Kuttner onde um ladrão de cemitério tenta pagar (de novo) suas dívidas com credores roubando bens preciosos enterrados junto com os mortos. O clima aqui é de um gótico da primeira metade do sec. XX/final do sec. XIX. Masson, muito bem interpretado por David Hewlett, se vê confrontado com seus maiores medos nessa empreitada. Como diz o título, ratos estão presentes em abundância, e são de todos os tamanhos. Aqui é explorado ao extremo fobias e medos em uma filmagem claustrofóbica que passeia freneticamente por buracos, tuneis e tumbas. Mais uma vez os “monstros” são aqui a highlight visual e não deixa nada a desejar. Esse episódio também tem um dos melhores desfechos da série e não economiza no quesito gore.

Episódio 3: THE AUTOPSY

Com direção de David Prior (The Empty Man) e escrito por David S. Goyer o episódio é baseado em um conto de Michael Shea sobre dois velhos amigos – Dr. Carl Winters, em uma atuação excelente de F. Murray Abraham, e o xerife Nate Craven, interpretado por Glynn Turman. Um acidente em uma mina causa a morte de diversas pessoas e o pragmático Dr. Winters é chamado para fazer a autopsia dos corpos e gravar o resultado de suas observações. E o que ele encontra, simplesmente, não era desse mundo. Aqui temos um festival de entranhas e vísceras, num gore de fatiamento humano que não nos poupa dos detalhes. Porém não fica somente nisso, o roteiro é muito bem escrito e nos oferece mais do que simples sustos ou asco. Graças a F. Murray, o que temos aqui é um dos melhores episódios dessa temporada, com uma reflexão da condição humana sem abdicar do heroísmo no desfecho.

Episódio 4: THE OUTSIDE

Com direção de Ana Lily Amirpour (Mona Lisa and the Blood Moon) e roteiro de Haley Z. Boston esse é um dos poucos episódios do Gabinete que contém uma mensagem social e política sem nunca abandonar o horror. Aliás, aqui, o horror são os moldes sociais nos quais nós mulheres somos espremidas e enquadradas, até mesmo pela mão de outras mulheres. A sensacional Kate Micucci interpreta Stacey, uma moça tímida que luta com inseguranças sobre sua aparência. Stacey anseia pertencer ao grupo das mulheres desejadas e confiantes que a rodeiam em seu local de trabalho. E para isso, pretende ultrapassar todas as barreiras morais que surgirem nessa busca. Nisso um creme “milagroso” com a promessa de mudar sua vida lhe é presenteado por uma colega. A partir daí Stacey se entrega totalmente ao objetivo de se tornar atraente, e nada irá tirar seu foco. Nem mesmo seu complacente, mas amoroso, marido. Visualmente excepcional, esse capítulo ainda conta com a participação de Dan Stevens como o guru televisivo que aconselha Stacey. Com uma certa vibe de A Coisa (1985), The Outside é um dos melhores, senão o melhor, episódios do Gabinete de Curiosidades.

Episódio 5: PICKMAN’S MODEL

Dirigido por Keith Thomas (Firestarter), e baseado em um short story de um dos reis do terror literário H. P. Lovecraft, Pickman’s Model é um verdadeiro eye candy do terror gótico. Visualmente luxuoso e ambientado na primeira metade do século XX em New England, ele conta a história do artista William Thurber’s (Ben Barnes) que ao conhecer o pintor Richard Upton Pickman (Crispin Glover) passa a ser perseguido por alucinações diabólicas contidas nas pinturas deste. O terror psicológico, que deveria aqui ser uma arma central da narrativa, acaba perdendo força num roteiro muito centrado em sustos e menos centrado no universo interior de Thurber, o qual nutre um sentimento complexo que mistura medo, inveja e repulsa pelo trabalho de Pickman. Muito disso se deve a fraca atuação de Barnes que fica ainda mais evidente quando contraposta a exuberante atuação de Glover. Infelizmente, mais uma vez, as obras de Lovecraft se mostraram “infilmáveis”. O resultado fica, ainda, muito longe das sensações causadas pelos seus textos.

