A política não se manifesta apenas por meio de posições ideológicas concorrentes (esquerda versus direita, socialistas versus conservadores). Ela também é definida por pontos de consenso parcial da sociedade. A todo momento, há questões fundamentais sobre as quais grandes setores da população compartilham um “senso comum” político. São essas questões que fornecem o pano de fundo no qual a competição política acontece.
No entanto, esse bom senso político (ou “metaideologia”) não é imutável. Em vez disso, ele evolui ao longo do tempo, dependendo de quais visões ideológicas axiomáticas são dominantes na sociedade. O economista Nikolai Kondratieff discutiu a ideia de ondas longas econômicas, que duram de 40 a 50 anos. Para traçar uma comparação com seu conceito, poderíamos falar de “eras ideológicas”, isto é, períodos definidos pelo domínio de certos pressupostos metaideológicos que influenciam todo o espaço político. Essas eras ideológicas forçam todos os atores a se posicionarem em relação a eles.
Essa noção, embora ainda pouco teorizada, está implícita em muitas análises políticas. Pense, por exemplo, na maneira como Immanuel Wallerstein descreveu o século XIX e o início do século XX como uma era de “liberalismo centrista triunfante “. Ou a maneira como as pessoas descrevem o período dos anos 1940 aos 1970 como uma era “social-democrata” ou “keynesiana”. Muitos se referem ao período que começou com as vitórias eleitorais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan em 1979/1980 como a “era neoliberal”. Em suma, essas afirmações assumem que existiram diferentes ‘eras ideológicas’, que foram definidas por diferentes pressupostos ideológicos.
Então, se for mesmo assim, qual era ideológica estamos vivendo agora?
Um consenso neoliberal em ruínas
Os horizontes metaideológicos são difíceis de apreender, e se assim o são, é porque parecem permear todo o espaço político. No entanto, eles se tornam particularmente visíveis no momento em que estão se desintegrando ou se formando – ou em ambos.
Como argumento em meu novo livro, The Great Recoil: Politics after Populism and Pandemic, parece que estamos precisamente no momento da passagem entre duas eras ideológicas. O neoliberalismo está sendo questionado, enquanto o “neo-estatismo” (um novo consenso entre os partidos sobre a necessidade de um estado mais intervencionista) está prestes a substituí-lo.
O neoliberalismo não foi simplesmente um conjunto de políticas econômicas. Envolveu também um certo discurso, uma Weltanschauung, sinalizada pela recorrência significante de temas como competição, oportunidade, empreendedorismo e meritocracia. Neste período, essas noções sugeriram que a prioridade da sociedade após a crise dos anos 1970 era liberar o potencial humano e a sua criatividade. Havia uma sensação de que o controle autoritário de um estado perdulário e ineficiente havia sufocado esse potencial. Esta narrativa agora parece ter perdido o fôlego.
O retorno do estado intervencionista
A situação atual é, para os neoliberais, a mesma que a crise de estagflação dos anos 1970 foi para os socialdemocratas. É um dilema que parece impossível de resolver dentro da lógica da metaideologia atual.
A economia não está mais funcionando como os neoliberais esperavam. Há uma estagnação econômica crônica. As taxas de juros estão nos mínimos históricos. E a inflação experimentou apenas um pico temporário, mesmo depois de trilhões de dólares e euros de expansão monetária. Mas esta não é apenas uma crise epistemológica; é uma fase em que o discurso do neoliberalismo perdeu qualquer influência na prática real da formulação de políticas públicas.
Os políticos, atualmente, enfrentam uma pandemia global combinada com a perspectiva de uma mudança climática catastrófica. Enfrentando esses desafios, eles ressuscitaram formas de intervencionismo governamental que os neoliberais sempre denunciaram como perdulários e irracionais.
Estamos testemunhando transferências sociais massivas para lidar com o desemprego e o fracasso empresarial. Os programas de investimento visam descarbonizar a economia e enfrentar a crise climática. O estado intervencionista – aquele bicho-papão tradicional do neoliberalismo – está de volta, e em forma redobrada.
Os defensores dos “mercados livres” continuam fingindo que esta é uma fase excepcional, após a qual as coisas retornarão à normalidade pré-pandêmica. No entanto, o neoestatismo parece cada vez mais com o “novo normal”, dentro do qual esquerda e direita precisarão desenvolver novas posições.
Um anseio por uma maior intervenção governamental
Os problemas definidores de nossa era – a crise da saúde, as mudanças climáticas, a estagnação econômica – não parecem ter “soluções de mercado” confiáveis. Isso precipitou o retorno do estado intervencionista. Os problemas que definem essa nova era fazem com que o Estado pareça vulnerável e sem controle. Isso gera ansiedade generalizada nas pessoas, a chamada agorafobia, e isso, por sua vez, desencadeia uma demanda por segurança e proteção, algo que só o Estado pode oferecer.
Os neoliberais argumentaram que o Estado era uma estrutura intrometida que deveria ser mantida sob controle. Hoje em dia, como mostram as pesquisas de opinião, a maioria dos cidadãos parece pensar quase o contrário.
Este anseio por maior intervenção governamental é um ponto comum de consenso entre centro-esquerda e centro-direita. Podemos ver essa convergência na maneira como os políticos de todos os lados adotam slogans semelhantes, como “reconstruir melhor”. Vemos isso também nas ênfases na proteção e segurança, na reconstrução e na infraestrutura.
A convergência também se manifesta na sobreposição de políticas. Vão desde a recuperação bipartidária dos gastos deficitários até a recuperação do protecionismo comercial. É evidente na mudança da ideia de George Bush e Tony Blair, há 20 anos, de “exportar democracia” para o atual “isolacionismo” da política externa.
Diferenças na esquerda e direita pós-pandemia
No entanto, diferenças profundas em termos de compreensão da missão final do Estado pós-pandêmico acompanham essa adoção compartilhada de novos pressupostos metaideológicos. Na centro-direita, a proteção oferecida é, antes de mais nada, proteção contra imigrantes percebidos como uma ameaça à nação. É também a proteção dos ricos contra as demandas redistributivas que cresceram em meio à crescente desigualdade. Por outro lado, na centro-esquerda, o discurso da proteção concentra-se na promessa de proteger os cidadãos da rapacidade do capitalismo digital. Também promete melhorar as condições sociais após décadas de uma “corrida para o fundo do poço” neoliberal.
Esses são entendimentos radicalmente diferentes da missão do estado pós-pandêmico e da proteção e segurança que ele guarda. Muito do nosso futuro político dependerá de qual dessas narrativas pós-neoliberais ganhará força.
Como citar este artigo
GERBAUDO, Paolo. O fim do neoliberalismo e o início de uma nova era de “neo-estatismo”. In: Café História. Tradução de Bruno Leal Pastor de Carvalho. Original em: The Loop. Publicado em 11 out. de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-fim-do-neo-liberalismo-e-o-inicio-do-neo-estatismo/. ISSN: 2674-5917.