Episódio 6: DREAMS IN THE WITCH HOUSE

Temos aqui mais uma adaptação de H.P. Lovecraft, dessa vez dirigida por Catherine Hardwicke (Don’t Look Deeper) e com roteiro de Mika Watkins. De novo nos encontramos na primeira metade do século XX, e de novo acompanhamos um homem com uma obsessão. Dessa vez o drama se concentra em torno de Walter Gilman (Rupert Grint), um homem que, inconformado com a morte de sua irmã gêmea, passa a vida estudando e fiscalizando videntes, gurus e bruxas em busca de uma forma de se comunicar de novo com a falecida via além. Esteticamente falando, de novo, essa é uma obra exuberante, aparelhada com o top notch dos efeitos visuais, porém sem alma. Muito disso atribuo à imagem e à interpretação do personagem central feita por Grint, que, infelizmente, não conseguiu até hoje realmente se distanciar do Ron de Harry Potter. O drama e a seriedade do sofrimento da personagem não chegam em nós, porém o que vemos, algumas vezes, é algo que beira o pastelão, e, sinceramente, não vejo isso refletindo a obra original de H. P.

Episódio 7: THE VIEWING

O episódio é dirigido por Panos Cosmatos (Mandy) e escrito por Cosmatos e Aaron Stewart-Ahn. Aqui a produção pega pesado na exuberância quase desfocada e com filtros quentes para refletir a estética do final dos anos 70. Quatro personalidades geniais, dos diversos campos do conhecimento humano, são convidadas por um misterioso bilionário (interpretado pelo eterno robocop Peter Weller) para um Viewing, uma espécie de “exibição” de algo desconhecido para todos os participantes. Sem entender nada o grupo chega à casa do host onde são seduzidos em uma conversa a experimentar o que há de melhor em droguinhas e bebidas. Todos cedem à pressão do sedutor bilionário e se entregam ao seu jogo. A trilha, toda composta por sintetizadores,ajuda a reforçar a localização temporal da obra, e a recordar sucessos do terror pop do final dos anos 70 e início dos 80, onde, muitas vezes o terror aparece somente nos últimos minutos enquanto a manipulação psicológica e feita desde o princípio. Apesar de um roteiro extremamente simples e, por vezes, um pouco arrastado, esse episódio fica na média, principalmente por se escorar quase que completamente no hedonismo de seus personagens e na captura dos sentidos. Tanto que o clímax no final nem conta muito para elevar o valor da obra.

Episódio 8: THE MURMURING

Dirigido e escrito por Jennifer Kent (The Babadook), o último episódio fecha temporada essa com chave de ouro. Um casal de ornitologistas – Nancy Bradley (Essie Davis) e Edgar Bradley (Andrew Lincoln), se isolam em uma ilha para dar continuidade as suas pesquisas sobre movimentação e sons de pássaros. Convenientemente são agraciados com uma casa abandonada para ocuparem durante sua estadia. A cada, fechada há décadas, parece ter ficado intocada por todo esse tempo. Não demora muito para Nancy começar a ver e ouvir coisas estranhas. De todos os episódios esse é o de conteúdo de terror mais clássico: uma cassa mal-assombrada. E mesmo assim, às vezes, o mais simples se mostra o mais bem elaborado quando se trata de um pequeno formato. O drama é sustentado de forma maestral por Davis e Bradley, os conflitos tocam tão fundo quanto os sustos que tomamos. No melhor estilo das obras de Mike Flanagan para o canal Netflix (The Midnight Club), Jennifer Kent nos leva às lagrimas, nos causa arrepios e nos faz refletir. De uma forma quase frugal, The Murmuring ofereceu quase tudo que busco no gênero horror.

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